Roberto Lyra, Promotor de Justiça, um dos autores do Código Penal
de 1940, ao lado de Alcântara Machado e Nelson Hungria, recomendava aos
colegas de Ministério Público que "antes de se pedir a prisão de alguém
deveria se passar um dia na cadeia". Gênio, visionário e à frente de
seu tempo, Lyra informava que apenas a experiência viva permite
compreender bem uma situação.
Quem procurar meus artigos, verá
que no início era contra as cotas para negros, defendendo - com boas
razões, eu creio - que seria mais razoável e menos complicado
reservá-las apenas para os oriundos de escolas públicas. Escrevo hoje
para dizer que não penso mais assim. As cotas para negros também devem
existir. E digo mais: a urgência de sua consolidação e aperfeiçoamento é
extraordinária.
Embora juiz federal, não me valerei de argumentos jurídicos. A Constituição
da República é pródiga em planos de igualdade, de correção de
injustiças, de construção de uma sociedade mais justa. Quem quiser, nela
encontrará todos os fundamentos que precisa. A Constituição
de 1988 pode ser usada como se queira, mas me parece evidente que a sua
intenção é, de fato, tornar esse país melhor e mais decente. Desde
sempre as leis reservaram privilégios para os abastados, não sendo de se
exasperarem as classes dominantes se, umas poucas vezes ao menos,
sesmarias, capitanias hereditárias, cartórios e financiamentos se
dirigirem aos mais necessitados.
Não me valerei de argumentos
técnicos nem jurídicos dado que ambos os lados os têm em boa monta, e o
valor pessoal e a competência dos contendores desse assunto comprovam
que há gente de bem, capaz, bem intencionada, honesta e com bons
fundamentos dos dois lados da cerca: os que querem as cotas para negros,
e os que a rejeitam, todos com bons argumentos.
Por isso, em
texto simples, quero deixar clara minha posição como homem, cristão,
cidadão, juiz, professor, "guru dos concursos" e qualquer outro adjetivo
a que me proponha: as cotas para negros devem ser mantidas e aperfeiçoadas.
E meu melhor argumento para isso é o aquele que me convenceu a trocar
de lado: "passar um dia na cadeia". Professor de técnicas de estudo, há
nove anos venho fazendo palestras gratuitas sobre como passar no
vestibular para a EDUCAFRO, pré-vestibular para negros e carentes.
Mesmo
sendo, por ideologia, contra um pré-vestibular "para negros", aceitei
convite para aulas como voluntário naquela ONG por entender que isso
seria uma contribuição que poderia ajudar, ou seja, aulas, doação de
livros, incentivo. Sempre foi complicado chegar lá e dizer minha antiga
opinião contra cotas para negros, mas fazia minha parte com as aulas e
livros. E nessa convivência fui descobrindo que se ser pobre é um
problema, ser pobre e negro é um problema maior ainda.
Meu pai
foi lavrador até seus 19 anos, minha mãe operária de "chão de fábrica",
fui pobre quando menino, remediado quando adolescente. Nada foi fácil, e
não cheguei a juiz federal, a 350.000 livros vendidos e a fazer
palestras para mais de 750.000 pessoas por um caminho curto, nem fácil.
Sei o que é não ter dinheiro, nem portas, nem espaço. Mas tive heróis
que me abriram a picada nesse matagal onde passei. E conheço outros
heróis, negros, que chegaram longe, como Benedito Gonçalves, Ministro do
STJ, Angelina Siqueira, juíza federal. Conheço vários heróis, negros,
do Supremo à portaria de meu prédio.
Apenas não acho que temos
que exigir heroísmo de cada menino pobre e negro desse país. Minha
filha, loura e de olhos claros, estuda há três anos num colégio onde não
há um aluno negro sequer, onde há brinquedos, professores bem
remunerados, aulas de tudo; sua similar negra, filha de minha empregada,
e com a mesma idade, entrou na escola esse ano, escola sem professores,
sem carteiras, com banheiro quebrado. Minha filha tem psicóloga para
ajudar a lidar com a separação dos pais, foi à Disney, tem aulas de
Ballet. A outra, nada, tem um quintal de barro, viagens mais curtas. A
filha da empregada, que ajudo quanto posso, visitou minha casa e saiu
com o sonho de ter seu próprio quarto, coisa que lhe passou na cabeça
quando viu o quarto de minha filha, lindo, decorado, com armário
inundado de roupas de princesa.
Toda menina é uma princesa, mas há poucas das princesas negras com
vestidos compatíveis, e armários, e escolas compatíveis, nesse país
imenso. A princesa negra disse para sua mãe que iria orar para Deus
pedindo um quarto só para ela, e eu me incomodei por lembrar que Deus
ainda insiste em que usemos nossas mãos humanas para fazer Sua Justiça.
Sei que Deus espera que eu, seu filho, ajude nesse assunto. E se não
cresse em Deus como creio, saberia que com ou sem um ser divino nessa
história, esse assunto não está bem resolvido. O assunto demanda de
todos nós uma posição consistente, uma que não se prenda apenas à
teorias e comece a resolver logo os fatos do cotidiano: faltam quartos e
escolas boas para as princesas negras, e também para os príncipes dessa
cor de pelé.
Não que tenha nada contra o bem estar da minha
menina: os avós e os pais dela deram (e dão) muito duro para ela ter
isso. Apenas não acho justo nem honesto que lá na frente, daqui a uma
década de desigualdade, ambas sejam exigidas da mesma forma. Eu direi
para minha filha que a sua similar mais pobre deve ter alguma
contrapartida para entrar na faculdade. Não seria igualdade nem honesto
tratar as duas da mesma forma só ao completarem quinze anos, mas sim uma
desmesurada e cruel maldade, para não escolher palavras mais adequadas.
Não
se diga que possamos deixar isso para ser resolvido só no ensino
fundamental e médio. É quase como não fazer nada e dizer que tudo se
resolverá um dia, aos poucos. Já estamos com duzentos anos de espera por
dias mais igualitários. Os pobres sempre foram tratados à margem. O
caso é urgente: vamos enfrentar o problema no ensino fundamental, médio,
cotas, universidade, distribuição de renda, tributação mais justa e
assim por diante. Não podemos adiar nada, nem aguardar nem um pouco.
Foi
vendo meninos e meninas negros, e negros e pobres, tentando uma chance,
sofrendo, brilhando nos olhos uma esperança incômoda diante de tantas
agruras, que fui mudando minha opinião. Não foram argumentos jurídicos,
embora eu os conheça, foi passar não um, mas vários "dias na cadeia". Na
cadeia deles, os pobres, lugar de onde vieram meus pais, de um lugar
que experimentei um pouco só quando mais moço. De onde eles vêm, as
cotas fazem todo sentido.
Se alguém discorda das cotas, me
perdoe, mas não devem faze-lo olhando os livros e teses, ou seus
temores. Livros, teses, doutrinas e leis servem a qualquer coisa, até ao
nazismo. Temores apenas toldam a visão serena. Para quem é contra, com
respeito, recomendo um dia "na cadeia". Um dia de palestra para quatro
mil pobres, brancos e negros, onde se vê a esperança tomar forma e
precisar de ajuda. Convido todos que são contra as cotas a passar
conosco, brancos e negros, uma tarde num cursinho pré-vestibular para
quem não tem pão, passagem, escola, psicólogo, cursinho de inglês,
ballet, nem coisa parecida, inclusive professores de todas as matérias
no ensino médio.
Se você é contra as cotas para negros, eu o
respeito. Aliás, também fui contra por muito tempo. Mas peço uma
reflexão nessa semana: na escola, no bairro, no restaurante, nos lugares
que freqüenta, repare quantos negros existem ao seu lado, em condições
de igualdade (não vale porteiro, motorista, servente ou coisa parecida).
Se há poucos negros ao seu redor, me perdoe, mas você precisa "passar
um dia na cadeia" antes de firmar uma posição coerente não com as
teorias (elas servem pra tudo), mas com a realidade desse país.
Com
nossa realidade urgente. Nada me convenceu, amigos, senão a realidade,
senão os meninos e meninas querendo estudar ao invés de qualquer outra
coisa, querendo vencer, querendo uma chance.
Ah, sim, "os negros
vão atrapalhar a universidade, baixar seu nível", conheço esse argumento
e ele sempre me preocupou, confesso. Mas os cotistas já mostraram que
sua média de notas é maior, e menor a média de faltas do que as de quem
nunca precisou das cotas. Curiosamente, negros ricos e não cotistas
faltam mais às aulas do que negros pobres que precisaram das cotas. A
explicação é simples: apesar de tudo a menos por tanto tempo, e talvez
por isso, eles se agarram com tanta fé e garra ao pouco que lhe dão, que
suas notas são melhores do que a média de quem não teve tanta
dificuldade para pavimentar seu chão. Somos todos humanos, e todos
frágeis e toscos: apenas precisamos dar chance para todos.
Precisamos confirmar as cotas para negros e para os oriundos da escola pública.
Temos que podemos considerar não apenas os deficientes físicos (o que
todo mundo aceita), mas também os econômicos, e dar a eles uma
oportunidade de igualdade, uma contrapartida para caminharem com seus
co-irmãos de raça (humana) e seus concidadãos, de um país que se quer
solidário, igualitário, plural e democrático. Não podemos ter tanta
paciência para resolver a discriminação racial que existe na prática:
vamos dar saltos ao invés de rastejar em direção a políticas afirmativas
de uma nova realidade.
Se você não concorda, respeito, mas só se você passar um dia conosco
"na cadeia". Vendo e sentindo o que você verá e sentirá naquele meio, ou
você sairá concordando conosco, ou ao menos sem tanta convicção contra o
que estamos querendo: igualdade de oportunidades, ou ao menos uma
chance. Não para minha filha, ou a sua, elas não precisarão ser heroínas
e nós já conseguimos para elas uma estrada.
Queremos um caminho
para passar quem não está tendo chance alguma, ao menos chance honesta.
Daqui a alguns poucos anos, se vierem as cotas, a realidade será outra.
Uma melhor. E queremos você conosco nessa história.
Não creio
que esse mundo seja seguro para minha filha, que tem tudo, se ele não
for ao menos um pouco mais justo para com os filhos dos outros, que
talvez não tenham tido minha sorte. Talvez seus filhos tenham tudo, mas
tudo não basta se os filhos dos outros não tiverem alguma coisa. Seja
como for, por ideal, egoísmo (de proteger o mundo onde vão morar nossos
filhos), ou por passar alguns dias por ano "na cadeia" com meninos
pobres, negros, amarelos, pardos, brancos, é que aposto meus olhos azuis
dizendo que precisamos das cotas, agora.
E, claro, financiar os
meninos pobres, negros, pardos, amarelos e brancos, para que estudem e
pelo conhecimento mudem sua história, e a do nosso país comum pois,
afinal de contas, moraremos todos naquilo que estamos construindo.
Então,
como diria Roberto Lyra, em uma de suas falas, "O sol nascerá para
todos. Todos dirão - nós - e não - eu. E amarão ao próximo por amor
próprio. Cada um repetirá: possuo o que dei. Curvemo-nos ante a aurora
da verdade dita pela beleza, da justiça expressa pelo amor."
Justiça
expressa pelo amor e pela experiência, não pelas teses. As cotas são
justas, honestas, solidárias, necessárias. E, mais que tudo, urgentes.
Ou fique a favor, ou pelo menos visite a cadeia.
Fonte: http://www.folhasocial.com/2013/11/as-cotas-para-negros-por-que-mudei-de.html
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