terça-feira, 31 de maio de 2022

Enfrentamento da violência sexual contra a criança e o adolescente

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O mês de maio acabou, mas não o enfrentamento à violência sexual contra a criança e o adolescente. 
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segunda-feira, 30 de maio de 2022

Da anticrese legal na multipropriedade

 Carlos Alberto Ferriani

Nada impede, faltando os pressupostos analisados, que a convenção estabeleça igual regime noutra situação jurídica, caracterizando-se a anticrese convencional.

quarta-feira, 6 de maio de 2020


Introdução

Essas breves reflexões não têm o propósito de examinar o instituto da multipropriedade, que passou recentemente a integrar o nosso ordenamento jurídico. Tampouco o da anticrese, espécie de garantia real que foi mantida no atual Código Civil (CC), ao lado da hipoteca e do penhor, apesar de autorizadas vozes terem se insurgido contra essa orientação. Menos ainda da anticrese legal, que não existe no âmbito do CC, nem do anterior, nem do atual. Melhor dizendo: que não existia, porque a lei 13.777, de 20.12.18, que não teve prazo de vacância estipulado, introduziu, no vigente Código, o instituto da multipropriedade, e, ao regulá-la, contemplou a espécie de anticrese legal.


As singelas observações são feitas em homenagem a um leal e fraterno amigo que conheci na década de 1970, na PUC de São Paulo. No início de minha vida acadêmica, por indicação do professor Agostinho Neves de Arruda Alvim, de quem tive a ventura de ter sido aluno e a quem sucedi, por sua indicação, no magistério do Direito Civil da Faculdade, então denominada Paulista de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, conheci alguns jovens professores que, por nomeação do então reitor da universidade, professor doutor Geraldo Ataliba, ocuparam o lugar deixado por vários e consagrados mestres, como Washington de Barros Monteiro, Nicolau Nazo, Paulo Bonilha, além do professor Agostinho Alvim. Em seus lugares, vieram, para lecionar Direito Civil: Rui Geraldo Camargo Viana, José Osório de Azevedo Júnior, Renan Lotufo, Jorge Lauro Celidônio, Ronaldo Porto Macedo e Walter Ceneviva. Pouco tempo depois, somou-se a estes a sempre querida e admirada professora Maria Helena Diniz, presente até hoje nos quadros da PUC. Foi com esse grupo que convivi e iniciei minha função acadêmica. Walter Ceneviva, sempre muito espirituoso, granjeou dos colegas e de seus alunos enorme admiração e respeito.


Tinha o dom para ensinar e transmitir sua já vasta experiência como exímio e leal advogado.


Consagrou-se como jurista, tendo escrito obras importantes e de grande serventia para o mundo do Direito, em especial na área dos direitos reais.


Por isso, escolhi, para homenageá-lo, um tema ligado a esta parte do Direito Civil e aguardo dele suas delicadas e elegantes críticas.


Da anticrese


A anticrese é uma espécie de direito real.


Integra a relação de direitos reais contemplados pelo art. 1.225 do CC brasileiro. Está referida no inciso X daquele dispositivo. Sua disciplina encontra-se no Capítulo IV do Título X do Livro III da Parte Especial, arts. 1.506 a 1.510, bem como nas disposições de cunho geral, pertinentes às garantias reais, contidas nos arts. 1.419 a 1.430 do mesmo diploma legal.


Trata-se de um direito real de garantia disciplinado juntamente com a hipoteca e o penhor.


A garantia que a anticrese oferece consiste na percepção dos frutos e rendimentos atribuída ao credor, com a entrega, pelo devedor ou por terceiro, de um imóvel urbano ou rural. Em compensação da dívida e de seus acessórios, o credor anticrético recebe o imóvel do devedor ou de terceiro, o qual fica sujeito, por vínculo real (art. 1.419), ao cumprimento da obrigação, mediante a percepção dos seus frutos e rendimentos (art. 1.506). O credor anticrético, diferentemente do credor hipotecário e do credor fiduciário, tem a posse direta do imóvel, pois somente assim poderá exercer seu direito de fruir as utilidades da coisa, nisso consistindo sua garantia. Em relação ao penhor comum, conquanto o credor pignoratício tenha também a posse direta ou imediata da coisa empenhada, como o credor anticrético, essa posse não se presta a identificar uma e outra espécie de garantia, pois enquanto o anticrético usa a coisa objeto da garantia e frui suas utilidades, o pignoratício dela não pode servir-se.


Observa-se, por essas noções introdutórias, que há aspectos diferenciadores entre as espécies de garantias reais. Mas há também características que são comuns.


Além da referência feita à posse, podem ser destacadas, dentre outras, as seguintes semelhanças das garantias reais: somente quem pode alienar a coisa poderá ofertá-la em garantia, e somente o que pode ser alienado poderá ser gravado com hipoteca, penhor e anticrese; se o imóvel for objeto de condomínio, nada impede que o condômino grave a sua parte ideal, mas para constituir garantia real de toda a coisa, é necessária a anuência de todos os condôminos; nas três espécies de garantia, é imperiosa a precisa indicação da coisa gravada, com suas especificações, bem assim a indicação do valor do crédito, ou sua estimativa, o prazo para pagamento, a taxa de juros, se houver; também é comum às garantias reais o pacto comissório, ou seja, a proibição, mesmo com autorização contratual, de o credor garantido ficar com a coisa objeto da garantia. Ao rol de semelhanças, acrescente-se o poder que o proprietário mantém de alienar o bem hipotecado, empenhado ou dado em anticrese, ato que não acarreta a extinção do gravame.


Em contrapartida, há algumas diferenças entre as garantias reais, lembrando-se, a propósito, o direito de excussão, que compete ao credor hipotecário e ao credor pignoratício, enquanto o credor anticrético tem o direito de reter o bem dado em anticrese, pelo prazo máximo de 15 anos, contados de sua constituição, até que a dívida seja paga, podendo ainda arrendar o bem a terceiro, se não houver proibição contratual.


Importante referir, desde já, que o CC, ao disciplinar a hipoteca e o penhor, dedicou alguns dispositivos alusivos à hipoteca legal e ao penhor legal, considerando situações determinadas que, independentemente da vontade das partes envolvidas, acarretam a existência da garantia.


Relativamente à anticrese, porém, não há nenhum preceito sobre a anticrese legal.


Segundo opiniões várias, a anticrese é uma espécie de garantia que se afasta das regras modernas de circulação econômica, pois disponibiliza a coisa apenas em favor de um só credor, que ainda assumirá o pesado ônus de administrá-la eficazmente, para obter os frutos necessários à extinção do débito. Além disso, o devedor fica privado do poder fático sobre o seu bem imóvel, fato que contribui negativamente ao enfrentamento das dificuldades para cumprir a obrigação contraída perante o credor anticrético. Só isso é suficiente para afirmar que a anticrese não se compatibiliza com a função social da propriedade, pela própria dificuldade de o proprietário, desapossado, obter novos créditos, em decorrência da anterior anticrese.


Ante tais observações, não são poucos os que dizem que o legislador não deveria ter perpetuado a anticrese no CC de 2002.


Sendo assim, que importância atualmente poderia suscitar o tema? E mais. Faz sentido tratar da anticrese legal, se nem o diploma anterior contemplava esse tipo de garantia, que decorre não da vontade das partes, mas diretamente da lei?


A explicação encontra-se na edição de uma lei, ainda recente, que cuidou do tema. Trata-se da lei 13.777, de 20.12.18, que dispôs sobre o regime jurídico da multipropriedade e seu registro, inserindo no CC e dando nova redação a vários dispositivos da Lei de Registros Públicos. No CC, esta lei acrescentou os arts. 1.358-B a 1.358-U, enquanto na Lei de Registros Públicos, lei 6.015, de 31.12.73, introduziu modificações nos arts. 176 e 178. Dentre os acréscimos, parece ter contemplado a anticrese legal na multipropriedade.


O texto que autoriza essa afirmação é o preceito contido no art. 1.358-S, parágrafo único, inciso III, do CC, dispositivo, como se disse, acrescentado pela lei 13.777/18, e que tem a seguinte redação:


"Art. 1358-S - Na hipótese de inadimplemento, por parte do multiproprietário, da obrigação de custeio das despesas ordinárias ou extraordinárias, é cabível, na forma da lei processual civil, a adjudicação ao condomínio edilício da fração de tempo correspondente.


Parágrafo único. Na hipótese de o imóvel objeto da multipropriedade ser parte integrante de empreendimento em que haja sistema de locação das frações de tempo no qual os titulares possam ou sejam obrigados a locar suas frações de tempo exclusivamente por meio de uma administração única, repartindo entre si as receitas das locações independentemente da efetiva ocupação de cada unidade autônoma, poderá a convenção do condomínio edilício regrar que em caso de inadimplência: [...]


III - a administradora do sistema de locação fique automaticamente munida de poderes e obrigada a, por conta e ordem do inadimplente, utilizar a integralidade dos valores líquidos a que o inadimplente tiver direito para amortizar suas dívidas condominiais, seja do condomínio edilício, seja do condomínio em multipropriedade, até sua integral quitação, devendo eventual saldo ser imediatamente repassado ao multiproprietário".


O instituto da anticrese legal está, assim, consubstanciado na prerrogativa consistente na utilização dos valores líquidos cabíveis ao inadimplente para amortização de suas dívidas condominiais. Sem que a lei tivesse utilizado o termo "anticrese legal", dela tratou ao permitir que, em compensação de dívida, os frutos do bem imóvel fossem utilizados.


Esta faculdade, percepção de frutos e rendimentos, implica o direito real de garantia da espécie anticrese; e como ela resulta diretamente da lei, não da convenção, a anticrese se diz legal.


Para que essa garantia legal fique precisamente configurada, é preciso sejam satisfeitos vários requisitos.


Da multipropriedade


O primeiro pressuposto é tratar-se de uma situação jurídica de multipropriedade.


Consoante o disposto no art. 1.358-C do CC, a multipropriedade caracteriza-se como um regime de condomínio em que cada um dos proprietários de um mesmo imóvel é titular de uma fração de tempo, à qual corresponde a faculdade de uso e gozo, com exclusividade, da totalidade do imóvel, que deverá ser exercida por todos de forma alternada.


Se o regime é de condomínio, todos os condôminos têm na coisa comum o mesmo interesse.


Nesse sentido, a multipropriedade praticamente identifica-se com o condomínio voluntário ou forçado, disciplinado pelo CC nos arts. 1.314 e seguintes.


No entanto, dele se distancia, porque o uso e gozo, no regime do condomínio clássico, segundo terminologia empregada por alguns estudiosos, são direitos exercidos em conjunto e de maneira compatível com o interesse de todos. Isto é, o uso de um condômino não pode excluir o mesmo direito que outro tem na coisa comum. Na multipropriedade, como está referido na lei, o direito de uso e gozo é exercitado com exclusividade por um dos multiproprietários, como se proprietário único fosse, tendo por objeto o imóvel todo. Esta prerrogativa faz com que a multipropriedade se avizinhe do condomínio edilício, em que cada condômino é dono exclusivo de sua unidade autônoma. Mas também com ele não se confunde, além de que podem coexistir a multipropriedade e o condomínio edilício. A multipropriedade, na falta de uma melhor identidade, é um condomínio temporal, isto é, num determinado lapso de tempo, o multiproprietário é dono exclusivo do imóvel todo submetido a esse regime, reunindo em suas mãos os poderes do proprietário, de uso, gozo, disposição e reivindicação.


O poder de disposição pode ser exercido pelo multiproprietário a qualquer tempo; os de uso e gozo, somente durante o período temporal que lhe competir por convenção estabelecida, que necessariamente não requer seja igual para todos.


Há várias disposições no CC, introduzidas pela lei 13.777/18, que cuidam de direitos e obrigações do multiproprietário, como tantas outras que se referem à administração da multipropriedade.


O exame mais abrangente refoge ao propósito destes breves comentários. O que se pretendeu, com estas observações acima, foi apenas oferecer os contornos do instituto, insistindo-se que a multipropriedade tem lugar em condomínios edilícios e em condomínios voluntários.


A anticrese legal aparece na seção destinada a disposições específicas relativas a unidades autônomas de condomínios edilícios. Portanto, pode-se acrescentar um segundo pressuposto na análise que constitui o objeto do artigo, qual seja: só tem lugar a anticrese legal se a multipropriedade referir-se a unidades autônomas de condomínios edilícios, cujo regime jurídico está minuciosamente estabelecido pelos arts. 1.331 a 1.358 do CC. Se se cuidar de uma situação jurídica de multipropriedade que não seja referente a unidades autônomas de um condomínio edilício, não há lugar para invocar a garantia da anticrese, a menos que ela tenha sido objeto de convenção. Caso, então, de anticrese convencional, não legal.


4 Do inadimplemento obrigacional Um terceiro pressuposto, obviamente, é a caracterização do inadimplemento das obrigações legais e convencionais do multiproprietário. Para que a garantia possa "funcionar", é indispensável que o inadimplemento esteja perfeitamente caracterizado, lembrando que nosso sistema adotou, como regra, a mora ex re, ou seja, considera-se em mora o devedor que, culposamente, não cumpre sua obrigação no tempo, na forma e no modo devidos, independentemente de prévia interpelação, destacando-se os elementos subjetivo e objetivo do inadimplemento. Se for convencionada a mora ex persona, faz-se necessária a prévia interpelação.


Não são, impõe observar, quaisquer obrigações do multiproprietário, mas apenas as de custeio das despesas ordinárias e extraordinárias do condomínio.


Ordinárias são as despesas que se entendem necessárias à administração, aquelas que se referem a gastos rotineiros de manutenção do condomínio; e extraordinárias, ao contrário, as que dizem respeito, a título de exemplo, à reposição das condições de habitabilidade, as obras de reformas ou acréscimos que interessem à estrutura do imóvel.


A Lei de Locações, lei 8.245, de 18.10.91, alude às despesas ordinárias e extraordinárias do condomínio edilício, nos arts. 22, inciso X, e 23, inciso XII, respectivamente, sem, contudo, esgotar o número delas. Se o multiproprietário der em locação a fração temporal de que é titular, responde, perante o condomínio, tanto pelas despesas extraordinárias quanto pelas ordinárias, podendo, no entanto, exigir estas últimas daquele em favor de quem constituiu a locação. Perante a administração do condomínio, o multiproprietário é o responsável pelas despesas de custeio, ainda que tenha pactuado a isenção de sua responsabilidade, no contrato de locação, ou de comodato. Noutras palavras, esta cláusula contratual não opera efeitos em relação ao condomínio em multipropriedade, que não tem, não é demais lembrar, personalidade jurídica, não constituindo um ente de direito.


Do sistema denominado pool


Como corolário desse terceiro pressuposto, isto é, do inadimplemento, decorre o direito, garantido por anticrese legal, do condomínio de compelir o multiproprietário ao cumprimento das obrigações relativas ao custeio, compreendendo as despesas ordinárias e extraordinárias. Mas esse direito, cumpre destacar, somente existe se estiverem presentes dois sub-pressupostos: o primeiro refere-se à existência de um sistema instituído pela convenção de condomínio, em que os condôminos possam, ou sejam obrigados a, locar suas frações de tempo exclusivamente por meio de uma administração única, mediante a repartição das receitas da locação independentemente da efetiva ocupação da cada unidade, constituindo o que se denomina um pool, cujo significado equivale a um grupo de pessoas que trabalham em conjunto para um mesmo fim, uma espécie de consórcio, ou ainda uma associação de interessados que se propõem a realizar um projeto específico; o segundo sub-pressuposto está na prerrogativa livre de se constituir esse sistema por meio da convenção do condomínio, ou seja, o sistema de pool deve necessariamente ser autorizado pela convenção. Havendo cláusula nesse sentido, o multiproprietário inadimplente ficará proibido de exercer seus direitos de uso e gozo no período que lhe é reservado, até que quite a dívida; a sua fração de tempo passará a integrar o pool da administradora; e a administradora se municiará de poderes para utilizar os valores líquidos a que tiver direito o multiproprietário inadimplente. Caso contrário, isto é, não havendo previsão na convenção de condomínio, o inadimplente deverá ser compelido à purgação de sua mora mediante os expedientes jurídicos e judiciais comuns colocados à disposição do credor, tanto pela legislação substantiva quanto pela adjetiva. Assim, para se poder falar em anticrese legal, é indispensável que a administração do condomínio temporal esteja no regime de pool e que haja previsão na convenção condominial, além evidentemente da satisfação dos demais pressupostos que estão sendo apontados. Que fique assentado, porém, que a ausência desses requisitos não impede seja convencionada, entre devedor e credor, a garantia consistente na anticrese. Caso de anticrese convencional, não legal.


Conclusões

A multipropriedade, embora não seja uma novidade entre nós, pois de há muito tempo ocorre, passou a integrar nosso ordenamento jurídico com a edição da lei 13.777, de 20.12.18, que acrescentou ao CC os arts. 1.358-B ao 1.358-U. Trata-se de um condomínio temporal, em que o condômino tem, como o dono, os direitos de a qualquer tempo dispor, gravar e reaver a fração que tem num imóvel urbano ou rural, podendo a esse objeto, além de suas pertenças, acrescer acessórios vários. Os direitos de uso e gozo, o multiproprietário tem, com exclusividade, durante o período estabelecido em convenção, que não pode ser inferior a sete dias.


A multipropriedade pode incidir sobre bens em condomínio voluntário ou em condomínio edilício.


As despesas de custeio, sejam ordinárias, sejam extraordinárias, são devidas pelo multiproprietário.


Ocorrendo o inadimplemento dessa obrigação, poderá ele ser compelido por ação própria, segundo os expedientes judiciais previstos na legislação processual civil. Para garantir o cumprimento dessa obrigação, e desde que a multipropriedade incida sobre imóveis em condomínio edilício, poderá a administração, se a convenção autorizar e o sistema adotado for o de pool, apropriar-se dos frutos e rendimentos do imóvel, percebidos no período afeto ao multiproprietário, o que caracteriza a garantia real denominada anticrese. E como essa prerrogativa decorre da lei, trata-se de anticrese legal. Nada impede, faltando os pressupostos analisados, que a convenção estabeleça igual regime noutra situação jurídica, caracterizando-se a anticrese convencional.

__________

O artigo foi publicado na Revista do Advogado, da AASP, ano XXXX, nº 145, de abril de 2020.

*Carlos Alberto Ferriani é professor de Direito Civil da PUC/SP, no curso de graduação, e na especialização da Cogeae da PUC/SP. Advogado.

Fonte: https://www.migalhas.com.br/depeso/326191/da-anticrese-legal-na-multipropriedade

 

Proibições legais relativas à adoção

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quinta-feira, 26 de maio de 2022

Resolução Nº 449 de 30/03/2022, CNJ - sequestro internacional de crianças

Resolução nº 257/2018, CNJ - Dispõe sobre a aplicação da Convenção de Haia sobre os aspectos civis do sequestro internacional de menores (1980). (FOI REVOGADA)

Resolução Nº 449 de 30/03/2022, CNJ - Dispõe sobre a tramitação das ações judiciais fundadas na Convenção da Haia sobre os aspectos civis do sequestro internacional de crianças (1980), em execução por força do Decreto nº 3.413, de 14 de abril de 2000.

O PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ), no uso de suas atribuições legais e regimentais,

CONSIDERANDO a Convenção da Haia de 1980, que trata dos Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças, aprovada pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo no 79, de 15 de setembro de 1999, e promulgada pelo Decreto Presidencial no 3.413, de 14 de abril de 2000;

CONSIDERANDO que a Convenção é aplicável a qualquer criança que tenha residência habitual em um Estado Contratante, imediatamente antes da violação do direito de guarda ou de visita, e que essa aplicação cessará quando a criança atingir a idade de dezesseis anos, diante do conceito convencional de criança;

CONSIDERANDO que é da competência da Justiça Federal, nos termos do artigo 109, I e III, da Constituição da República, a matéria relacionada à restituição internacional e visitação transnacional de crianças com base na Convenção da Haia de 1980;

CONSIDERANDO o dever de o Brasil responder com brevidade os pedidos de retorno da criança, assinalando a Convenção o prazo de seis semanas para tanto (artigo 11) e a necessidade de observar procedimento judicial compatível com essa determinação;

CONSIDERANDO que o retorno imediato da criança é a medida prevista pela Convenção como aquela que melhor atende ao interesse da criança em caso de transferência ilícita ou retenção indevida (art. 1, alínea “a”);

CONSIDERANDO que a Convenção não admite a modificação das condições de guarda, as quais devem ser demandadas em ação própria perante a autoridade do Estado da residência habitual da criança (artigo 16);

CONSIDERANDO que a integração ao novo meio não pode ser conhecida nos casos de transferência ou retenção recente (artigo 12, 2);

CONSIDERANDO a deliberação do Plenário do CNJ no Ato Normativo no 0000904-78.2022.2.00.0000, na 347ª Sessão Ordinária, realizada em 22 de março de 2022;

 

RESOLVE:

 

Art. 1o Os processos que versarem sobre a restituição de crianças ou sobre o direito de visita, fundadas na Convenção da Haia de 1980, promulgada pelo Decreto no 3.413, de 14 de abril de 2000, reger-se-ão pelas disposições de direito material e processual aplicáveis, observando-se as determinações e orientações complementares estabelecidas nesta Resolução.

 

CAPÍTULO I

DO DIREITO

Art. 2o Na interpretação e aplicação da Convenção da Haia de 1980, observar-se-ão as normas de direito internacional privado previstas na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, em especial no art. 7o, aplicando-se, conforme o caso, o direito privado do Estado de residência habitual da criança ou o Código Civil brasileiro.

 

Da residência habitual

Art. 3o Aplica-se a Convenção aos casos em que, no momento da transferência ou retenção, a criança mantinha residência habitual em Estado signatário.

 

Da guarda

Art. 4o Aplica-se a Convenção aos casos em que, no momento da transferência ou retenção, havia outra pessoa natural ou instituição com direito de guarda da criança de acordo com a legislação do Estado onde mantinha residência habitual antes da transferência ou retenção.

§ 1o Considera-se guarda o direito de ter a criança sob seus cuidados e de decidir sobre o lugar de residência dela, na forma do artigo 5o, alínea “a”, da Convenção.

§ 2o Na dúvida sobre a atribuição e sobre a qualificação jurídica do direito de guarda, recomenda-se ao magistrado observar a lei do país de residência habitual da criança.

§ 3o O direito de guarda pode ser atribuído diretamente pela legislação, por decisão judicial ou administrativa ou por contrato (artigo 3o, 2o, da Convenção).

 

Da ilicitude da transferência ou retenção

Art. 5o Aplica-se a Convenção à transferência ou retenção ilícita da criança do Estado de sua residência habitual.

Parágrafo único. Considera-se ilícita a transferência ou retenção quando:

I ­­– tenha havido violação a direito de guarda, e

II – esse direito estivesse sendo exercido de maneira efetiva, individual ou conjuntamente, no momento da transferência ou da retenção, ou devesse sê-lo caso tais acontecimentos não tivessem ocorrido.

 

Das partes, do interessado e do ministério público

Art. 6o A União será intimada, na pessoa de seu representante judicial, nos processos judiciais de retorno fundados na Convenção da Haia de 1980, em que não for autora, podendo assumir qualquer dos polos ou atuar como amicus curiae.

Art. 7o A pessoa em cuja companhia está a criança no território brasileiro será parte legítima para responder ao processo.

Art. 8o A pessoa natural ou a instituição que alega titularizar direito de guarda da criança de acordo com a legislação do Estado onde mantinha residência habitual antes da transferência ou retenção é considerada interessada nos processos judiciais em que a União for parte autora, podendo intervir como assistente.

§ 1o A União manterá contato com a pessoa interessada, cientificando-a dos atos cuja participação é conveniente ou necessária.

§ 2o Caso necessário, a União fornecerá ao juízo os meios de contato da pessoa interessada e solicitará sua notificação dos atos processuais.

Art. 9o O Ministério Público Federal será intimado de todos os termos do processo.

 

Do despacho inicial

Art. 10. Recebida a petição inicial, o juiz federal tomará as seguintes providências:

I – analisará o pedido de tutela provisória, se for o caso;

II – determinará a citação da parte ré;

III – designará audiência de mediação, a se realizar no prazo de 30 (trinta) dias, sempre que entender viável; e

IV – determinará, desde logo, a produção das provas que forem requeridas ou possam ser determinadas de ofício, assegurando o direito da parte ré à participação nesta fase.

Parágrafo único. No mandado de citação, deverá constar:

I – a determinação de que o réu forneça, durante o cumprimento do ato, todos os seus meios de contato – telefone, e-mail, endereços alternativos – e comunique previamente ao juízo qualquer propósito de mudar de endereço ou de se ausentar de seu local de domicílio atual, até a conclusão do processo e enquanto a criança estiver sob seus cuidados; e

II – a informação de que o prazo para a contestação iniciará da data da juntada do mandado cumprido, na forma do art. 231, II, do Código de Processo Civil.

 

Da resposta

Art. 11. O prazo para resposta será de 15 (quinze) dias, contados a partir da juntada do comprovante de citação.

Art. 12. A contestação deverá se ater aos fundamentos que obstam o retorno da criança, nos termos da Convenção, notadamente:

I – a inexistência do direito de guarda sobre a criança, pela pessoa que supostamente a teria de acordo com a lei do Estado estrangeiro, no momento da transferência ou da retenção;

II – o não exercício efetivo do direito de guarda pela pessoa que supostamente a teria de acordo com a lei do Estado estrangeiro, no momento da transferência ou da retenção;

III – a preferência da criança com idade superior a doze anos por não retornar ao país de residência habitual;

IV – a existência de um risco grave de a criança, no seu retorno, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável;

V – a integração da criança ao local de residência atual, se, na data do recebimento do pedido de cooperação jurídica pelo Estado brasileiro, decorreu um ano ou mais da data da transferência ou da retenção indevidas; e

VI – a verificação de que a restituição da criança violaria os princípios fundamentais da República brasileira quanto à matéria de proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais. 

 

Da mediação

Art. 13. A audiência de mediação será realizada na forma da lei processual civil.

§ 1o À pessoa interessada será assegurada a participação na audiência, podendo utilizar meios eletrônicos de comunicação a distância.

§ 2o A mediação incentivará a participação de ambos os genitores nos direitos e deveres decorrentes do poder familiar.

 

Da organização e de saneamento

Art. 14. Não obtida a mediação, o juiz realizará, ato contínuo, a organização e o saneamento do processo, decidindo todas as questões previstas no art. 357 do Código de Processo Civil, e designará audiência de instrução e julgamento em prazo não superior a 30 (trinta) dias.

§ 1o As partes requererão a produção de provas na petição inicial e na contestação, respectivamente, e arrolarão as testemunhas até a organização e saneamento.

§ 2o As testemunhas que não se encontrarem no Brasil serão apresentadas pela parte requerente independentemente de intimação, facultada a utilização de videoconferência.

§ 3o É inadmissível a prova sobre a adaptação da criança ao Brasil, se transcorrido menos de um ano entre a data da subtração ou retenção ilícita e o recebimento do pedido de cooperação jurídica internacional pela Autoridade Central brasileira, ou o início do processo judicial no caso de a demanda ser ajuizada pela pessoa deixada no Estado da residência habitual da criança, devidamente representada por advogado.

§ 4o Admitida a produção de prova pericial, o juiz nomeará perito e estabelecerá calendário para sua realização, devendo o resultado ser impreterivelmente apresentado até a data da audiência de instrução e julgamento.

§ 5o O juiz poderá deixar de conhecer da alegação sobre grave risco contida no art. 13, alínea “d”, se a prova for de difícil ou demorada obtenção e a matéria puder ser tratada pelas autoridades do país de residência habitual da criança.

§ 6o Excepcionalmente, o prazo para a realização da audiência de instrução e julgamento poderá ser prorrogado por até 30 (trinta) dias, a pedido das partes, ou no interesse da produção de provas indispensáveis.

 

Da audiência de instrução e julgamento

Art. 15. Salvo motivo de força maior, não haverá adiamento da audiência de instrução e julgamento.

§ 1o A audiência será concluída na mesma data, salvo absoluta impossibilidade.

§ 2o A audiência suspensa será retomada na primeira oportunidade.

Art. 16. Oferecida a defesa prevista na alínea “c” do art. 13 da Convenção da Haia de 1980, o juiz ouvirá a criança e averiguará se a manifestação é livre da influência indevida da pessoa responsável pelo sequestro ou retenção ou terceiros.

 

Das traduções

Art. 17. Poderão ser utilizados quaisquer recursos para a compreensão de documentos em língua estrangeira, inclusive tradutores automáticos, se o documento for produzido por pessoa que goza do benefício da assistência judiciária gratuita ou a versão juramentada puder atrasar a tramitação processual.

 

Da tutela provisória

Art. 18. O deferimento da tutela provisória observará a legislação processual civil.

§ 1o Em caso de risco de novo sequestro ou retenção indevidos, o juiz considerará a adoção de medidas restritivas da liberdade de viajar da pessoa em cuja companhia está a criança e da própria, como retenção de passaporte e alerta às autoridades de fronteira.

§ 2o Havendo elementos para crer que a criança está em situação de risco, o juiz considerará medidas de proteção, em especial o acolhimento institucional ou familiar.

§ 3o O juiz considerará a imediata devolução da criança, em especial se houver evidência de que a pessoa que está em companhia da criança não tem direito semelhante ao qualificado como guarda, ainda que compartilhada, pelo direito brasileiro (art. 1.583, § 1o, do Código Civil), mesmo que detenha direito semelhante ao qualificado como poder familiar pelo direito brasileiro (art. 1.630 do Código Civil).

 

Dos recursos

Art. 19. Os recursos em processos previstos nesta Resolução serão julgados em até duas sessões ordinárias, contadas da data da conclusão ao relator.

 

Da execução da ordem de retorno

Art. 20. O juiz federal poderá solicitar o auxílio da Advocacia da União e da Autoridade Central brasileira para a realização, no âmbito de suas atribuições, dos procedimentos concernentes à execução da decisão judicial que ordenar o retorno da criança, certificando-se do seu bem-estar e da sua segurança no território nacional.

Parágrafo único. O juiz federal poderá, igualmente, solicitar o apoio de profissionais da área da psicologia e da assistência social, além do acompanhamento da Polícia Federal, se necessário.

 

Das ações de guarda na jurisdição brasileira

Art. 21. Nos termos do artigo 17 da Convenção da Haia de 1980, a decisão proferida pelo juiz federal com determinação de retorno da criança deverá ser cumprida ainda que haja decisão relativa ao direito de guarda proferida em ação judicial perante a Justiça Estadual brasileira.

Art. 22. Ao tomar conhecimento da pendência de processo relativo à guarda de criança em curso na Justiça Estadual, o juiz federal comunicará ao juiz de direito a tramitação do pedido de restituição, formulado nos termos do artigo 16 da Convenção da Haia de 1980.

Parágrafo único. Constatada a tramitação de processo relativo à guarda de criança na Justiça Estadual, nas hipóteses previstas nesta Resolução, ficará ele sobrestado até o pronunciamento da Justiça Federal sobre o retorno ou não da criança.

 

Das custas, despesas e honorários

Art. 23. Os procedimentos decorrentes do cumprimento da Convenção seguirão as regras gerais do Código de Processo Civil (CPC) quanto à isenção de custas, honorários, taxas, distribuição do ônus da prova e também quanto à assistência jurídica gratuita, quando requerida por uma parte.

 

CAPÍTULO II

DO PROCESSO JUDICIAL PARA ASSEGURAR DIREITO DE VISITA

Art. 24. Ao processo judicial para assegurar o direito de visita, na forma do artigo 21 da Convenção da Haia de 1980, aplica-se, no que couber, esta Resolução.

 

CAPÍTULO III

DAS PROVIDÊNCIAS ADMINISTRATIVAS

Do acompanhamento pela Corregedoria

Art. 25. A Corregedoria Nacional de Justiça poderá instaurar Pedido de Providências para acompanhamento de ações previstas nesta Resolução e dos respectivos recursos e direcionará correspondência ao magistrado, encaminhando material informativo e reforçando a importância de adotar decisão conclusiva nos prazos estabelecidos.

Parágrafo único. As atribuições deste artigo poderão ser exercidas concorrentemente com o Conselho da Justiça Federal, a Corregedoria-Geral da Justiça Federal e as Corregedorias Regionais da Justiça Federal.

 

Dos juízes de enlace

Art. 26. A Presidência do Supremo Tribunal Federal designará um juiz coordenador e juízes de enlace para a Convenção da Haia de 1980 entre os juízes de cada um dos Tribunais Regionais Federais.

§ 1o Aos juízes de enlace para a Convenção da Haia no Brasil caberá:

I – o compartilhamento de informações gerais sobre a Convenção e sobre a Rede de Juízes internacionalmente criada para lidar com os casos de sequestro internacional de crianças;

II – estimular a participação de juízes em seminários e eventos, nacionais e internacionais, sobre o tema da Convenção, que ajudem a contribuir no desenvolvimento da especialização daqueles que lidam com a matéria;

III – estabelecer comunicações diretas com juízes brasileiros relacionadas com casos específicos, com o objetivo de colaborar para a solução de impasses que impeçam a regular aplicação da Convenção no Brasil, realizando reuniões periódicas de acompanhamento das causas em andamento com os respectivos magistrados de primeira e segunda instância;

IV – estabelecer relações com as autoridades centrais brasileiras e com todos aqueles envolvidos com a proteção internacional de crianças sequestradas;

V – atuar como intermediário entre magistrados e as corregedorias na solução de demandas e em busca de estabelecer diretrizes destinadas a promover o célere andamento e julgamento dos processos que envolvam a Convenção;

VI – atuar como facilitador na prática de atos processuais que envolvam a jurisdição do Estado de residência habitual da criança;

VII – identificar dificuldades e problemas que possam surgir no curso do processo e estejam relacionadas com o pedido oriundo da autoridade central estrangeira; e

VIII – participar de reuniões convocadas pela Corregedoria Nacional de Justiça, cujo assunto esteja diretamente relacionado com a Convenção.

§ 2o Compete ao Coordenador, além das atribuições conferidas aos juízes de enlace:

I – estabelecer contatos com congêneres, autoridades centrais e outras autoridades no exterior, no interesse da Convenção e com a Conferência da Haia de Direito Internacional Privado;

II – estabelecer comunicações diretas com juízes estrangeiros relacionadas com casos específicos, com o objetivo de colaborar para a solução de impasses que impeçam a regular aplicação da Convenção;

III – coordenar a atuação dos juízes de enlace.

 

Da autuação

Art. 27. Os processos tendo por pedido a restituição de crianças terão como assunto principal: “10921 Restituição de Criança, Convenção da Haia 1980”.

Parágrafo único. O Comitê Gestor das Tabelas Processuais Unificadas do Poder Judiciário e da Numeração Única poderá modificar ou desdobrar o assunto, bem como criar assunto específico para a regulamentação do direito de visita (artigo 21 da Convenção).

 

Do segredo de justiça

Art. 28. O segredo de justiça incidente sobre os processos de que trata esta Resolução não obstará a publicação das decisões proferidas, desde que omitidos elementos que permitam a identificação dos interessados.

 

CAPÍTULO IV

DAS DISPOSIÇÕES FINAIS E TRANSITÓRIAS

 Art. 29. Revoga-se a Resolução CNJ n. 257/2018.

Art. 30. Esta Resolução entrará em vigor 30 (trinta) dias após sua publicação.

 

Ministro LUIZ FUX


Fonte: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/4458

segunda-feira, 23 de maio de 2022

Os riscos da supressão do instituto da separação

 Por 

O Supremo Tribunal Federal (STF) julgará, no próximo dia 15 de junho, o Recurso Extraordinário 1.167.478/RJ, que tem o ministro Luiz Fux como relator. O tema 1.053 de repercussão geral versa sobre a subsistência da separação como instituto autônomo e também se indaga se permanece como requisito para o divórcio após a promulgação da EC nº 66/2010.

Como presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (Adfas), que atua como amicus curiae nesse processo, e como advogada familiarista, tenho grande preocupação com esse julgamento. A depender do entendimento do STF, ocorrerão graves violações aos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal.

Com a EC 66/2010 a Constituição mudou para introduzir o divórcio direto, em seu artigo 226, § 6º, eliminando o prazo que antes existia de um ano de separação judicial ou extrajudicial para que as pessoas casadas pudessem se divorciar.

O divórcio foi facilitado, o que já era um anseio social. A separação também foi facilitada, já que não tem mais o prazo de um ano de distanciamento conjugal para sua decretação por pedido unilateral. Até aí, nenhum problema, muito ao contrário.

Porém, uma corrente de pensamento passou a interpretar que teria sido eliminado o próprio instituto da separação e não só a sua existência como requisito do divórcio. Se esta interpretação for aceita pelo STF, ocorrerão muitas violações à Constituição Federal, aos direitos fundamentais ali previstos, que, a seguir, são destacados:

Direito fundamental à liberdade no exercício de direitos em razão da crença — O primeiro direito fundamental violado pela interpretação segundo a qual estaria eliminada a separação em nosso ordenamento jurídico é aquele previsto no artigo 5º, inciso VIII, da CF, pelo qual é assegurado o exercício de direitos em razão da crença.

Exatamente por ser um Estado laico, em nosso país é inviolável a liberdade no exercício de direitos em razão da crença.

Em várias correntes evangélicas e no catolicismo, o vínculo conjugal é indissolúvel, de modo que somente a separação é permitida a quem professa essas religiões. Se desaparecer o instituto da separação, restaria apenas o divórcio como forma de dissolução conjugal. Impedidos de se divorciarem por sua crença, esses religiosos teriam duas opções: viver sob o estado civil de casados e na situação irregular de separados de fato perante o Estado ou divorciar-se em desrespeito aos preceitos religiosos.

Observe-se que a separação fática não modifica o estado civil, não extingue por si só o regime de bens e os deveres conjugais, enquanto a separação judicial ou extrajudicial opera tudo isto, já que dissolve a sociedade conjugal (CC, artigo 1.576). A separação meramente fática cria um limbo, que efetivamente não se equipara à separação judicial ou extrajudicial.

Portanto, a interpretação que pretende eliminar o instituto da separação viola o direito fundamental à liberdade de regularização do estado civil, por ser a forma de dissolução conjugal admitida por quem não pode se divorciar em razão de sua crença.

Direito fundamental à liberdade - O segundo direito violado pela interpretação segundo a qual deveria ser declarada a inconstitucionalidade das normas sobre a separação judicial é o direito à liberdade (CF, artigo 5º, caput).

Há casais, independentemente do credo, que, diante de crise conjugal, não pretendem a dissolução do vínculo conjugal e necessitam da separação para a regularização de seu estado civil. Desse modo, com a separação, podem restabelecer a sociedade conjugal a qualquer tempo, na conformidade do artigo 1.577 do Código Civil.

Note-se que o Conselho Nacional de Justiça indeferiu o pedido de providências nº 0005060-32.2010.2.00.0000, realizado pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família, para modificação da Resolução CNJ 35 e considerou que somente houve a supressão do prazo de separação pela EC 66/2010.

O Código de Processo Civil de 2015, após amplo debate, adotou a separação como instituto autônomo, o que é mais um reforço relevante à sua recepção pela EC 66/2010.

Direitos fundamentais à integridade física e psíquica e à honra - Outros direitos seriam violados pela supressão do instituto da separação: a integridade física e psíquica e a honra, que se encontram na cláusula geral de tutela da personalidade — a dignidade da pessoa humana (CF, artigo 1º III).

Isso porque é nas disposições legais do Código Civil sobre a separação judicial que estão estabelecidas as consequências sancionatórias do descumprimento dos deveres conjugais (artigos 1.578 e 1.704), sendo que não foram inseridas no divórcio porque aquele diploma entrou em vigor quando o divórcio era constitucionalmente conversivo. Antes do divórcio as pessoas deveriam estar separadas e com esses assuntos resolvidos.

Assim, embora a corrente que pretende a supressão da separação alegue que o faz para defender a laicidade do Estado brasileiro, o intuito é a eliminação das consequências sancionatórias do descumprimento dos deveres conjugais, transformando-os em meras recomendações, já que dever sem sanção não é jurídico.

Alega-se que descabe falar em culpa nas relações de família, quando, em verdade, culpa é o descumprimento consciente de uma norma de conduta. Se deixarem de existir normas de conduta, deixaria de existir o próprio casamento, como pontua ANTONIO JORGE PEREIRA JR [1]. Se até a compra de um pãozinho gera deveres e direitos entre o consumidor e a padaria, obviamente que o casamento deve continuar a gerar direitos e deveres entre as pessoas que se casam.

Aliás, não se fala no posicionamento que adoto em culpa como condição essencial da dissolução conjugal. A dissolução conjugal cumulada com o pedido de declaração do descumprimento de norma de conduta é uma das opções para o cônjuge vitimado, que, pode escolhê-la ou preferir a espécie não culposa, em preservação, inclusive, de seu direito à liberdade.

No Código Civil os deveres conjugais são regulados no artigo 1.566, que estabelece a fidelidade e o respeito. O objeto do dever de respeito reside nos direitos da personalidade do cônjuge, como a vida, a integridade física e psíquica e a honra.

As consequências do descumprimento dessas normas de conduta são as seguintes: perda do direito à pensão alimentícia plena, com conservação somente dos alimentos mínimos (CC, artigo 1.704, caput e parágrafo único); e perda do direito ao uso do sobrenome conjugal, salvo as exceções expressas (CC, artigo 1.578, I, II e III).

É inaceitável que, diante da tutela aos direitos fundamentais e à dignidade humana, que o cônjuge vitimado pela agressão física ou moral, inclusive pela infidelidade, possa ser obrigado a prestar ao agressor pensão alimentícia plena, ou seja, que englobe o "necessarium vitae" e o "necessarium personae".

Se for eliminado o instituto da separação, mulheres que sofrem violência doméstica e sustentam a casa terão de pagar pensão alimentícia ao agressor, o que importa em violação ao artigo 226, § 8º, pelo qual "O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações". Evidente seria o incentivo à violência se o homem agredisse a mulher e ainda fizesse jus a receber dela pensão alimentícia plena [2].

Também inaceitável seria obrigar a pessoa do cônjuge traído a pagar ao outro alimentos plenos, que têm como parâmetro as possibilidades de quem presta a pensão e todas as necessidades de quem a recebe, da alimentação ao lazer, passando por habitação, vestuário e até mesmo educação, entre outras despesas do cônjuge infiel, como, por exemplo, tratamentos de natureza estética.

Isso equivaleria a endossar a violação à integridade física e moral de uma pessoa, por ser casada, em desacato ao princípio da dignidade da pessoa humana.

No mesmo sentido, não há como aceitar que o cônjuge que sofre essas violações seja forçado a calar-se em relação ao nome de sua família. Violação ao direito ao nome, e, portanto, à dignidade, esta é a consequência da interpretação que pretende a eliminação do instituto da separação.

Reitere-se que a eliminação das sanções civis ao descumprimento de dever conjugal equivaleria a transformar esses deveres em meras recomendações, como acentua a ministra Nancy Andrighi [3].

Também estimularia a poligamia, vale dizer, infirmaria o pilar do casamento que é a monogamia e levaria a grave contradição com as duas teses de Repercussão Geral recentemente firmadas sobre os temas 526 e 529, que reconheceram a plena vigência do dever de fidelidade e, portanto, das consequências de seu inadimplemento, respectivamente:

"É incompatível com a Constituição Federal o reconhecimento de direitos previdenciários (pensão por morte) à pessoa que manteve, durante longo período e com aparência familiar, união com outra casada, porquanto o concubinato não se equipara, para fins de proteção estatal, às uniões afetivas resultantes do casamento e da união estável" (STF, RE 883.168/SC, rel. min. DIAS TOFFOLI, j. 03/08/2021).
"A preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes, ressalvada a exceção do artigo 1723, §1° do Código Civil, impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro." (STF, RE 1.045.273/SE, rel. min. ALEXANDRE DE MORAES, j. 21/12/2020).

E não tem apoio o argumento de que o cônjuge violador poderia ficar sujeito a passar fome, diante dos alimentos indispensáveis que são assegurados ao culpado (CC, artigo 1.704, parágrafo único), que servem às necessidades básicas de quem não tem aptidão para o trabalho e parentes em condições de auxiliá-lo.

Mesmo que fosse possível considerar violação à privacidade o relato em processo judicial sigiloso de comportamentos do cônjuge praticados em violação aos deveres que assumiu no casamento, pelo princípio da ponderação, os direitos à honra e à integridade física e psíquica deverão prevalecer.

Considerações finais
Na doutrina, vários juristas de escol defendem a manutenção do instituto da separação.

Conforme Rosa Maria De Andrade Nery: "A separação consensual e judicial, entretanto, para os casais que pretendem o término da sociedade conjugal, mas, por razões pessoais não queiram, ou o término do vínculo matrimonial, ainda é possível como admitido pelo CPC 23 III e 731 ss" [4].

Também Carlos Alberto Dabus Maluf e Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus Maluf defendem a manutenção da separação judicial com ou sem culpa após a EC 66/2010 [5].

Como afirma Venceslau Tavares, "O direito ao divórcio não depende de comprovação da separação (judicial ou de fato). Remanesce, contudo, a separação judicial como uma faculdade conferida ao casal" [6].

Cite-se, ainda, Lauane Andrekowisk Volpe Camargo, para quem "a separação não acabou, existe, e é uma opção não excluída pela Emenda Constitucional n° 66/2010" [7] .

A jurisprudência também é vasta no entendimento de que o instituto da separação permanece no ordenamento brasileiro após a EC 66/2010, tanto de tribunais estaduais como do Superior Tribunal de Justiça [8].

Por último, temos de ter presente que a manutenção do instituto da separação e de suas normas, inclusive as que estipulam sanção a quem descumpre dever conjugal, serve também para que sejam aplicadas ao divórcio.

Como destaca o ministro Luis Roberto Barroso, a entrada em vigor de nova norma constitucional exige um diálogo entre o novo dispositivo e a legislação que se encontra vigente no ordenamento [9]:

"A interpretação constitucional conduz-se sob a inspiração de determinados princípios cardeais, que a singularizam, dando-lhe um toque de especificidade. Dentre os princípios, destacam-se, para os fins do tópico aqui versado, o da supremacia da Constituição e o da continuidade da ordem jurídica. [...] Merece relevo, por igual, o princípio da continuidade da ordem jurídica. Ao entrar em vigor, a nova Constituição depara-se com todo um sistema legal preexistente. Dificilmente a ordem constitucional recém-estabelecida importará em um rompimento integral e absoluto com o passado."

Em suma, a eficácia direta da Constituição Federal em todo o ordenamento jurídico leva à convicção de que as regras sobre a separação, judicial e extrajudicial, tanto em relação ao instituto em si, como às sanções atinentes ao descumprimento de dever conjugal, foram recepcionadas pela Emenda 66/2010, que se limitou a retirar os requisitos temporais do divórcio.


[1] Antonio Jorge Pereira Jr: Da afetividade à efetividade nas relações de família. In Afeto e Estruturas Familiares. Maria Berenice Dias, Eliene Ferreira Bastos e Naime Márcio Martins Moraes (Coords.). IBDFAM/Del Rey Editora, p. 57/77.

[2] Washington de Barros Monteiro e Regina Beatriz Tavares da Silva: Curso de direito civil: direito de família. 43ª ed., São Paulo: Saraiva, 2016, p. 342 a 358.

[3] Fátima Nancy Andrighi. Doutrina prefacial in Regina Beatriz Tavares da Silva. Divórcio e Separação após a EC 66/2010. 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012

[4] Rosa Maria de Andrade Nery. Instituições de direito civil - Família. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022, p. 360, v. IV.

[5] Carlos Alberto Dabus Maluf e Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus Maluf. O novo divórcio no Brasil, in O novo divórcio no Brasil, Carolina Valença Ferraz, George Salomão Leite e Glauber Salomão Leite (coords.). Salvador: Jus Podivm, p. 126-148. Carlos Alberto Dabus Maluf e Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus Maluf. Curso de Direito de Família, 3 ed., São Paulo: Saraiva, 2018, p.339.

[6] Venceslau Tavares Costa Filho; Torquato Castro Jr. Ao regular separação judicial, novo CPC tira dúvidas sobre instituto. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-nov-30/regular-separacao-judicial-cpc-tira-duvidas-instituto. Acesso em: 9/6/2019.

[7] Lauane Andrekowisk Volpe Camargo, A Separação de o Divórcio após a Emenda Constitucional nº 66/2010. ob. cit., p. 326.

[8] A título de exemplo: STJ: REsp 1247098/MS, rel. min. MARIA ISABEL GALLOTTI, 4ª Turma, j. 14/3/2017, DJe 16/5/2017: "[...] A Emenda Constitucional n° 66/2010 não revogou os artigos do Código Civil que tratam da separação judicial. [...]". REsp 1.431.370/SP, rel. min. RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, 3ª Turma, julgado em 15/8/2017, DJe 22/8/2017: "A Emenda à Constituição nº 66/2010 apenas excluiu os requisitos temporais para facilitar o divórcio. 3. O constituinte derivado reformador não revogou, expressa ou tacitamente, a legislação ordinária que cuida da separação judicial, que remanesce incólume no ordenamento pátrio, conforme previsto pelo Código de Processo Civil de 2015 (arts. 693, 731, 732 e 733 da Lei nº 13.105/2015) [...]".

[9] Luís Roberto Barroso, A Constituição e o conflito de normas no tempo. Direito constitucional intertemporal. Revista da Faculdade de Direito, v. 1, n. 3, Rio de Janeiro, Uerj, 1995, p. 204.


 é advogada, mestre e doutora pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, pós-doutora em Direito da Bioética pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, sócia-fundadora do escritório RBTSSA e presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (Adfas).

Revista Consultor Jurídico, 21 de maio de 2022, 7h03