Enquanto o inventário estiver em curso, a ação de execução não pode ser ajuizada diretamente contra os herdeiros do devedor que morreu, cujos bens também não podem sofrer restrições para satisfazer a dívida contraída por ele.
Com essa fundamentação, a 14ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG) deu provimento ao agravo de instrumento interposto por dois irmãos para que eles não figurem no polo passivo de uma ação de execução, cuja origem é uma dívida deixada pelo pai falecido.
"Existindo inventário em curso do falecido devedor, não devem os herdeiros necessários figurarem no polo passivo da ação executória, não sendo passível a realização de atos constritivos de seus bens particulares", decidiu o desembargador Estevão Lucchesi, relator do agravo.
O juízo da 2ª Vara Cível da Comarca de Araguari rejeitou a exceção de pré-executividade e determinou o prosseguimento da execução movida por uma cooperativa de crédito. Os irmãos recorreram, sustentando ilegitimidade passiva de parte e que respondem apenas nos limites da herança. Informaram também que há processo de inventário aberto.
Os argumentos dos agravantes foram acolhidos em segunda instância. Pelo seu voto, Lucchesi extinguiu a ação de execução em relação aos herdeiros do devedor e determinou a substituição dos recorrentes no polo passivo pelo espólio. Os desembargadores Marco Aurélio Ferenzini e Valdez Leite Machado acompanharam o relator.
Antes do julgamento do mérito, o colegiado concedeu ao recurso efeito suspensivo, conforme requereram os agravantes. O acórdão foi fundamentado no artigo 1.792 do Código Civil, conforme o qual o herdeiro só responde por encargos dentro dos limites da herança.
O artigo 796 do Código de Processo Civil também embasou a decisão: "o espólio responde pelas dívidas do falecido, mas, feita a partilha, cada herdeiro responde por elas dentro das forças da herança e na proporção da parte que lhe coube".
1.0000.22.180520-3/001
Eduardo Velozo Fuccia é jornalista.
Revista Consultor Jurídico, 19 de novembro de 2022, 14h29
A presente reflexão é feita a partir de outro trabalho apresentado no Congresso Nacional de Registro Civil (Conarci) em outubro de 2022. Inicialmente cabe esclarecer que o refúgio e o asilo político são meios pelos quais o indivíduo que está sofrendo violações de seus direitos fundamentais no país de origem permanecer legalmente no território brasileiro.
Antônio Cruz/Agência Brasil
O Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), órgão brasileiro responsável pela análise dos casos bem como pela elaboração de políticas públicas para integração dos refugiados, e o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) desenvolveram um painel sobre o refúgio no Brasil. Nele é possível constatar que em 2021 existiam 60.011 pessoas reconhecidas como refugiadas, sendo que cerca de 72,2% das solicitações foram na região norte e o estado do Acre concentrou o maior volume (47,8%), seguido por Roraima (14,7%) [1].
De acordo com o relatório Refúgio em Números 2022, em 2021 o Brasil recebeu 29.107 solicitações da condição de refugiado que somadas às registradas a partir de 2011 (268.605), totalizaram 297.712 em uma década [2]. A maioria é oriunda da Venezuela, correspondendo a 78,5% dos pedidos do ano passado, tendo recebido solicitações de 117 países. Em relação ao sexo dos refugiados, a maioria é homem, e 84,6% tem menos de 40 anos de idade, configurando um perfil majoritariamente jovem.
É natural que pessoas em idade reprodutiva tenham interesse em constituir família ao se fixar no novo país e, por questões religiosas ou culturais, prefiram a formalização do casamento civil em detrimento da informalidade de uma união estável.
Quanto à legislação brasileira, o artigo 1º da Lei nº 9.474/97 estabelece que podem ser reconhecidas como refugiadas as pessoas que se encontram fora de seu país de origem devido a fundados temores de perseguição relacionados a questões de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um grupo social específico ou opinião política e que não podem ou não querem valer-se da proteção de seu país, bem como as pessoas obrigadas a deixar seu país devido à grave e generalizada violação de direitos humanos. É comum que na fuga apressada de um país para outro pouca ou nenhuma bagagem seja trazida, o que ocasiona o extravio ou perda dos documentos pessoais.
Ao chegar ao território brasileiro, o estrangeiro pode solicitar o reconhecimento da condição de refugiado, sendo que aqueles que ainda não tiveram sua solicitação deliberada pelo Conare encontram-se em situação migratória regular e podem obter inscrição junto ao Cadastro de Pessoas Físicas e a carteira de trabalho e previdência social. É reconhecido ainda o direito de solicitar a reunião familiar, ou seja, a possibilidade de trazer sua família ao Brasil para viverem juntos, viabilizada por meio da concessão de visto temporário nos termos da Lei nº 13.445/2017 e da Portaria MJSP/MRE nº 12/2018.
Quanto ao casamento, o artigo 16 da Declaração Universal dos Direitos Humanos prevê que homens e mulheres independente de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família. Também o artigo 226 da Constituição Federal de 1988 assegura que a família é a base da sociedade e tem especial proteção. Assim, ao acolher estrangeiros em situação de vulnerabilidade, é dever do Estado estender a proteção às suas famílias bem como garantir o direito de constituí-las formalmente.
O casamento multinacional é regido pelas normas do Direito Internacional Privado, em especial o artigo 7º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que dispõe que os estrangeiros que pretendem contrair casamento civil no Brasil deverão se sujeitar às regras da celebração local, em especial com a apresentação da documentação que comprove o estado civil.
O procedimento de habilitação do casamento civil foi recentemente alterado propiciando maior celeridade na tramitação. Entretanto, pode apresentar complicações quando se tratar de nubentes estrangeiros já que os estados normalmente exigem certidões de nascimento ou casamento atualizadas, devidamente apostiladas ou legalizadas. Percebe-se, portanto, a dificuldade prática para os refugiados obterem a documentação exigida pelas normas estaduais para a habilitação de casamento civil.
Por outro lado, a Lei nº 9.474/97 em seu artigo 43 e o Decreto nº 9.199/2017 no artigo 121 estabelece que a condição atípica dos refugiados deverá ser considerada quando for necessário apresentar documentos emitidos por seus países de origem ou por suas representações diplomáticas e consulares.
Já a Lei de imigração (Lei nº 13.445/17) prevê no artigo 20 que a identificação civil de solicitante de refúgio, de asilo, de reconhecimento de apatridia e de acolhimento humanitário poderá ser realizada com a documentação que o imigrante dispuser e que os documentos de identidade emitidos continuarão válidos até sua substituição. Assim, havendo documento comprobatório do estado civil do refugiado, este deverá ser aceito ainda que não preencha os requisitos, como atualização recente e apostilamento ou legalização.
Cabe pontuar que o procedimento de reconhecimento da condição de refugiado prevê que além das declarações, deverá o estrangeiro preencher a solicitação com a identificação completa, qualificação profissional, grau de escolaridade e membros do seu grupo familiar, bem como relato das circunstâncias e fatos que fundamentam o pedido de refúgio, indicando as provas pertinentes.
Assim, caso não tenha documentos que comprovem seu estado civil, como no início do procedimento de solicitação da condição de refugiado são colhidas informações acerca de sua qualificação e vida pessoal, estas posteriormente podem ser utilizadas para fins de comprovação junto ao cartório.
Nesse sentido, no site da Polícia Federal [3] consta que na ausência de certidão de nascimento ou casamento ou certidão consular, o refugiado deverá declarar sua qualificação, sob as penas do artigo 299 do Código Penal. Assim, como essas declarações são fornecidas logo que ingressam no país e sob as penas do crime de falsidade ideológica, é razoável concluir-se que são idôneas para comprovar o estado civil do refugiado para fins de habilitação do casamento, se necessário.
Em 17/11/2017, no Pedido de Providências nº 0005735-48.2017.2.00.0000 [4], a Defensoria Pública da União solicitou a dispensa da legalização dos documentos dos refugiados para fins de casamento civil. O CNJ expediu recomendação a todas as Corregedorias Gerais de Justiça (CGJ) para que fosse cumprido o artigo 20 da Lei nº 13.445/2017 e flexibilizada a apresentação de documentos. Posteriormente, em 26/11/2018, o CNJ esclareceu que a flexibilização teria por pressuposto o reconhecimento da condição de refugiado pelo Conare e se aplicaria para todos os atos da vida civil.
Em que pese a importância da recomendação do CNJ, a falta de regulamentação nacional tem por consequência a inexistência de uma solução efetiva, com a segurança jurídica exigida para os atos praticados pelos cartórios de registro civil de pessoas naturais.
A omissão normativa levou o Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJ-DF) a regulamentar o tema pelo Provimento 24/2018 [5], tratando da possibilidade do imigrante, na condição de refugiado, apátrida ou asilado não trazer consigo documentos de identificação civil ou não vislumbrar a possibilidade de tê-los validados nas repartições dos países que deixaram.
Assim, no caso de procedimento de habilitação para o casamento, o estrangeiro que se encontrar nessas condições poderá fazer prova de idade, estado civil e filiação mediante a apresentação de cédula especial de identidade de estrangeiro, emitida pela Polícia Federal; passaporte; atestado consular; ou certidão de nascimento ou de casamento, com averbação do divórcio, traduzida por tradutor público juramentado e registrada por oficial de registro de títulos e documentos. Verifica-se que a opção foi pela ampliação do rol de documentos comprobatórios da identidade, sendo importante observar que não consta o estado civil na cédula de identidade de estrangeiro nem, em regra, no passaporte [6]. Note-se que esse provimento é a regulamentação estadual mais específica a respeito do casamento civil de refugiados.
Conforme o artigo 672 do Provimento nº 10/2016 [7] do Tribunal de Justiça do Acre e o artigo 566 do Provimento nº 01/2017 [8] do Tribunal de Justiça de Roraima — estados que recebem o maior número de refugiados —, aceitam que o estado civil seja provado por declaração de testemunhas. Ocorre que os dispositivos não se referem especificamente ao casamento, ficando a dúvida se a mera declaração será suficiente inclusive para comprovar o estado civil no procedimento de habilitação. Outro ponto seria a credibilidade das declarações já que não há qualquer exigência em relação às testemunhas nem à necessidade de que as mesmas conheçam o refugiado desde o país de origem.
Uma solução segura seria a admissão da prova testemunhal desde que a declaração quanto ao estado civil fosse feita por pessoas que conhecem o refugiado desde o país de origem. Outra opção para confirmar a ausência de impedimentos matrimoniais seria a verificação das informações prestadas junto à Polícia Federal na fronteira ou ao Conare quando da solicitação da condição de refugiado.
Percebe-se que as regras existentes são insuficientes para solucionar a questão, sendo que na prática a flexibilização da apresentação da documentação, em especial as certidões atualizadas, tem ocorrido de forma pontual pelos juízes [9] com fundamento no dever do Estado de garantir a todos, brasileiros ou não, o direito de concretizar suas aspirações pessoais, inclusive constituição de família pelo casamento.
A efetivação de todos os direitos dos refugiados passa pela normatização de formas mais flexíveis para se comprovar a qualificação civil para fins de habilitação do casamento, podendo optar-se pela consulta às informações fornecidas no procedimento de solicitação da condição de refugiado junto ao Conare ou mediante a especificação de quais testemunhas podem declarar o estado civil do estrangeiro. Tais medidas trarão a segurança jurídica necessária ao procedimento de habilitação de casamento civil e permitirão ao refugiado concretizar seu direito de constituir formalmente uma família.
[2] JUNGER, Gustavo; CAVALCANTI, Leonardo; OLIVEIRA, Tadeu de; SILVA, Bianca G. Refúgio em Números (7ª Edição). Série Migrações. Observatório das Migrações Internacionais; Ministério da Justiça e Segurança Pública/ Conselho Nacional de Imigração e Coordenação Geral de Imigração Laboral. Brasília, DF: OBMigra, 2022.
"O brasileiro tem que ser estudado pela Nasa." Você com certeza já deve ter ouvido essa frase que a internet consagrou em memes, graças aos "jeitinhos" e "gambiarras" que sempre damos para resolver complexidades em certos momentos da vida. Isso não poderia ser diferente quando o assunto é planejamento sucessório. Está na moda fazer holding, mas nem todos querem, de fato, empregar os esforços e investimentos necessários para um trabalho bem-feito.
Na maioria dos casos, os planejamentos "caseiros" só não atingem seu potencial, principalmente, porque poucos compreendem as regras envolvidas verdadeiramente. Por vezes, o amadorismo causa problemas tributários. Mas isso nem é grave, afinal, trata-se do dinheiro de quem quis economizar onde não deveria.
Por outro lado, há situações em que o estrago é maior. O desconhecimento leva a situações com consequências jurídicas que vão além das finanças, inclusive, com intermináveis brigas judiciais e anulação de atos consolidados. Uma parte considerável destes casos ocorre pela ausência de conhecimento sobre as regras, relativamente simples, do direito sucessório.
A primeira regra é a de que pais não podem vender nenhum bem ou propriedade a filhos, sem que todos os filhos concordem. Essa venda pode ser anulada, mesmo que não exista fraude ou prejuízo a ninguém. Qualquer descontentamento é suficiente para justificar uma briga.
A lógica da lei (concorde ou não com ela) é que filhos não podem ser privilegiados, e a venda poderia disfarçar certo privilégio a um em detrimento de outro. É fundamental destacar que a situação é diferente — mas não perigosa — para a doação.
Pais podem doar o que quiserem aos filhos. É o chamado adiantamento de legítima. Nesse caso, porém, a chance de briga aumenta mais ainda, pois não importa quando a doação tenha ocorrido, os demais herdeiros podem pedir para que toda a herança adiantada seja descontada do que o donatário já recebeu em vida. Essa prática recebe o nome de colação.
E o grande imbróglio é definir quanto vale o que foi doado. Os casos em que os pais dão carros, imóveis ou reformas aos filhos provocam várias discussões sobre os índices de atualização, incluindo as doações em dinheiro. Vale o montante da época corrigido? O quanto o bem vale hoje? Mas e a depreciação ou valorização? Quanto do valor atual decorre de atitudes do próprio herdeiro? São as questões mais avaliadas.
Tudo isso sem contar as brigas por provas.
Em outras palavras, não há nada mais natural do que os pais já efetuarem partilhas em vida. Porém, as consequências de tomar essa decisão a esmo e sem nenhuma orientação são imprevisíveis. O percurso para essa prática deve ser fundamentado, ao menos, pelos aspectos civis e tributários com o respaldo de um estudo específico de planejamento sucessório.
Daniel Bijos Faidiga é advogado especializado em planejamento patrimonial, nova economia e assuntos digitais, sócio da LBZ Advocacia, professor, autor de diversos artigos e livros, especialista em Processo Civil pela PUC-SP, mestre em Direito Constitucional, com MBA em Gestão Tributária pela Fipecafi, extensão em Direito Internacional em Genebra, em Direito Falimentar pela FGV e em Estratégias de Mentoria Empresarial e Liderança por Harvard, LL.M. em Direito Societário e Direito do Mercado Financeiro e de Capitais e acadêmico de economia.
Revista Consultor Jurídico, 20 de novembro de 2022, 17h07
O art. 977 do Código Civil permite que cônjuges sejam sócios entre sí, em sociedade contratual, apenas quando casados nos regimes de comunhão parcial, separação convencional de bens e participação final dos aquestos.
O dispositivo proíbe a sociedade entre cônjuges quando o regime de bens do casamento for o da comunhão universal ou da separação obrigatória (art. 1.641). No primeiro caso, porque a sociedade seria fictícia, já que tanto as contribuições de ambos, como os resultados obtidos seriam comuns. No segundo caso, a vedação busca evitar que a sociedade sirva para burlar a separação obrigatória dos bens imposta aos cônjuges em razão de uma das hipóteses previstas nos incisos I a II do art. 1.641.
A Lei não excepciona nenhum tipo societário, nem se limita às sociedades empresárias, de modo que a restrição atinge tanto as sociedades simples, como as empresárias. Entretanto, não há óbice a que os cônjuges casados na comunhão universal ou na separação obrigatória adquiram ações de uma mesma companhia. Logo, a proibição legal não pode atingir as sociedades anônimas de capital aberto. A expressão "contratar sociedade" deixa antever a delimitação da restrição às sociedades de pessoas, que são formadas em função das pessoas dos sócios (sociedade simples, sociedade em nome coletivo, sociedade em comandita simples e sociedade limitada).
Nas sociedades de capitais (sociedade anônima e sociedade em comandita por ações), nas quais inexistem relações pessoais entre os sócios e que se formam em razão da reunião do capital, sem levar em consideração as pessoas dos sócios, não faz sentido a vedação. Os acionistas da companhia aberta, especialmente aqueles que não participaram da fundação, se limitam a adquirir parcelas representativas do capital, não estando, por isso, alcançados pela proibição. O mesmo raciocínio pode ser empregado às sociedades cooperativas, onde é livre o ingresso de sócios cooperados e inexiste restrição na lei específica (Lei n. 5.764/1971).
A vedação também não retroage para alcançar as sociedades já constituídas antes da entrada em vigor do Código Civil (11.01.2003), obrigando ao seu desfazimento ou tornando-as irregulares. Normas restritivas não se expandem, têm de receber interpretação estrita e não podem, muito menos, projetar-se para o passado. Ressalte-se que esse entendimento, manifestado anteriormente em outra publicação de minha autoria, restou acolhido pelo então Departamento Nacional de Registro do Comércio – DNRC –, em parecer assim resumido: “A norma do artigo 977 do CC proíbe a sociedade entre cônjuges tão somente quando o regime for o da comunhão universal de bens (art. 1.667) ou da separação obrigatória de bens (art. 1.641). Essa restrição abrange tanto a constituição de sociedade unicamente entre marido e mulher, como destes junto a terceiros, permanecendo os cônjuges como sócios entre si. De outro lado, em respeito ao ato jurídico perfeito, essa proibição não atinge as sociedades entre cônjuges já constituídas quando da entrada em vigor do Código, alcançando, tão somente, as que viessem a ser constituídas posteriormente. Desse modo, não há necessidade de se promover alteração do quadro societário ou mesmo da modificação do regime de casamento dos sócios-cônjuges, em tal hipótese”.
No mesmo sentido, o Enunciado n. 204 da III Jornada de Direito Civil: “A proibição de sociedade entre pessoas casadas sob o regime da comunhão universal ou da separação obrigatória só atinge as sociedades constituídas após a vigência do Código Civil de 2002”. Na III Jornada, foram adotadas as seguintes interpretações sobre o art. 977: “1) a vedação à participação de cônjuges casados nas condições previstas no artigo refere-se unicamente a uma mesma sociedade; 2) o artigo abrange tanto a participação originária (na constituição da sociedade) quanto derivada, isto é, fica vedado o ingresso de sócio casado em sociedade de que já participa o outro cônjuge” (Enunciado n. 205). Finalmente, na III Jornada de Direito Comercial, foi aprovado o Enunciado n. 94, esclarecendo que “a vedação da sociedade entre cônjuges contida no art. 977 do Código Civil não se aplica às sociedades anônimas, em comandita por ações e cooperativa”.
O art. 977 somente alude ao casamento, por isso, a restrição não se aplica à união estável, entidade familiar diversa do casamento. Por mais que se outorguem direitos e deveres aos conviventes, não se cogita de uma equiparação total, absoluta e irrestrita entre cônjuge e companheiro, mas uma equiparação seletiva, somente no tocante às chamadas “normas de solidariedade”, a exemplo do direito a alimentos, do direito de comunhão de aquestos, de acordo com o regime de bens, e do direito à concorrência sucessória em igualdade de condições com o cônjuge.
Por outro lado, nega-se a equiparação referente às ditas “normas de formalidade”, tais como as formas de constituição e dissolução da união estável e do casamento, o procedimento para a alteração do regime de bens, necessariamente judicial no casamento e extrajudicial na união estável (art. 1.639, § 2º, do CC e art. 734 do CPC/2015) e a obrigatoriedade de outorga conjugal para a prática de determinados atos, exclusiva para o casamento e dispensada na união estável. O princípio da isonomia não proíbe que entidades familiares distintas, não obstante igualmente protegidas pelo Estado, possuam regramentos legais diferenciados. Direitos e deveres do par casamentário podem ser diversos daqueles existentes entre o par convivencial. Da mesma forma que os conviventes septuagenários podem converter a união estável em casamento, com a opção por qualquer dos regimes de bens, não encontrando-se jungidos ao regime da separação obrigatória etária (art. 1.640, II), desde que iniciada a união estável antes de atingirem a idade limite, também nesses casos podem manter a sociedade que contrataram antes do casamento, durante a convivência, ainda que tenham optado, na conversão, pelo regime da comunhão universal ou seguido o regime legal de separação obrigatória, sob pena de se impor manifesto desestímulo à própria conversão da união estável em casamento.
Mário Luiz Delgado é doutor em Direito Civil pela USP, mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP, especialista em Direito Processual Civil pela UFPE, diretor do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp), presidente da Comissão Nacional de Assuntos Legislativos do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam), professor dos cursos de pós-graduação das Escolas da Advocacia e da Magistratura, advogado e parecerista, membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC). Foi assessor, na Câmara dos Deputados, da relatoria-geral do projeto de lei que deu origem ao novo Código Civil Brasileiro. Autor e co-autor de livros e artigos jurídicos.
Revista Consultor Jurídico, 20 de novembro de 2022, 8h00