segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Efetividade dos direitos sociais sem assistencialismo judicial

Em artigo publicado neste Observatório Constitucional, o professor Marcelo Neves tratou de mostrar que a atuação do Poder Judiciário na implementação do direito à saúde, em vez de assegurar o acesso universal e o atendimento integral preconizados pelo art. 196 da Constituição de 1988, intensificou privilégios no acesso à saúde[1]. Criticando a consistência jurídico-constitucional da tutela judicial voltada a garantir o direito à saúde de forma pontual e isolada, concluiu o professor:
“Ao garantir um ‘superdireito’ à saúde a uma elite, enquanto, de outro lado, grande parte da coletividade continua na mesma situação de exclusão social, na condição de subdireito à saúde, o Judiciário, e especialmente o STF — incompetentes juridicamente, ilegítimos politicamente e inaptos tecnicamente para formular e implementar políticas públicas de saúde —, não têm atuado como guardião do direito à saúde, mas como assegurador e intensificador de privilégios no acesso à saúde, promovendo o aumento da desigualdade e da exclusão social.”
Chamou-me a atenção substancioso comentário feito por leitora desse espaço, que narrava ter sido diagnosticada com diabete tipo 1 quando ainda criança e que não conseguia obter tratamento público adequado nem tinha como arcar com os custos do tratamento privado. Relatou a necessidade que tinha de obter uma bomba de insulina que custa aproximadamente R$ 12 mil e de obter insumos mensais que custam em torno de R$ 2 mil. Nesse quadro, expôs a sua pretensão de propor ação judicial para obter tutela que lhe assegure o tratamento, por considerar que essa é a única alternativa que encontra para resolver seu problema, que reputa legítima, como ser humano, cidadã, que paga seus impostos e se vê tutelada pela Constituição de 1988.
Apesar de a leitora confessadamente não ter formação jurídica, penso que ela conseguiu traduzir, de forma competente, em linguagem clara e contundente aquilo que me parece constituir o núcleo da defesa da implementação dos direitos sociais pelos juízes, em contraposição aos fortes argumentos do professor Marcelo Neves.
É natural que o cidadão, na defesa de seus legítimos interesses, busque o Poder Judiciário para postular pretensão de obter tratamento médico que assegure o seu direito à vida. Todos devemos lutar para obter condições dignas de vida, sobretudo numa sociedade desigual, diante de um Estado ineficiente e de uma classe política distante dos interesses do povo. A questão, no entanto, deve se pôr não apenas na perspectiva de quem pede, mas na de quem decide.
O que deve o juiz fazer ao deparar-se com pretensão da espécie?
Percebo, como parece também perceber o professor Marcelo Neves, que o Poder Judiciário tem se mostrado hoje totalmente inapto para tratar dessa espécie de demanda, porque se vê acuado por uma situação de vida ou morte que lhe conduz a sempre deferir os pedidos que lhe são dirigidos, muitas vezes em sede de medidas de urgência, sem que se possa fazer adequada reflexão.
Para essa espécie de tutela, podem-se identificar dois argumentos fundamentais na crítica à implementação dos direitos sociais a partir de decisões judiciais fundamentadas preponderantemente em princípios constitucionais — ou seja, decisões judiciais que extraem diretamente da Constituição o direito do autor da ação judicial de obter determinado medicamento, tratamento médico ou outra prestação específica. Sustenta-se que os juízes não têm capacidade de traduzir as pretensões gerais dos direitos sociais em tutelas judiciais específicas, equivalentes àquelas que se derivam das liberdades constitucionais — de primeira geração —, em vista do seu conteúdo indeterminado e a dificuldade de envolver aspectos de planejamento orçamentário — qual o conteúdo do direito à educação: alcança a pretensão de um jovem ter acesso à Universidade ou de uma criança com deficiência ter acesso à educação básica? Argumenta-se, ainda, que a tutela judicial dos direitos sociais representa uma interferência nas funções dos órgãos democraticamente eleitos ou tecnicamente mais preparados para tratar do assunto — qual a legitimidade do Poder Judiciário para definir prioridades governamentais, considerando, ainda, os inegáveis impactos no planejamento e no orçamento público? [2]
Sendo talvez mais produtivo afastar-se desse dilema, entre judicializar ou não os direitos sociais, cabe identificar outros caminhos a serem explorados.
Admitindo-se a judicialização das políticas públicas para a concretização dos direitos sociais, pode-se fugir do ideal do juiz como um provedor primário de direitos sociais, para pensar o Judiciário exercendo uma função de provedor secundário, assegurando que procedimentos justos foram adotados tanto na alocação quanto na prestação de quaisquer benefícios decorrentes de direitos sociais. Esse modelo tem a virtude de evitar uma alocação seletiva de benefícios, fortalecer a responsabilidade política e garantir a implementação dos direitos sociais de forma ampla. É o que propõe D. M. Davis, que conclui:
“Dessa forma, o Poder Judiciário confere efetividade aos direitos sociais de uma maneira compatível com as escolhas políticas democraticamente feitas por meio dos Poderes Executivo e Legislativo. Assegura que o governo seja lembrado de seus deveres, decorrentes de determinações constitucionais, mas que isso se faça por meio da implementação de políticas públicas.”[3] (tradução livre)
(...)
Leia a íntegra em:  http://www.conjur.com.br/2014-fev-08/observatorio-constitucional-direitos-sociais-assistencialismo-judicial

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