Muitos juízes me consideram estranho porque também sou um
empreendedor. Entre empreendedores, alguns me acham um estranho, por ser
um juiz. Muitos cristãos me acham liberal demais, e alguns ativistas me
acham conservador demais. Entre brancos, alguns estranham que eu seja
do movimento negro; no movimento negro já fui discriminado por ser...
Branco! Já até me falaram para ficar calado, que era bem-vindo mas que
devia ficar apenas ouvindo. Aliás, o movimento negro tem alguns
ativistas que prejudicam o povo negro só para sustentar suas teorias. Já
ouvi: “Branco, fica calado!”.
Muitos se apresentam como cristãos, mas discriminam e odeiam tanto que fazem por merecer as palavras de Jesus: “os publicanos e as meretrizes entrarão primeiro que vós no reino de Deus” (Mateus,
21:28-31). Por que ser tão radical na religião sem ser radical no amor
que a própria religião recomenda? Um mistério. Nem por isso ficam atrás
alguns ativistas do movimento gay, vez que nos espaços onde são maioria
agem igualzinho aos “fanáticos religiosos” que tanto criticam. Repito: a
disputa hoje é não pela igualdade, mas pelo “privilégio” de exercer a
tirania.
O exagero dos religiosos que sempre se recusaram a
legislar sobre a união homoafetiva obrigou o STF a proferir decisão que,
com o bom efeito de atacar a discriminação, certamente teve origem em
Poder da República a quem não compete legislar. E este é um perigoso
precedente. Isto não tem a ver com o mérito da causa, mas com o respeito
à Constituição.
Pênalti marcado de forma equivocada deveria incomodar até aos
torcedores do clube favorecido. Não no futebol? Ok, futebol é paixão,
mas uma República não se faz com acomodações nem favoritismos.
Alguns
ativistas gays exageram na redação das leis anti-homofobia, ou nas
campanhas que a pretexto de evitar a discriminação se transmutam em
apologia de opção. No afã de defender suas teses prejudicam até sua
causa, e não menos os interesses comuns, de tantos cristãos e tantos
ativistas, de termos um país menos injusto e menos discriminador, onde
se respeite a diversidade. Nessa questão, é óbvio que os casais
homossexuais precisam ser respeitados e a homofobia combatida.
Igualmente, devemos evitar a teofobia, a apologia (de qualquer dos
lados) paga pelo erário e a intenção de muitos de definir como deve ser o
pensamento e opinião alheios.
As ações afirmativas raciais são
outro espaço onde os exageros podem atrapalhar o consenso e o progresso
das lutas sociais, que são dever moral de nosso tempo. E sobre elas
quero pontuar o exagero da vez e, por isso, um desserviço à causa. Sou
defensor das cotas raciais há tempos, já por duas vezes as defendi em
audiências públicas no Senado Federal. Escrevi inúmeras vezes artigos em
defesa delas, e publiquei, como editor, livros em sua defesa.
Invariavelmente ouço ou leio amigos e leitores magoados comigo por eu
defender as cotas raciais. Me perdoem, defendo sim.
Pois bem,
exatamente por defendê-las venho aqui dizer que quem as conseguiu está
perto de começar a destruí-las. Como sempre, pelo exagero. Pela mania
humana de, podendo, ir além do que deve. Volto a citar: “A lei, ora a
lei, o que é a lei se o Major quiser?” – O que é bom-senso, justiça,
razoabilidade, autolimitação dos próprios atos quando o detentor
temporário do poder pode ir além?
A meu ver, o exagero só atrapalha. O equilíbrio salvaria a Humanidade.
Segundo li, setenta por cento dos beneficiados pelo Bolsa Família
são negros. Nesse sentido, as cotas sociais, se aprovadas, iriam
beneficiar mais negros do que os pretendidos 50% dos quais tanto se fala
quando o assunto são as cotas raciais. Vendo os percentuais de negros
mais pobres, isso é evidente. Já sustentei essa tese, mas falaram para
eu não insistir nela porque alguns ativistas do movimento negro preferem
a tese da “cota racial”. Vejam, a cota social teria o mesmo ou até mais
aprofundado efeito, mas o que são mais irmãos negros na faculdade em
face da minha tese?
Vale anotar que insistirei nas cotas raciais
pelo menos até que venham as cotas sociais com o devido financiamento e
estrutura. Até lá, as cotas raciais ajudam a responder pela urgência de
se consertar um país que ainda precisa de alforria. Ou seja, até que se
implante um sistema melhor de modo eficiente, não podemos abrir mão dos
outros instrumentos possíveis, mesmo que não sejam os ideais.
E
onde chegamos agora? Nas cotas raciais nos concursos. Eis o homem, outra
vez, abusando. Abuso grave. Já que passaram as cotas nas universidades,
porque não também nos concursos? E nas empresas? “Exageremos outra vez!
Façamos o que podemos! Aproveitemos o poder para inverter a mão dos
abusos!”
Reparem: uma coisa é colorir de todas as nossas cores
todos os lugares. Ver negros nos restaurantes finos, ver negras
desfilando nas Fashion Weeks, isso será ótimo. Outra coisa é, no
afã de acelerar este, de fato, vagarosíssimo processo, errar a mão e
prestar um desserviço a todos, inclusive à própria causa.
Não
devemos ter cotas raciais nos concursos, como se propõe. Uma coisa é ter
cotas nas escolas, nas universidades, nos estágios. Aí sim, pois
estamos falando de preparação para a vida e para o mercado. Essas cotas
devem ser mantidas, aperfeiçoadas e, com o passar do tempo, obtido seu
bom efeito, suprimidas. Mas as cotas nos concursos pervertem o sistema
do mérito. Para o direito e oportunidade de estudar, é razoável dar
compensações diante de um país e sistema ainda discriminadores, mas não
para se alcançar os cargos públicos.
Nesse ponto, as críticas que
os contrários às cotas fazem irão fazer sentido: aquilo de se dizer que
“Fulano está aqui só por causa das cotas”. Isso pode ser tolerado em
uma faculdade, de onde o cotista saia e mostre que, quando tem
oportunidades, compete de igual para igual, acha seu espaço ao sol.
Contudo, quando estamos diante de um concurso público, ou igualmente de
seleção para empresas, influir no sistema de avaliação é uma perversão
inadequada. Querer isso é ir além do razoável e, ao se insistir na tese,
presta-se um desserviço ao país e à causa.
Os motivos são bem
claros: é lícito dar a quem quer estudar algum diferencial competitivo,
compensador de uma ou outra circunstância. De modo diametralmente
oposto, é abusivo repetir tais privilégios quando o assunto é o ingresso
definitivo no mercado de trabalho. Simples assim. Cotas: para estudar,
pode; para arrumar emprego, aprenda como todo mundo. Venha disputar sua
vaga em condições de igualdade, e que passe o melhor preparado: branco,
preto, pobre, rico, gay, hetero, bonito ou feio.
Como disse um
professor de Direito Constitucional que conheço, “daqui a pouco quem se
sente ‘normal’, quem não for negro, índio, gay, cadeirante, obeso
mórbido, filho de bombeiro ou PM morto em serviço” estará em risco de
extinção, sem poder disputar as vagas públicas e privadas, loteadas por
toda sorte de regalias para quem se articulou nos Legislativos ou nos
órgãos de “promoção da igualdade” de quem quer que seja. Pior que tudo,
cada vez menos se estimulará o estudo e o trabalho, o mérito e o
esforço, porque a partir de agora para entrar nos cargos, ou nos
empregos, bastará ter carteira de espoliado. Será o tempo em que quem
não tiver nenhum argumento para ser prestigiado ingressará com ação
judicial onde pedirá apoio, e algum juiz ou tribunal deverá, em um
“salto triplo carpado hermenêutico”, provavelmente rasgando algum texto
legal, proteger por fim a última classe a não ter algum favor legal que
substitua o mérito. Será um país onde o estudo e o trabalho serão
substituídos pelo, já anunciado antes, “princípio do coitadinho”.
As políticas afirmativas acolhidas pela Constituição
são aquelas direcionadas ao fim da desigualdade, e não à sua
perpetuação. Contudo, a forma como está se promovendo a igualdade é
equívoca e tacanha, vez que não cria mecanismos para que a realidade
social mude nem estímulo pessoal para o esforço. Existem muitas portas
para se ingressar em programas sociais, cotas, gentilezas públicas,
verbas a serem mal versadas, e poucas portas para que as pessoas saiam
dos favores do governo, ou das situações onde os favores são
justificáveis.
Prefiro um país onde os espoliados sejam amparados
e onde tenham oportunidade de estudar, de aprender, mas que na hora de
se definir de quem é uma vaga, que ela seja do mais bem preparado. Será
um país de sonho. Parafraseando o Pastor Martin Luther King Jr, um país
onde todos possam estudar, mas em que, na hora de as pessoas conseguirem
um emprego ou cargo público, “elas não serão julgadas pela cor da pelé,
mas pelo conteúdo de seu caráter”. Para ingressar nos cargos, nem
valerá ser negro, ou índio, ou bonito, ou feio, ou gay, ou hetero, ou do
partido, ou muito amigo. Para ingressar nos cargos, competência. E isso
fará com que todos estudem.
Fonte: http://blogwilliamdouglas.blogspot.com.br/2011/05/cotas-raciais-nos-concursosoexagero.html
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