Comecei a percebê-las aos domingos, quando dos meus passeios pelo
parque da Aclimação, na Capital Paulista, para exercícios físicos
matinais. Diante do boom imobiliário percebido no bairro onde
moro e o surgimento de novos empreendimentos, as “pessoas-seta” ou
“pessoas-placa” se multiplicaram pelos principais centros urbanos
brasileiros. Pessoas paradas, imóveis como postes, indicando os locais
onde as unidades podem ser adquiridas, os tão conhecidos stands de vendas de imóveis novos, ainda na planta.
Como tenho dito em aulas e exposições, os contratos de aquisição da casa própria no Brasil são verdadeiras arapucas contratuais, e a exposição dos produtos que estão sendo vendidos começa com uma violação à dignidade humana, qual seja, essa postificação da pessoa humana. Tenho utilizado a expressão destacada, pois a pessoa humana se transforma em um poste, em coisa imóvel visando a indicar um outro bem a ser comprado.
Como é notório, a Constituição Federal de 1988 utiliza a concepção kantiana de dignidade humana em seu art. 1º, inciso III,
a partir do imperativo categórico de que a pessoa humana é um ser
racional que deve ser considerado sempre um fim em si mesmo. Em outras
palavras, a pessoa humana não pode ser meio ou instrumento, o que parece
ser desrespeitado pela contratação das “pessoas-seta”.
Conversei com algumas dessas pessoas, que recebem de 30 a 50 reais por dia de trabalho, por oito horas de imobilidade.
O valor não inclui a alimentação, que deve ser providenciada por elas
mesmas. E não se pode mostrar indisposição. A “pessoa seta” deve estar
sempre sorrindo. Deve ser um poste feliz. Ao final dos trabalhos são recolhidas por uma Kombi, exaustas, cansadas, o que ocorre mesmo com os mais jovens.
Dia
desses constatei que uma senhora, de idade avançada, providenciou uma
cadeira para se sentar e segurar a seta. Perguntei a ela, a razão de
estar sentada. Ela me disse que tinha sérios problemas nas costas, mas
que os fiscais da empresa não poderiam vê-la naquela situação. Afinal de
contas, o poste deve estar sempre ereto, em pé. Que situação
degradante, penso eu, todos os domingos! Que flagrante desrespeito à Constituição Federal e a outras normas infraconstitucionais!
Tanto
os civilistas quanto os constitucionalistas têm se dedicado, no Brasil e
fora dele, ao estudo das situações contratuais de desrespeito aos
direitos fundamentais. Cito, a propósito, os exemplos instigantes
retirados da obra de J. J. Gomes Canotilho, ao analisar as
concretizações da aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas, tema atinente à constitucionalização do Direito Privado. A propósito dessa aplicação, geradora do que se denomina como eficácia horizontal, leciona
o jurista português que, “A Constituição de 1976 (CRP, artigo 18º/1)
consagra a eficácia das normas consagradoras de direitos, liberdades, e
garantias de direitos análogos na ordem jurídica privada. A doutrina
alude a eficácia horizontal das normas garantidoras de direitos, liberdades e garantias (a juspublicista alemã utiliza o termo Drittwirkung)” (GOMES CANOTILHO, J. J. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. Ed. 3. Tir. Coimbra: Almedina, [s/d], p. 448). No caso brasileiro, tal eficácia está justificada pelo art. 5º, § 1º, da Constituição
de 1988, segundo o qual as normas definidoras dos direitos e garantias
fundamentais têm aplicação imediata em qualquer tipo de relação
jurídica, seja entre o Estado e o particular ou mesmo entre
particulares, justificando-se, na última relação, o termo eficácia horizontal.
Partindo para as hipóteses elencadas, Canotilho cita os seguintes casos, com especial aplicação contratual: a) uma indústria celebra contratos de trabalho em que os empregados renunciam a qualquer atividade sindical; b) um colégio contrata uma professora para os seus quadros, constando uma cláusula de celibato, sob pena de rescisão do negócio jurídico; c)
uma empresa de informática contrata duas mulheres para os seus
serviços, condicionando a manutenção do contrato de trabalho à
não-gravidez dessas mulheres (cláusula de não-engravidar); e d) entidades patronais e sindicatos celebram um contrato coletivo de trabalho com a cláusula closed-shop, que veda a contratação de empregados não sindicalizados (GOMES CANOTILHO, J. J. Direito constitucional e teoria da Constituição, cit., p. 1285-1286).
Ora,
pela legislação brasileira, todos os exemplos parecem conduzir à
nulidade absoluta das cláusulas e até dos contratos –, caso não seja
possível apenas retirar a cláusula ferida pela invalidade –, por lesão à
dignidade humana, a direitos da personalidade e à função social dos
contratos, estampada como princípio de ordem pública nos arts. 421 e 2.035, parágrafo único, do Código Civil Brasileiro. A cláusula de celibato e a cláusula de não-engravidar esbarram no direito à constituição de uma família, base da sociedade, nos termos do art. 226 da Constituição da República Brasileira; sem falar na proteção da mulher trabalhadora, elencada pelo art. 7º, inc. XX, da mesma CF/1988.
Renunciar à atividade sindical entra em conflito com o art. 8º do Texto
Maior, pelo qual é livre a associação profissional ou sindical. O mesmo
deve ser dito em relação a cláusulas closed-shop, não sendo
possível impor o direito de sindicalização, que seria transformado em um
dever. Em reforço, vale lembrar a dicção do art. 5º, inc. XVII, da
Norma Fundamental Brasileira, ao enunciar que é plena a liberdade de
associação para fins lícitos.
As premissas teóricas expostas
servem igualmente para se declarar a nulidade absoluta dos contratos
celebrados com as “pessoas-seta”. Na verdade, tais contratos não
deveriam existir, pela clara ilicitude de seus conteúdos. Espera-se que
as autoridades competentes acabem com essa prática no Brasil. Como dito,
os contratos de aquisição financiada de imóveis no País violam direitos
civis e fundamentais desde a sua pré-contratação. Quanto ao contrato em
si, pelas várias abusividade presentes, tratarei em outro artigo, a ser
desenvolvido no futuro.
Fonte: http://atualidadesdodireito.com.br/flaviotartuce/2014/05/08/artigo-as-pessoas-setaea-dignidade-hum...
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