sexta-feira, 13 de abril de 2018

A possibilidade de prisão em segunda instância, a decisão do STF e o caso Lula

Pedro Magalhães Ganem - 10 de Abril de 2018 - 6 minutos de leitura

Sei que muitos já falaram sobre esse tema, mas, tamanha sua relevância, impossível deixar de tocar no assunto.

Como devem saber, o STF, em análise ao habeas corpus preventivo do ex-presidente Lula, decidiu ser possível a prisão após decisão em segunda instância.

Antes de prosseguir, preciso ser claro quanto a inexistência de opinião política nesse texto. Não sou adepto a nenhum partido, tampouco simpatizante de algum político. O texto objetiva trazer uma análise acerca da situação jurídica em si e não da situação política do(s) envolvido(s).

Voltando à decisão do STF, trata-se de verdadeira antecipação do cumprimento da pena, realizado antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, sob o argumento, dentre outros, de que o STJ e o STF não reanalisam os fatos, não adentrando ao mérito da demanda em si.

Portanto, caso o Tribunal de segunda instância mantenha a condenação de Primeiro Grau, não haveria mais que se falar em reanálise meritória pelas Superiores instâncias, de modo a possibilitar o entendimento de que o réu já seria “culpado”, mesmo sem o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

A presunção de inocência ou de não culpabilidade seria invertida, passando a se presumir, dessa vez, a culpa.

Mas por qual razão é tão importante assim o tal “trânsito em julgado de sentença penal condenatória”?

A nossa Constituição, em seu artigo 5º, inciso LVII, estabelece que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória“.

Logo, em tese, segundo determinação expressa da constituição, a formação da culpa somente poderá ocorrer posteriormente ao trânsito em julgado da sentença e não após o julgamento do recurso pela Segunda Instância.

Além do mais, temos o artigo 283 do Código de Processo Penal, o qual possui o seguinte teor:Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.

O CPP, então, não trata da formação de culpa, mas da possibilidade de prisão, sendo claro que a pessoa somente poderá ser presa se for em flagrante ou por decisão da autoridade judiciária competente, seja pelo trânsito em julgado de sentença condenatória (tratando da prisão definitiva) ou no curso da investigação ou do processo (tratando das prisões temporária e preventiva).

O interessante é que o caso do julgamento do STF nos embargos de declaração do ex-presidente Lula não se trata de prisão preventiva, mas de antecipação da prisão definitiva, a qual, como visto, somente poderá ocorrer após o trânsito em julgado.

Fiz menção ao Código de Processo Penal apenas para contextualizar o cenário das prisões no nosso Ordenamento Jurídico, mas o foco é o texto constitucional, pois ao STF cabe a análise da Constituição e não de Leis Federais, como é o caso do CPP, que fica a cargo do STJ.

Assim, temos na Constituição, como já dito, a afirmação de que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória“.

Logo, dois termos chamam a atenção e merecem destaque, quais sejam: “considerado culpado” e “trânsito em julgado“.

O Professor de Direito Penal e Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais, Israel Domingos Jorio, em uma publicação na rede social Facebook, de forma brilhante, destaca que:

As dissidências não recaem sobre todas as palavras ou expressões do texto. Restringem-se, na verdade, a dois pontos específicos: “considerado culpado” e “trânsito em julgado”. Logo de início, um maremoto de críticas se abateu sobre a interpretação dada pelo STF porque ele simplesmente teria rabiscado a expressão “trânsito em julgado” e sobrescrito “segunda instância”.

Como, de fato, onde se lê “trânsito em julgado de sentença penal condenatória” ainda não se pode interpretar “decisão condenatória em segunda instância”, o discurso dos defensores da imposição da pena de prisão antes do esgotamento total dos recursos precisou se sofisticar um pouco. A tese que está na moda desvia o foco do “trânsito em julgado” para “será considerado culpado”.

O referido Professor prossegue sua análise:

Dizem, agora, que não está escrito que “ninguém será preso antes do trânsito em julgado” e que não há vedação expressa para a “execução provisória da sentença que impõe pena privativa da liberdade”.

Em suma: por esta linha de interpretação, prender uma pessoa condenada a uma pena privativa de liberdade antes do trânsito em julgado não significa que ela esteja sendo considerada culpada.

Isso é bem questionável, é claro.

Certamente, inocente é que não está. Mas quando se invoca o princípio basilar da presunção se inocência, atrai-se uma saraivada de outras polêmicas, e quero evitar isso.

Diz-se que o princípio não é da “presunção de inocência”, mas da “não culpabilidade”; que a presunção de inocência é relativa e, com condenação confirmada em segunda instância, essa presunção se inverte, embora ainda seja relativa; e que prisão não é incompatível com presunção de inocência, haja vista a constitucionalidade das prisões cautelares.

O que se vê, portanto, é que há uma busca para interpretar a Constituição de acordo com o que nela não está contido. Ou seja, é uma tentativa de adequar o texto, trazendo para ele informações e determinações não contidas, para, desse modo, atender os anseios “populares”.

Só que isso trás um risco incalculável, pois, se podemos “moldar” a Constituição conforme nossa “vontade”, pra que a Constituição? Por qual razão é preciso ter normas se podemos interpretá-las do jeito que achamos conveniente?

A Constituição, ao dizer que “ninguém será considerado culpado” realmente não diz que “ninguém poderá ser preso”, mas é inegável que prender alguém para cumprimento (antecipado) de pena é um dos efeitos da condenação e, consequentemente, de se considerar culpado alguém.

Não só é um dos efeitos como é o principal e mais drástico dos efeitos.

O Professor Israel, com brilhantismo, se manifestou sobre isso:

Em síntese: considerar alguém culpado é dar-lhe o tratamento de “culpado em definitivo”. É aplicar-lhe todos os efeitos da condenação. Se suspendemos todos os efeitos menos gravosos e impomos exatamente aquele que é o principal e mais drástico, é flagrante falácia dizer que o provisoriamente condenado continua a não ser considerado culpado, e que se trata de uma “execução provisória da pena”.

Ademais, é desleal querer comparar a prisão em segunda Instância, como decidido pelo STF no caso Lula, com a execução provisória da pena.

No caso da execução provisória, o réu foi condenado enquanto estava preso provisoriamente. Isto é, respondeu ao processo preso preventivamente, foi condenado, a sua prisão (preventiva) foi mantida, diante do teórico preenchimento dos requisitos legais, e, para evitar que essa prisão seja superior e mais gravosa que a definitiva, passa-se a cumprir provisoriamente a pena, possibilitando, inclusive, a adequação ao regime inicialmente fixado e a progressão para regime mais benéfico.

No caso da prisão em segunda Instância como forma de dar cumprimento (antecipado) à condenação, não há que se falar em execução provisória da pena, pois o réu respondeu ao processo em liberdade, não estando preenchidos os requisitos para a sua prisão cautelar, demonstrando que os dois tipos de “execução da pena” são totalmente diferentes, sendo impossível comparar um com o outro.

É claro que não posso deixar de mencionar que o entendimento que predominou desde a Constituição de 1988 até o ano de 2009 era no sentido de que “A exigência da prisão provisória, para apelar, não ofende a garantia constitucional da presunção de inocência (Súmula 9 do STJ).

Todavia, essa era uma visão que não encontrava respaldo na Constituição de 1988, estando engessada e enraizada nas disposições legais anteriores.

Por tal razão, em 2009, no julgamento do HC 84.078, o STF se posicionou pela inconstitucionalidade da “execução antecipada da pena”, adequando-se à Constituição. Vejamos a ementa:HABEAS CORPUS. INCONSTITUCIONALIDADE DA CHAMADA "EXECUÇÃO ANTECIPADA DA PENA". ART. 5º, LVII, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. ART. 1º, III, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL.

Por fim, faço minhas as palavras do Professor Israel, concluindo da seguinte forma:

Sinceramente, com o perdão dos colegas criminalistas, não creio que seria absurdo forçar o início do cumprimento da pena após uma confirmação de condenação em segunda instância. Mas isso só seria possível mediante a alteração do texto constitucional. É preciso mudar a Constituição, e não violentá-la para que signifique aquilo que desejarmos momentânea ou casuisticamente. Isso, leitor, é como forçar a cadeira a uivar como o lobo. É como chamar o preto de branco, e vice-versa, na expectativa de que todos os interlocutores (que são titulares da mesma garantia a ser violada, e que, sem saber, não raras vezes a deploram ou reprovam) aceitem com naturalidade uma tomada de decisão que deflui do puro arbítrio de quem a toma. É a definição da arbitrariedade. Enquanto cadeiras não uivam, e enquanto o preto ainda é a ausência de luz, e o branco, a mistura de todas as cores, a antecipação do encarceramento é inconstitucional. Ou aguardamos uma mutação constitucional lenta, talvez quase inexequível, tendo em vista a longitude dos resultados pretendidos pelos que defendem a execução provisória, ou emendamos a Constituição.

Sei que o tema é polêmico e possibilita discussões para todos os lados, mas temos que interpretar a nossa Constituição da melhor forma possível e não conforme nós “queremos” que ela seja interpretada.

Imagem: Heuler Andrey/AFP
Pedro Magalhães Ganem - Assessor de Juíza Criminal (ES)

https://canalcienciascriminais.com.br/prisao-segunda-instancia-stf/

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