Os fatos jurídicos são classificados em três tipos: a) fatos
jurídicos em sentido estrito ou involuntários; b) atos-fatos jurídicos
ou atos reais; c) atos jurídicos em sentido amplo ou voluntários (atos
jurídicos em sentido estrito e negócios jurídicos). Considerando-se o
papel da manifestação da vontade, teremos: nos fatos jurídicos em
sentido estrito, não existe vontade ou é desconsiderada; no ato-fato
jurídico, a vontade está em sua gênese, mas o direito a desconsidera e
apenas atribui juridicidade ao fato resultante; no ato jurídico, a
vontade é seu elemento nuclear. Essa classificação teve o refinamento
doutrinário de Pontes de Miranda[1] e Marcos Bernardes de Mello[2],
a partir do elemento nuclear do suporte fático, contribuindo para
difundi-la no Brasil, máxime no âmbito da teoria geral do direito.
A classificação dos fatos jurídicos é importante
para o enquadramento das chamadas fontes das obrigações, como
demonstraremos a seguir, na esteira do que propugnam esses autores. Para
Marcos Bernardes de Mello[3] apenas nos fatos jurídicos podem radicar as fontes das obrigações.
Quando os fatos naturais ou humanos convertem-se em
fatos jurídicos, é porque houve uma norma que previu hipoteticamente
seus elementos e que incidiu sobre eles, provocando necessariamente
efeitos, tais como direitos e deveres, pretensões e obrigações.
Tradicionalmente, a doutrina indica como fontes –
imediatas ou mediatas - as principais espécies de fatos jurídicos, na
ordem de importância das ocorrências práticas da vida, ou acontecimentos
vitais merecedores de ordenação, a saber:
a) os contratos (obrigações contratuais);
b) os atos ilícitos (obrigações extracontratuais);
c) atos unilaterais (obrigações unilaterais).
A mais sedutora das classificações das fontes, por
sua simplicidade, a vontade humana e a lei, é a mais controvertida. Como
diz Orlando Gomes, quando se indaga a fonte de uma obrigação procura-se
conhecer o fato jurídico ao qual a lei atribui efeito de suscitá-la; é
que entre a lei, esquema geral e abstrato, e a obrigação, relação
singular entre pessoa, medeia sempre um fato, considerado idôneo pelo
ordenamento jurídico para determinar o dever de prestar[4].
O contrato é uma espécie de negócio jurídico, mas
não a única. Há negócios jurídicos que não são contratos, como os
negócios jurídicos unilaterais (por exemplo, a promessa de recompensa,
arts. 854 a 860 do Código Civil; a oferta para contratar, enquanto não
houver aceitação a outra parte, art. 427; os títulos de crédito;
assentimento a ato de outrem) e até mesmo negócios jurídicos bilaterais
não contratuais, a exemplo do acordo de transmissão da propriedade, que
se integra ao contrato de compra e venda de imóvel, e que se perfaz com o
registro público. E há obrigações nascidas de outros tipos de fatos
jurídicos não negociais. A lei não é fonte direta das obrigações não
convencionais, pois está presente em todas elas, quando incide no
suporte fático concreto e faz irradiar entre os efeitos as obrigações,
assim que os deveres possam ser exigíveis pelo credor.
Os contratos (espécies de negócios jurídicos, que por sua vez são
espécies de atos jurídicos, que por sua vez são espécies de fatos
jurídicos), em todas as épocas, exerceram importantes funções de relação
entre os homens. Foram concebidos na prática cotidiana, de acordo com
as necessidades e complexidades das relações econômicas e sociais. Na
atualidade, os contratos dificilmente partem de um núcleo comum. Uma
grande dicotomia se formou, no que respeita ao conteúdo, substituindo a
classificação tradicional dos contratos de direito privado em contratos
civis e contratos comerciais, por contratos comuns e contratos de
consumo, com características e finalidades distintas. Quanto à forma, os
contratos ou são paritários ou são de adesão a condições gerais; aos
primeiros, a vontade individual declarada e o consentimento desempenham
papel criador, nos segundos, à predisposição unilateral de um deve
corresponder a tutela jurídica da coletividade de aderentes, cuja
vontade é irrelevante na criação do ato. Como diz Karl Larenz[5],
o significado vital dos contratos é muito diferente, porque há
contratos, como a locação de imóveis urbano, que ao menos para uma das
partes pode ter importância vital, enquanto outros só fundamentam uma
relação fugaz entre os interessados e não afetam interesse algum de
importância existencial. Nos primeiros se poria de manifesto a “missão
social do direito privado”, a saber, estabelecer condições e ditar
normas que façam possível um equilíbrio razoável das forças sociais e
dos interesses humanos, tomando em consideração a necessidade de
proteção dos economicamente débeis. Em verdade, dizemos nós, dos
juridicamente vulneráveis, que eventualmente podem não ser os
economicamente débeis ou hipossuficientes, pois tudo depende do poder
contratual dominante e da situação de sujeição do contratante
vulnerável, como ocorre com os contratos de consumo e de adesão.
No ato ilícito, a relação jurídica obrigacional
surge sem convenção do credor ou do devedor, em virtude de ofensa
culposa a direito alheio. O ato ilícito (art. 186 do Código Civil) é
insuficiente para abranger toda a gama de danos imputáveis, pois o
direito distanciou-se do subjetivismo individualista, que marcou o
desenvolvimento da responsabilidade civil, para absorver os imperativos
de solidariedade social (art. 3º, I, da Constituição) e imputar
responsabilidade pelos danos oriundos de situações ou fatos objetivos,
seja pelos riscos criados, seja pela atividade desenvolvida,
independentemente de sua licitude ou ilicitude. Nem todo dano gera
imputação de responsabilidade a alguém, mas a trajetória do direito é na
direção de realização da máxima reparação dos danos; em outras
palavras, a cada dano deva corresponder uma reparação, ainda que o fato
que o causou seja lícito, como se vê no amplo enunciado do art. 931 do
Código Civil: “os empresários individuais e as empresas respondem
independentemente de culpa pelos danos causados pelos produtos postos em
circulação”. Imputável é quem responde pelo dano (devedor), que pode
ser quem não o causou, por exemplo, os pais pelos filhos menores, o
empregador por seu empregado. Daí dizer-se dano imputável.
Além dos contratos e dos danos imputáveis,
cogitam-se de obrigações oriundas de atos jurídicos unilaterais
(promessas unilaterais, outros negócios jurídicos unilaterais, pagamento
indevido, enriquecimento sem causa).
Há, ainda, situações jurídicas derivadas do moderno
tráfico em massa que dispensam as manifestações de vontade negocial, mas
que produzem efeitos obrigacionais semelhantes aos atribuídos ao
negócio jurídico. São condutas sociais típicas às quais o direito imputa
conseqüências próprias dos negócios jurídicos, distanciando-se dos
requisitos de existência, validade e eficácias destes e que estão
previstos na Parte Geral do Código Civil. A massificação negocial é
fruto da massificação social (e, infelizmente, da massificação da
pobreza) que se aguçou a partir da segunda metade do século XX, com a
urbanização avassaladora e a oferta impersonalizada de produtos e
serviços, a exemplo dos transportes públicos urbanos e dos centros de
compras. Nesses exemplos, as pessoas realizam suas necessidades vitais,
inclusive os menores e os demais civilmente incapazes, sem lhes poder
ser aplicáveis os requisitos de validade do negócio jurídico, previstos
no art. 104 do Código Civil (agente capaz, objeto lícito, possível e
determinado, e forma prevista ou não defesa em lei). As condutas e não
as manifestações de vontade são suficientes, prevalecendo até mesmo
quando as segundas foram contrárias aos efeitos negociais objetivamente
imputáveis (se entrar no ônibus, ainda que por engano quanto ao destino,
terá de pagar a tarifa, não podendo alegar anulação por erro; se o
menor absolutamente incapaz, às vezes por conta própria, estiver a
ofertar publicamente na rua produtos ou serviços, não se poderá alegar
nulidade). Para Marcos Bernardes de Mello, ainda nessas circunstâncias a
categoria negócio jurídico continua proveitosa, desde que se a entenda
não mais “como um instrumento de satisfação da vontade das pessoas, mas
como um instrumento do tráfico jurídico”[6].
A doutrina cogitou das relações contratuais de fato[7],
em virtude da falta de consciência da declaração de vontade ou mesmo de
sua desnecessidade; no caso do transporte coletivo, ter-se-ia uma
relação jurídica obrigacional não porque o usuário teria querido ou
declarado, mas porque, de acordo com os pontos de vista gerais do
tráfico jurídico, sua conduta estaria unida a essa conseqüência. Karl
Larenz[8]
atenuou os excessos dessa teoria aproximando-a do regime contratual
comum; a inexistência do consentimento seria compensada pela imputação
de efeitos semelhantes às “condutas socialmente típicas”. Exemplo de
repercussão favorável dessa doutrina na jurisprudência brasileira é a
Súmula n. 130 do STJ, cujo enunciado estabelece que “a empresa responde,
perante o cliente, pela reparação de dano ou furto de veículos
ocorridos em seu estabelecimento”. Não se trata aí de relação contratual
presumida ou implícita de depósito de coisas, mas de incidência de
dever autônomo de prestação de segurança e reparação derivado de conduta
social típica, independentemente da vontade da empresa (loja,
supermercado, shopping center) ou do detentor do veículo. O STJ
avançou no sentido de imputar responsabilidade até mesmo a órgãos
públicos, a exemplo dos estacionamentos de universidades públicas[9],
ainda que não haja relação de consumo de serviço, pela ausência de
remuneração atual ou potencial, requisito exigido pelo § 2º do art. 3º
do CDC . Em solução muito próxima, Pontes de Miranda entende que há
“dever de custódia que não deriva da relação jurídica de depósito, mas
sim da lei ou das circunstâncias” - nas quais podemos incluir a conduta
social típica – e que, em todas essas espécies, à relação jurídica
existente corresponde o dever de prestação, “dentro do qual se incrusta
o de custodiar”[10].
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