Participei na semana passada, na Universidade de Harvard, de uma
banca de doutorado de tese que discutia o tema das ações afirmativas no
Brasil: Racial Justice in Brazil: Struggles over Equality in Times of New Constitutionalism (“Justiça
Racial no Brasil: A Luta por Igualdade em Tempos de Novo
Constitucionalismo”), de autoria de Adílson Moreira. O autor já era
doutor no Brasil e vive nos Estados Unidos há mais de sete anos. Um belo
trabalho, com uma crítica sensível e equilibrada ao discurso oficial
brasileiro (“o humanismo racial brasileiro”) de que não há racismo entre
nós.
O discurso de que somos uma sociedade miscigenada e de que
não existe relação entre a cor da pele e o sucesso econômico e
profissional. As desigualdades seriam fruto de preconceitos e
discriminações sócio-econômicas, não raciais. Após desconstruir essa
maneira romântica e irreal como costumávamos pensar sobre nós mesmos, o
trabalho conclui que as ações afirmativas são decisivas para colocar
fim, em algum lugar do futuro, na posição de subordinação e
inferioridade das pessoas que têm a cor da pele mais escura.
Ações
afirmativas são políticas públicas que procuram dar uma vantagem
competitiva a determinados grupos, como forma de reparação de injustiças
históricas. Também contribuem para criar histórias de sucesso que
possam funcionar como símbolo e motivação para os grupos desfavorecidos.
Cotas raciais em universidades são uma espécie de ação afirmativa. Essa
não é, porém, a única forma de realizar o objetivo de inclusão. E,
possivelmente, nem é a melhor. Incentivos e ensino de qualidade na
primeira infância, por exemplo, são alternativas mais eficientes no
longo prazo.
As cotas, porém, são um mecanismo emergencial e
paliativo de promover ascensão social e, sobretudo, de propiciar à
próxima geração – os filhos dos cotistas – maiores chances de romper o
cerco e de ter acesso a bens sociais e valores culturais que fazem a
vida ser melhor e maior. Uma “etapa”, como registrou a ministra Carmen
Lúcia, ao votar no memorável julgamento da ADPF 186, relatada pelo
ministro Ricardo Lewandowski, na qual se validou a política de cotas
étnico-raciais.
Há três posições básicas em relação à questão
racial. A primeira é a do mais puro e assumido racismo, baseado na
crença de que alguns grupos de pessoas são superiores a outros. A
segunda sustenta que, no caso brasileiro, somos uma sociedade
miscigenada, na qual ninguém é diferenciado por ser, por exemplo, negro.
Reconhecem desequilíbrios no acesso à riqueza e às oportunidades, mas
eles seriam de natureza econômica, não racial. Por essa razão, os
defensores desse segundo ponto de vista opõem-se às políticas de ações
afirmativas, que levariam à “racialização” da sociedade brasileira, em
canhestra imitação dos norte-americanos.
A terceira posição é a de que é fora de dúvida que negros e pessoas
de pele escura, em geral, enfrentam dificuldades e discriminações ao
longo da vida, claramente decorrente de aspectos ligados à aparência
física. Uma posição inferior, que vem desde a escravidão e que foi
potencializada por uma exclusão social renitente.
Em relação aos
que professam o primeiro ponto de vista – o do racismo assumido –, tudo o
que se pode esperar é que um dia uma luz moral ou espiritual venha
iluminá-los. Onde não há racionalidade, não há argumentos a oferecer.
Gente que não se impressiona com o fato de que não há raças, do ponto de
vista científico, como já amplamente comprovado. Elas só existem como
um fenômeno social e cultural, como uma forma de conservação de poder e
de hierarquização de pessoas.
Já os que defendem o humanismo
racial brasileiro, fundado na suposição de que aqui transcendemos a
questão racial, acreditam sermos uma sociedade homogeneizada pela
miscigenação. Todos são iguais, independentemente da cor da pele. Vale
dizer: veem o que desejam e creem no que preferem, confundindo vontade
com realidade. Para chegar a esta conclusão relativamente simples, basta
olhar a quantidade irrisória de negros em postos de primeiro time no
governo, nas empresas e nos escritórios de advocacia.
Na
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), ambiente acadêmico em
que habito, a política de cotas sócio-econômicas e raciais tem produzido
uma revolução profunda, silenciosa e emocionante. Um laboratório de
inclusão social, onde jovens pobres e negros se superam para alcançar
uma vida melhor. Um pouco melhor para eles próprios. Muito melhor para
os seus filhos.
Em 1998, eu dei a aula inaugural da universidade,
falando para uma plateia de professores e de alunos em que quase 100%
eram brancos. A cota racial era inequívoca: só entravam brancos. Este
ano, voltei a dar a aula inaugural, já agora celebrando 25 anos da
Constituição. Os professores continuavam todos brancos. Mas a audiência,
repleta, interessada e calorosa, era um arco-íris de cores, de Angola à
Escandinávia. Um dia será assim, também, no corpo docente. Um
esclarecimento: não se trata de imitação do que se passa nos Estados
Unidos, pois lá cotas raciais não são admitidas pela Suprema Corte.
Minha
filha faz vestibular este ano. Em razão das cotas raciais, suas chances
de entrar para uma universidade pública de primeira linha são mais
difíceis. Eu lamento, mas não me arrependo de defender esta modalidade
de ação afirmativa. Nem ela. Ambos sabemos que acima das nossas
circunstâncias pessoais, estamos fazendo um país melhor. Um mundo
melhor. Tenho fé que, em algumas gerações, a cor da pele será
irrelevante. O processo civilizatório tem derrotado sucessivos
preconceitos. Nesse dia, não precisaremos mais de ações afirmativas.
Mas, até lá, é preciso escolher um lado.
Luís Roberto Barroso é
professor titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (UERJ), mestre em Direito pela Yale Law School e
doutor e Livre-docente pela UERJ. Professor Visitante – Universidade de
Brasília (UNB). Visiting Scholar – Harvard Law School.
Revista Consultor Jurídico, 6 de maio de 2013
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