quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Podemos internar os viciados à força?

Saiu na Folha de hoje (25/1/12):
90% aprovam internação involuntária
É quase uma unanimidade: 9 em cada 10 brasileiros acham que os viciados em crack devem ser internados para tratamento mesmo que não queiram (…)
A chamada internação involuntária (feita à revelia do paciente/viciado) é prevista na lei 10.216, de 2001, que trata de doentes mentais (…)
O psiquiatra Marcelo Ribeiro, professor na Unifesp e um dos organizadores do livro "O Tratamento do Usuário do Crack", diz que a internação involuntária deve ser considerada para os que estão numa fase aguda do vício, quando o drogado perde a capacidade de escolher se deixa ou não o consumo do crack, e é o primeiro passo para que o viciado recupere a condição de analisar a própria vida (…)
Já o Conselho Federal de Psicologia é contra. O presidente do órgão, Humberto Verona, diz que a internação involuntária não pode ser vista como sinônimo de tratamento (…)
Outro argumento dos que discordam da internação sem o consentimento dos doentes é que os direitos deles estariam sendo violados.


Esse é um assunto interessante do ponto de vista jurídico porque o Brasil – como outras democracias – ainda não conseguiu encontrar uma solução racional, seja para justificar a internação, seja para justificar a não internação.

O artigo 5
o da Constituição diz que todos somos livres e que temos direito (e não obrigação) à vida. Essa liberdade inclui o direito de fazermos com nossas vidas o que quisermos. Se eu quiser viver na miséria, viver na rua ou me matar, eu posso. A lei não pode me obrigar a trabalhar, a viver em uma casa ou me punir se eu tentar me matar.

Por outro lado, a lei não pode me garantir o contrário: ela não pode me garantir que eu serei bem sucedido, que eu viverei em uma mansão ou que eu não morrerei ao sair de casa hoje. O que ela garante é que, se eu precisar e quiser tratamento médico, haverá (ou deveria haver) um hospital para me ajudar; se eu precisar e quiser um abrigo, haverá (ou deveria haver) um albergue público para me acolher. Se alguém ameaça minha vida, posso recorrer à polícia para me proteger.

Ou seja, a lei garante um mínimo de proteção se eu precisar e quiser utiliza-la, e garante que se eu não quiser utilizar tal ‘rede de proteção’, eu não serei obrigado a faze-lo.

Por conta disso, se eu quiser me matar tomando algum medicamento ou me tornar incapacitado, posso. Não deveria (regra moral), mas posso (regra legal).

Mas nossas leis adotam um princípio básico de que algumas pessoas não sabem o que estão fazendo e, por isso, devem ser protegidas de forma especial. E um dos mecanismos de proteção é retirar delas o direito de decidir o que fazer com suas vidas.

Uma criança órfã que herde uma fortuna enorme não pode gerenciar seu dinheiro enquanto não atingir a capacidade civil (18 anos; ou após os 16 anos, se for emancipada). Se ela pudesse, gastaria tudo em jujubas e picolés. Isso não é uma punição contra ela, mas uma forma de protege-la. O mesmo ocorre se uma criança precisar de tratamento médico. Se dependesse dela, ela jamais tomaria a injeção ou faria a cirurgia. Mas a injeção ou cirurgia são essenciais para protege-la, ainda que ela não saiba disso. É por isso que a lei deixa nas mãos dos pais (ou mesmo da Justiça) decidir por ela. Novamente, isso não é uma punição, mas um mecanismo de proteção. Quando ela se tornar adulta e souber o que está fazendo, ela poderá recusar tratamento médico, mesmo que isso signifique que ela irá morrer (pense nos grupos religiosos que recusam a transfusão de sangue, por exemplo). E poderá gastar sua herança em jujubas e picolés, se ainda quiser. Em outras palavras, as pessoas capazes é que não são obrigadas a utilizar a rede de segurança garantida pela lei. As incapazes são obrigadas a utilizar tal rede até se tornarem capazes.

Bem, a lei diz que não são apenas os menores que são incapazes. Os deficientes mentais, por exemplo, também são incapazes, na medida de sua deficiência.

E ela também não trata a incapacidade como algo único. Ela estabelece graus de incapacidade: aqueles que são absolutamente incapazes e aqueles que são apenas relativamente incapazes. Por exemplo, alguém entre 16 e 18 anos é relativamente incapaz, enquanto alguém mais novo será absolutamente incapaz.

No grupo dos relativamente incapazes, a lei inclui “os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido” (art 4
o do Código Civil). Em outras palavras, os alcoólatras e viciados em drogas são relativamente incapazes.

E é isso que complica a decisão sobre como trata-los. Se fossem absolutamente incapazes, a solução seria fácil: não sabem o que estão fazendo e por isso devem ser internados para sua própria proteção. Mas o relativamente incapaz sabe o que está fazendo, ao menos até certo ponto. É por isso que ele pode tomar decisões que afetam sua vida, desde que assistido por outra pessoa que vele por seus interesses. Essa segunda pessoa (o responsável legal, como os pais ou tutores) está lá para auxiliar e preencher o vácuo deixado pelo que ainda lhe falta para atingir uma capacidade plena.

E aí aparecem três problemas jurídicos e práticos que continuam sem solução no país:

Quão capazes eles são para decidir se precisam e/ou devem ser internados? Eles estão mais para um adulto ou mais para uma criança? Em alguns momentos eles estão totalmente lúcidos, e em outros, não. Como chegar a uma regra aplicável na prática e justificável racionalmente? A lei não tem uma solução prática e genérica.

É possível tratar usuários diferentes, drogas diferentes, e formas de uso diferentes da mesma forma? Alguém que usa a droga duas vezes por dia deve ser tratado da mesma forma que alguém que a usa três vezes por dia e alguém que a usa cinco vezes por dia, mas apenas uma vez por semana? E alguém que usa um pouco de crack deve ser tratado da mesma forma que alguém que muita maconha? E o que é 'um pouco' de crack? É possível achar uma regra geral? Sem uma regra geral (ou regras específicas que sejam práticas), é difícil elaborar uma lei útil, e dezenas de milhares de casos irão parar na Justiça e terão de ser decididos um a um, o que vai causar mais problemas do que resolver.

Finalmente, vale a pena forçar alguém que não quer se tratar, ser internado? A lei não existe em um vácuo. Ela existe para organizar a nossa realidade. As boas leis são aquelas que resolvem problemas reais. As leis ruins são aquelas que criam mais problemas. Pode ser uma perda de tempo gastar recursos públicos para tratar alguém que não quer se tratar. Ou pode não ser. Se a decisão de não ser internada é racional, as chances sucesso do tratamento são bem menores porque é uma opção de vida da pessoa ser viciada (como no caso do adulto que resolveu recusar tratamento médico). Mas se ela não sabe, a internação forçada pode ser uma forma efetiva de tratar (como no caso da criança que não pode recusar tratamento médico). Mas como ela é incapaz, e como seres humanos não vêm com lâmpadas na testa mostrando se são/estão racionais ou não, a lei ainda não encontrou uma forma prática de saber qual o melhor caminho a tomar.

PS: A Lei 10.216/01, mencionada na matéria, trata de internação voluntária de pessoas com transtorno mental e não especificamente de viciados. A lei não diz que o viciado sofre de transtorno mental e que ele deve ser tratado como tal. Isso é algo ainda em debate. E essa lei serve, como ela mesma diz, para proteger os direitos do portador de transtorno mental, e não como uma punição, e a internação só pode acontecer "quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes". Isso significa que primeiro deve-se tentar resolver o problema sem internar a pessoa no hospital. Só se isso falhar é que a pessoa deve ser internada. Mas, novamente, essa lei é para quem sofre de transtorno mental. Ela em nenhum momento define o que é transtorno mental.

Nenhum comentário:

Postar um comentário