domingo, 18 de novembro de 2018

Alienação parental: os filhos não são coisas que se usem como arma

01/09/2018

Quando um casal se separa a primeira preocupação é minimizar o sofrimento dos filhos. Devia ser assim. Mas nem sempre é. Há quem deixe o desejo de vingança sobrepor-se o bem-estar e superior interesse das crianças. Os danos e os traumas podem ser enormes. O que é a alienação parental e como combatê-la? Foi o que tentámos perceber, junto de especialistas. E de quem a viveu.
Texto de Paula Sofia Luz | Fotografias de Fernando Marques e iStock
Joana, que prefere não dar o verdadeiro nome, só descobriu o termo «alienação» quando os filhos (adolescentes) foram de férias com o pai e não voltaram. Mas lembra-se bem do que lhe disse o advogado: «não podemos usar esse termo em tribunal». Dez anos depois de uma guerra que a desgastou emocionalmente e deixou «danos irreparáveis na personalidade dos filhos», não tem dúvidas do longo caminho já percorrido.
Hoje vive com os três filhos, mas na bagagem traz todo o processo que a impediu de ver as crianças durante meses, ao ponto de não reconhecer um deles, quando o reencontrou. «Tinha mudado o corte de cabelo, os gestos e as atitudes eram outras. A manipulação tem efeitos tremendos numa criança». E, no entanto, haviam passado («apenas») quatro meses, período durante o qual nada soube do paradeiro dos filhos.
«Deixaram de me atender o telefone. O pai atendia, mas só me dizia que estava tudo bem, que eles estavam bem e não me queriam ver. Convenci-me que estavam no estrangeiro. Afinal estiveram sempre em Lisboa. Quando voltei a vê-los eram miúdos completamente alienados. Dois deles recuperaram bem, mas a menina (mais nova) ainda hoje tem dificuldade em distinguir a verdade da mentira, o que foi real ou fantasia, não tem noção do interior e do exterior. E nisso é que o sistema deveria pensar: o mal que um processo de alienação causa na vida de uma criança».
A psicóloga Eva Delgado Martins defende a existência de um «gestor de família» para prevenir a alienação parental. [Fotografia de Jorge Amaral/Global Imagens]
A psicóloga Eva Delgado Martins, que se tem dedicado a esta matéria, ajuda a pensar nisso. A alienação parental, explica, «resulta da obrigação que um filho sente em desqualificar o progenitor “alienado” e emerge da combinação de uma série de atitudes e comportamentos de crítica de um dos pais em relação ao outro. Os pais alienantes enfrentam o divórcio como uma guerra a vencer a qualquer custo, muitas vezes não estando conscientes das consequências deste combate para a saúde emocional do filho, utilizado como arma de arremesso, na agressão entre pai e mãe. Em consequência da alienação, os filhos interagem menos tempo com o pai ou a mãe alienados, impedindo-os de criar condições para que possam defender-se com sucesso das falsas acusações». 
A alienação parental é uma forma de abuso e violência contra as crianças, com consequências terríveis para o seu bem-estar psicológico, comportamento e desenvolvimento [Fotografia de Fernando Marques]
Foi para lutar contra isso, apesar do desgaste indizível, que Joana procurou ajuda. Encontrou-a na Associação Para a Igualdade Parental e Direitos dos Filhos (APIPDF), mas sentia necessidade de um apoio mais técnico, que a ajudasse a superar tamanha dor, a de se ver rejeitada pelos filhos.
Foi assim que se cruzou com Eva Delgado Martins – que defende a existência de um «gestor de família», que nos processos de responsabilidade parental consiga servir de mediador entre todos os técnicos, desde a psicologia ao direito.
«Ela foi-me guiando, e isso foi uma ajuda sem preço», sublinha Joana, certa de que, em Portugal, «nem todos os pais alienados têm essa sorte». Aproveitando «todos os acordos» – contrariamente à estratégia do próprio advogado –, Joana conseguiu retomar o contacto com os filhos, que aos poucos foram voltando, e hoje vivem com ela. «Mas eu sei que o meu caso é a exceção e não a regra», diz.
As recusas de visita, os impedimentos quando queria falar ao telefone com as filhas, o afastamento que sentia galopar, levaram Luís a perceber uma realidade que desconhecia: «Foi quando descobri que estava a tornar-me num pai alienado»
Não se conhecem os números da alienação parental, mas o que se sabe, empiricamente, é que esta, felizmente, também é uma exceção. Não afeta mais homens do que mulheres, segundo Ricardo Simões, presidente da APIPDF, e não acontece só quando os pais se separam ou divorciam. Embora seja mais comum nesses processos, pode verificar-se também quando o casal se mantém, em relações de elevada conflitualidade, configurando, sempre, uma forma de abuso e violência contra as crianças, com consequências desastrosas para o seu bem-estar psicológico, comportamento e desenvolvimento.
Instabilidade, sentimentos de culpa, conflito de lealdades, agressividade, mudanças de humor repentinas, sentimento de abandono, alterações nos padrões de sono e alimentação, dificuldade de concentração, mau desempenho escolar, no imediato, propensão para depressão, ansiedade, pânico, baixa autoestima, dificuldade em estabelecer relações com os outros, personalidade manipuladora, comportamentos de risco ou consumos problemáticos, a longo prazo.
Foi para evitar que as filhas sofressem estas consequências que Luís Couto se juntou à Associação para a Igualdade Parental e Direitos dos Filhos, onde faz agora atendimento aos pais que vão chegando, em situação idêntica. Até há uns meses, nunca ouvira falar de alienação parental.
No inverno de 2017, aconteceu-lhe a tempestade. Saiu de casa e, durante os primeiros meses, conseguia ver as filhas (a mais velha tem agora dois anos e meio, a mais nova apenas 14 meses), em casa da mãe, em cada fim de semana. As coisas começaram a mudar, quando Luís propôs a residência alternada. A «condescendência» da mãe, nos meses seguintes à separação, mudou radicalmente.
«O frustrante de tudo isto é que parece que estamos a jogar um jogo que já sabemos que vamos perder», lamenta Luís Couto.
Luís começou à procura de respostas para lidar com a situação, com as recusas de visita que começaram a acontecer, com os impedimentos que apareciam quando queria falar ao telefone com as meninas, com o afastamento que sentia galopar. «Foi quando descobri que estava a tornar-me num pai alienado, que isto era mais comum do que poderia supor. Porque a alienação vai acontecendo, aos poucos», diz, meses depois de ter comprado uma guerra que não queria [conheça na fotogaleria acima alguns Sinais de Alienação Parental].
A 19 de março, no Dia do Pai, finalmente conseguiu passar o dia com elas, ao cabo de cinco meses «a negociar». Foi a primeira pequena batalha ganha, embora Luís saiba que a contenda não tem fim à vista.
Joana quase se tornou especialista em Direito da Família com a batalha legal que teve que enfrentar para recuperar o contacto com os filhos. «O objetivo é sempre o mesmo: atrasar o processo de regulação de responsabilidades parentais».
«O frustrante de tudo isto é que parece que estamos a jogar um jogo que já sabemos que vamos perder», diz o pai, que entretanto se viu no meio de vários processos judiciais, nomeadamente acusado de violência doméstica, situação comum em casos de alienação parental.
O mesmo aconteceu a Joana, que quase se tornou especialista em Direito da Família. «O objetivo é sempre o mesmo: atrasar o processo de regulação de responsabilidades parentais», diz.
Como forma de prevenir a alienação parental, a Associação para a Igualdade Parental e Direitos dos Filhos defende o modelo de residência alternada.
Como Joana, Luís não desiste. «São as minhas filhas e tenho um vínculo muito forte com elas», diz, contando como continua a fazer videochamadas e telefonemas para a creche, todos os dias, para impedir que esse vínculo se perca, o que é fácil nestas idades.
Como forma de prevenir a alienação parental, a Associação para a Igualdade Parental e Direitos dos Filhos defende o modelo de residência alternada. Ricardo Simões, presidente da direção, acredita que esse caminho começou com a chegada à Assembleia da República da petição que advoga a presunção jurídica deste modelo.
Defende, no entanto, que «a abordagem de longo prazo tem que ser a diferentes níveis. Por um lado, coordenada e multidisciplinar por parte das instituições ligadas à Justiça e por outro lado uma maior consciencialização da sociedade para o fenómeno, ao ponto de existir uma maior censura social a estes comportamentos» [ver abaixo caixa «Experiências noutros países»].
Luís Couto trabalha no Porto, as filhas moram na região centro com a mãe, de acordo com a decisão judicial provisória. A sentença permitiu-lhe estar com elas às quartas-feiras e dois fins-de-semana por mês. Faz centenas de quilómetros para estar três horas com elas. E depois vêm as dúvidas, o labirinto que é a educação.
À porta da APIPDF (com sede em Lisboa, mas com grupos de mútua ajuda em Évora, Paço de Arcos, Leiria, Santa Maria da Feira e Porto) batem cada vez mais pais e mães, mas também avós e avôs
«É claro que quando se está apenas esse tempo, é grande a tentação de fazer todas as vontades, para que sejam um tempo só de mimos, sem contrariedades. O paradoxo é que há pais que vivem felizes com isso, que lhes basta. Mas quem é pai tem de ser a tempo inteiro. Eu tenho de ter tempo para estar com as minhas filhas. Não sou uma visita, nem um parente ou amigo com quem passam alguns períodos», diz.
À porta da APIPDF (com sede em Lisboa, mas com grupos de mútua ajuda em Évora, Paço de Arcos, Leiria, Santa Maria da Feira e Porto) batem cada vez mais pais e mães, mas também avós e avôs. Patrícia Mendes, vogal da direção, sublinha como é importante «perceber-se que a alienação parental é um comportamento extremo. Que existe, é dramático, e de difícil gestão. Mas mais importante ainda é que tenhamos a noção de que o conflito continuado e prolongado, por si só, é prejudicial para o normal e saudável crescimento e desenvolvimento da criança ou adolescentes envolvidos».
Não são os pais que querem sempre o melhor para os filhos?

Experiências noutros países

Paulo Akyama
Brasil quer a criminalização da alienação parental
Lá fora, há países que estão a fazer caminhos paralelos no que toca à igualdade parental. No Brasil, por exemplo, está em curso um projeto-lei para criminalizar a alienação. Foi esse testemunho que o advogado Paulo Akyama trouxe a Portugal no início de junho, na 7ª Conferência Internacional «Igualdade Parental Século XXI», promovida pela APIPDF. De acordo com o jurista, essa é uma discussão que dura há dois anos: «por vezes o ser humano não vai lá de outra maneira. A lei prevê uma série de punições para o alienador, mas mesmo assim ele acaba utilizando uma falsa denúncia e esconde-se atrás da criança. O que este projeto-lei prevê é uma criminalização pedagógica». Por comparação, sublinha o avanço observado em Portugal, «onde a residência alternada já é bem mais frequente do que lá».
Marie-France Carlier
Bélgica: consenso parental contra a alienação
Na Bélgica, na divisão de Dinant (tribunal de Namur) a juíza Marie-France Carlier tem-se destacado por aplicar um modelo de consenso parental, reduzindo drasticamente a alienação. Importou-o da Alemanha, de uma pequena cidade onde, em 1992, «um juiz visionário (Jurgen Rudolph) se deu conta de que não andávamos a proceder bem nos processos de separação familiar. A verdade é que a maioria das suas ideias foram replicadas na jurisdição alemã», diz Marie-France Carlier, que em 2009 assistiu pela primeira vez a uma formação do magistrado. A partir daí começou ela própria a colocar em prática esse «modelo de cooperação entre todos os intervenientes, desde a família aos técnicos, por forma a proteger as crianças, verdadeiras vítimas destes processos. É um modelo que responsabiliza os pais e os obriga a encontrar soluções amigáveis. Vão passando por conferências, e em cada uma delas, de três em três meses, têm de levar um pouco mais de acordo, até que se alcance os 100%. Quer dizer que não é o juiz que decide, são os pais, depois de estarem preparados para isso, ajudados por psicólogos, advogados e outros técnicos.»
Karen Woodall
Inglaterra: promover a conciliação
Também em Inglaterra há passos importantes neste caminho. Karen Woodall é psicoterapeuta e mentora de uma clínica especializada no apoio aos pais e filhos vítimas de alienação parental. «Atualmente, são tantos os pais como as mães rejeitados pelos filhos, se bem que as mães sintam mais o peso e vergonha dessa situação», diz. «Começámos a produzir oportunidades de reconciliar relações familiares que, antes de as trabalharmos, não seriam possíveis. Como alguns pais que ficavam com a custódia das crianças, tentavam depois da separação, evitar que estas se relacionassem bem com o outro progenitor, em vez de irmos buscá-las a casa de um e levá-las a casa do outro, começámos a ir buscá-las à escola, a promover o encontro em ambiente neutro e aí sim trabalhar com o pai e a criança que não se relacionavam bem». Os sucessos têm sido notados a nível internacional.

Residência alternada: quando os pais se separam, não têm que separar-se dos filhos, pois não?

16/11/2018

Às vezes, em consultório, quando os pais lhe perguntam «Como acha que o meu filho vai reagir?» referindo-se, quer ao divórcio, quer aos regimes de residência e visitas, a psicóloga Catarina Ribeiro responde: «Isso só daqui a 30 anos é que vamos mesmo saber.» Foi o que fizemos: fomos ouvir três mulheres, Sara Oliveira, Alexandra Mendonça e Maria Portugal, que, em criança, passaram pelo divórcio dos pais e por regimes de guarda, visitas e residência escolhidos e geridos pelos adultos. E que contam, na primeira pessoa, que marcas ficaram, o que recordam, como mudou isso as suas vidas e aquilo em que acreditam. Ouvimos ainda especialistas sobre a presunção jurídica da residência alternada, uma solução que ganha cada vez mais força.
Textos de Sofia Teixeira
«Alívio. Foi o que senti quando os meus pais me disseram que se iam separar. Eles já faziam vidas separadas debaixo do mesmo teto e, mesmo assim, havia discussões nos raros momentos em que estavam na mesma divisão. Eu tinha 10 anos, o meu irmão 8, e os nossos pais fizeram questão de saber o que nós preferíamos.
Na altura os divórcios não eram tão frequentes, mas nós tínhamos referências entre amigos e era sempre aquele sistema de estar com o pai quatro dias por mês. Não queríamos aquilo para nós: gostávamos dos dois e queríamos estar o mesmo tempo com ambos.
Sara Lajas de Oliveira, 30 anos, consultora de comunicação. Casada, mãe do Diogo, com 1 ano, filha de pais divorciados desde os 10 anos. [Fotografia de Carlos Costa/Global Imagens]
O divórcio exigiu uma adaptação, mas foi pacífica. Honestamente, acho que as coisas mudaram para melhor. Passámos a ter tempo de qualidade com ambos, num ambiente tranquilo, o que não acontecia antes.
Foi o meu pai que ficou na casa de família e a nossa mãe mudou-se para um apartamento pequeno, muito perto, para tornar a residência alternada possível. Começámos por estar uma semana em cada casa, mais tarde já ficávamos 15 dias de cada lado. O meu pai na altura trabalhava a cem quilómetros de casa e fazia das tripas coração para nos ir buscar a horas quando estávamos com ele. Quando não conseguia, os meus avós ajudavam.
«Às vezes pergunto ao meu marido: “Se deixássemos de nos entender, eras capaz de ver o Diogo só de 15 em 15 dias? Era o melhor para o nosso filho?” Ele, claro, responde que não.»
Lembro-me de fazermos puzzles ou vermos filmes com o meu pai. Ele sentava-se no sofá, a meio dos dois, e fazia-nos festas nas costas. Com a minha mãe, ajudávamos a fazer o jantar. Não consigo imaginar não ter tido estes momentos diários com ambos e sinto-me grata por eles por nos terem dado esta oportunidade.
Estou casada há quatro anos. O meu marido também é filho de pais divorciados e estava com o pai só aos fins de semana. Ele achava o meu regime de residência alternada muito esquisito, mas com o tempo começou a perceber que fazia sentido.
Agora, que temos um filho de ano e meio, às vezes pergunto-lhe: “Se deixássemos de nos entender, eras capaz de ver o Diogo só de 15 em 15 dias? Achas que era o melhor para o nosso filho?” Ele, claro, responde que não.»

Alexandra Mendonça: «O meu pai criou duas filhas independentes, responsáveis e educadas»

«Um dia a minha mãe chegou a casa e disse que queria o divórcio. Ia mudar-se e não ia levar as filhas. Precisava de tempo e espaço. Deixou-me a mim, com 9 anos, e à minha irmã, com 6, entregues ao meu pai. Toda a gente pensou que seria temporário. Não foi.
Um ano depois, em tribunal, manteve a decisão. A guarda foi entregue ao meu pai, mesmo tendo ele menos recursos financeiros e nenhum suporte familiar. Foi assim até sairmos de Loulé para estudar em Lisboa, dez anos depois. A minha mãe pagava uma pensão de alimentos e tinha direito a dois fins de semana por mês.
Alexandra Mendonça, 37 anos, enfermeira. Separada, mãe da Margarida, de 8 anos, filha de pais divorciados desde os 9 anos. [Fotografia de Gustavo Bom/Global Imagens]
Houve fases em que passava muito tempo sem a ver, noutras passava quase todos os dias na loja dela, depois da escola, para lhe dar um beijinho. Eu não exteriorizava, mas sentia raiva, rejeição e abandono. E custou-me muito o preconceito: alguns pais que não deixavam as filhas brincarem connosco. Diziam: “Duas meninas a serem criadas só por um homem? Não vai sair dali coisa boa.
Quando me separei do pai da Margarida, ainda durante a gravidez, achava óbvio que ela devia passar o mesmo tempo com os dois.
O meu pai criou duas filhas independentes, responsáveis e educadas, capazes de se safarem em qualquer situação – eu até sei trabalhar com um berbequim e fazer instalações elétricas. Claro que sou mais chegada a ele do que à minha mãe.
Foi ele que me criou, que esteve presente em todos os momentos, até na primeira menstruação. Perdoei a minha mãe, mas há uma cicatriz que ficou, um distanciamento emocional. Acho que não é uma relação tão próxima como as mães e filhas costumam ter. Mas ela é uma avó disponível e extraordinária para minha filha Margarida. Talvez tente compensar a disponibilidade que não teve para mim.
Quando me separei do pai da Margarida, ainda durante a gravidez, achava óbvio que ela devia passar o mesmo tempo com os dois. Eu sabia o que é crescer quase sem um dos pais e não queria isso para a minha filha. Mas às vezes, na prática, não é possível fazer o que é melhor em teoria. Hoje ela vive só comigo, com visitas ao pai de 15 em 15 dias – quando ele as cumpre. Nunca o critico à frente dela.
Seja qual for a relação que eles venham a ter no futuro, será construída pelos dois, não por influência do que eu penso. Como a relação que criei com o meu pai e com a minha mãe foi fruto das opções de cada um.»

Maria Portugal «O divórcio e as responsabilidades parentais, antes de serem uma questão jurídica, são um processo emocional.»

«Os meus pais divorciaram-se em 1979, tinha eu 6 anos e a minha irmã 5. Não tenho memória de os ver juntos, mas tenho memória dos conflitos depois da separação. Nos primeiros tempos, quando o meu pai nos ia buscar, havia sempre discussões à porta de casa, como se nós não estivéssemos ali. Hoje sei que facilmente os adultos perdem o bom senso quando se divorciam. Na altura sentia apenas que preferia que eles não se encontrassem.
Olhando hoje para o que decidiram em relação a nós, não sei se foi a melhor opção. Mas percebo que há 39 anos fizeram aquilo que se fazia sempre: ficámos a viver com a minha mãe e passávamos os fins de semana de 15 em 15 dias com o meu pai. Com o tempo, passaram a existir outros momentos de contacto: ele ia buscar-nos a casa todas as manhãs para nos levar ao liceu.
Maria Portugal, 45 anos, psicopedagoga. Divorciada, mãe do Manuel e do Vicente, 14 anos e 8 anos. Filha de pais divorciados desde os 6 anos. [Fotografia de Bruno Raposo/Global Imagens]
Eu adorava e hoje valorizo imenso o esforço que fazia para termos esses momentos. Hoje com o meu pai tenho boa relação, com a minha mãe não há relação nenhuma, mas por razões que nada têm que ver com o passado.
Hoje sei que facilmente os adultos perdem o bom senso quando se divorciam. Na altura sentia apenas que preferia que os meus pais não se encontrassem.
Quando me separei do meu ex-marido, o nosso filho Manuel tinha 3 anos e o Vicente apenas dois meses. Eles começaram por estar com o pai um fim de semana de 15 em 15 dias. Mais tarde, quando o Manuel já tinha 8 anos, começou a dizer-me que achava injusto estar tão pouco tempo com o pai e o meu ex-marido propôs-me a residência alternada. Não adorei a ideia, mas não tinha razão para me opor.
É como costumo dizer às mães com quem trabalho: estamos programadas para achar que os filhos são nossos, mas os filhos são do mundo. Agora, desde há um mês, os miúdos estão de novo mais tempo comigo: como o pai está com um projeto profissional que lhe ocupa muito tempo achámos que fazia mais sentido assim.
Sou psicopedagoga e, depois do meu divórcio, comecei também a trabalhar com pais separados porque percebi a falta de suporte que têm. Criei em 2013 um grupo de Facebook chamado Mães na (Par)entalidade para sensibilizar as mães para as questões da equidade na parentalidade e depois um projeto chamado divorcio.com.pt onde, em parceria com uma advogada, aconselhamos as famílias a lidarem com as dificuldades e tentamos que o acordo jurídico não descure as necessidades emocionais de todos. O divórcio e as responsabilidades parentais, antes de serem uma questão jurídica, são um processo emocional.»
Fotografia de Fernando Marques
O tema não é novo e as dúvidas também não, mas o debate intensificou-se nos últimos meses com a entrega, na Assembleia da República, da petição em prol da presunção jurídica da residência alternada pela Associação Portuguesa de Associação Portuguesa para a Igualdade Parental e Direitos dos Filhos, e com a tomada de posição, pró ou contra, de várias figuras da esfera pública e associações da sociedade civil.
Esta semana tomou posição sobre a matéria, defendendo que a legislação portuguesa deve prever expressamente a residência alternada dos filhos de pais separados, possibilidade atualmente omissa na lei.
Como adiantou ontem o Diário de Notícias, num parecer enviado à Assembleia da República, a propósito da petição que defende que as crianças filhas de pais separados devem coabitar com ambos os progenitores, o órgão que supervisiona os magistrados é breve na apreciação: «O princípio de que, salvo motivos ponderosos, a residência dos filhos de pais separados deve ser com ambos os progenitores, de forma alternada e com possível adequação ao caso concreto pelo juiz, é de prever legalmente.»
Com esta deliberação, aprovada a 30 de outubro em sessão plenária do CSM, o órgão que supervisiona os juízes junta-se à Procuradoria-Geral da República (PGR), que defendeu também que a residência alternada de filhos de pais separados deve ficar expressamente prevista no Código Civil. Mas a PGR vai mais longe, defendendo que a alternância entre a casa de ambos os pais deve ter um estatuto privilegiado relativamente a outras soluções – sendo a mais comum viver com um deles (na maior parte dos casos, a mãe), com visitas ao outro. E, sustenta a Procuradoria, a coabitação deve ser ponderada mesmo quando não haja acordo entre os progenitores.
Pesem algumas diferenças de opinião, que persistem, numa coisa todos parecem de acordo: o que é melhor para uma criança não se reduz a uma fórmula.
A literatura científica é clara neste domínio: «quando as competências parentais estão asseguradas – e é muito importante avaliar essas competências –, o regime que pode ser mais favorável para a criança é o que lhe permite ter um contacto alargado com ambos os progenitores», diz a psicóloga forense do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses do Porto.
«A lei já permite a residência alternada, mas o legislador a aplica-a pouco porque ainda há o mito generalizado de que o regime é perigoso.»
Joaquim Manuel de Silva, juiz
Mas a realidade é diversa. Por isso, embora acredite que, de futuro, o envolvimento parental igualitário vai ser cada vez mais uma realidade, a psicóloga não concorda com uma alteração legislativa que torne o regime a regra. «Qualquer presunção jurídica é limitadora, pondo em causa o olhar único que cada criança e família merecem.»
Para a psicóloga, uma vez que a lei atual já permite o regime, a prioridade deve ser a sensibilização, informação científica e boa assessoria técnica dos magistrados, «para que a decisões judiciais, sobretudo quando não há acordo entre os pais, não sejam tomadas com base em preconceitos sem fundamento, como por exemplo, que as mães, por definição, são melhores cuidadoras.»
Num estudo da Netsonda para a Associação Portuguesa para a Igualdade Parental e Direitos dos Filhos, divulgado em setembro deste ano, 68,6% dos inquiridos (mil pessoas com filhos) entende que, após a separação de um casal, as crianças devem ficar com os dois progenitores, alternadamente. Mas há um fosso gigante entre o que os portugueses pensam e o que fazem.
Embora não existam dados oficiais, juízes e outros atores do sistema judicial asseguram que os acordos que estipulam residência alternada não ultrapassam os oito a dez por cento. E os dados dos Censos de 2011 parecem confirmar a visão de quem trabalha na área: das famílias monoparentais com filhos menores de 18 anos, 89,2 por cento são femininas.
O que confirma que, na realidade, vigora uma «regra única» não oficial: são as mulheres que ficam, quase sempre, com a responsabilidade das crianças. É por isso que o juiz Joaquim Manuel de Silva, do Tribunal de Família e Menores de Mafra, apoia a introdução da presunção jurídica.
«Passar de uma relação diária para dois fins de semana por mês potencia emoções como tristeza, zanga, revolta, sentimentos de abandono e rejeição.»
Rute Agulhas, psicóloga
«A lei já permite a residência alternada, mas o legislador a aplica-a pouco porque ainda há o mito generalizado de que o regime é perigoso. Cabe ao legislador fazer a sua obrigação pelo direito da criança a ter pai e mãe e, também, por uma sociedade mais igualitária.»
Às críticas centradas no facto de esta alteração querer forçar, também, um regime único que não serve a todos, o magistrado defende que não é o caso. «Uma presunção jurídica é uma proposta política, traduzida em lei, que indica apenas que este é o regime preferencial. Não é uma imposição, é uma indicação, cabendo ao juiz verificar sempre, no concreto, se a solução serve àquela criança ou não.»
Uma coisa é certa: para que se estabeleça uma relação de vinculação segura da criança, tem de haver presença em continuidade. «Não bastam meras visitas ou convívios, estes não serão suficientes para que haja um adequado envolvimento parental», diz a psicóloga forense Rute Agulhas.
«Passar de uma relação diária para dois fins de semana por mês potencia emoções como tristeza, zanga, revolta, sentimentos de abandono e rejeição, com inúmeras consequências negativas possíveis para a criança e para o relacionamento com esse progenitor.»
A psicóloga defende que não faz sentido que a residência alternada seja aplicada só por acordo entre os progenitores ou, como refere a petição de oposição à presunção jurídica, «havendo confiança de cada um dos pais na competência do outro como progenitor». «É uma questão muito subjetiva que pode ser usada por um dos pais para comprometer a hipótese de residência alternada.
A psicóloga defende que os efeitos negativos podem ser uma realidade, mas não decorrem do divórcio por si, mas antes da forma como ele é gerido pelos adultos.
A alusão à não competência do outro tem de ser devidamente justificada, de forma consistente e fundamentada.» A sua posição sobre o regime vai ao encontro da da maioria dos outros especialistas: nem sempre não, nem sempre sim.
Se o desacordo entre pais é muito evidente e ninguém está disposto a ser flexível, é inevitável avançar para um processo judicial. Mas cada vez mais pais tentam resolver o assunto fora dos tribunais.
«De há alguns anos para cá, noto um aumento dos pedidos de consultas por pais ou mães que querem aconselhar-se sobre a melhor forma de gerir todo o processo, desde o momento de dar a notícia à criança até à ajuda na tomada de decisões quanto ao exercício conjunto das responsabilidades parentais», diz a psicóloga clínica Rita Castanheira Alves, diretora do projeto A Psicóloga dos Miúdos.
Os pais preocupam-se sobretudo com o impacto do divórcio na criança, tanto imediato, como a longo prazo. A psicóloga defende que os efeitos negativos podem ser uma realidade, mas não decorrem do divórcio por si, mas antes da forma como ele é gerido pelos adultos.