segunda-feira, 17 de março de 2025

Novo entendimento do STJ altera contrato de compra e venda de imóvel com alienação fiduciária em garantia

Murilo Zerrenner - 1 de abril de 2024, 19h36

De acordo com pesquisa do Datafolha [1], sete em cada dez brasileiros possui residência própria (sendo que 62% residem em imóveis já quitados e apenas 8% em imóveis financiados). Outros 27% vivem em imóveis alugados, enquanto 3% residem em imóveis cedidos ou emprestados.

Em média, o financiamento imobiliário compromete 27% da renda familiar no Brasil, sendo que para aquisição do sonhado imóvel próprio, o comprador celebra um contrato de compra e venda de imóvel com alienação fiduciária em garantia, que assegura à instituição financeira que, em caso de inadimplemento do devedor fiduciante, o próprio imóvel sirva para pagar a dívida.

O contrato de alienação fiduciária em garantia é uma das modalidades contratuais existentes no ordenamento jurídico brasileiro, que se destina a garantir o cumprimento de obrigações assumidas pelo devedor fiduciante em relação ao credor fiduciário.

Tal instrumento consiste na transferência da propriedade de um bem móvel ou imóvel do devedor fiduciante para o credor fiduciário, com o objetivo de assegurar o cumprimento de uma obrigação.

Nesse tipo de contrato, o devedor retém a posse direta do bem e o credor fiduciário recebe a posse indireta, juntamente com o direito de propriedade resolúvel.

O fundamento legal do contrato de alienação fiduciária em garantia guarda respaldo na Constituição de 1988, mais especificamente em seu artigo 5º, inciso XXII, e no artigo 22, inciso I, tratado de maneira específica pela Lei nº 9.514/1997, que regulamenta esse tipo de contrato, estabelecendo regras e procedimentos para sua realização e execução.

O artigo 5º, inciso XXII da Constituição estabelece o direito à propriedade como um dos direitos fundamentais do cidadão brasileiro. No entanto, admite-se a sua restrição em casos excepcionais, como é o caso da alienação fiduciária em garantia.

Essa modalidade contratual permite a transferência da propriedade resolúvel ao credor fiduciário, como forma de garantir o cumprimento de obrigações assumidas pelo devedor fiduciante.

Nesse sentido, a Lei nº 9.514/1997 estabelece normas específicas para a alienação fiduciária em garantia de imóveis, regulamentando a constituição, a representação, a obrigação, a transmissão, a modificação e a extinção do contrato, bem como os direitos e deveres das partes envolvidas.

Como é feito o contrato

O contrato de alienação fiduciária deve ser celebrado por escrito, com a presença de duas testemunhas. O contrato deve conter, obrigatoriamente, as seguintes informações: o valor da dívida garantida; a descrição do bem alienado; o prazo para o cumprimento da obrigação; as condições para a resolução do contrato; e as penalidades aplicáveis em caso de inadimplência.

O registro do contrato confere ao credor a garantia real sobre o bem alienado, de modo que, via de regra, entendia-se que a constituição da alienação fiduciária e seus efeitos dependem do registro do contrato no cartório de registro de imóveis competente, ou seja, o lugar da situação do bem.

Ocorre que, em recente decisão proferida nos autos do EREsp 1.866.844, no julgamento dos embargos de divergência, a 2ª seção do STJ decidiu que, mesmo que o contrato não seja registrado no registro de imóveis conforme exigido pelo artigo 23 da lei 9.514/97, isso não invalida ou torna ineficazes os termos acordados livremente entre as partes no contrato de propriedade fiduciária de imóvel.

Em termos gerais, tal entendimento viabiliza o cumprimento da alienação em favor do credor, nos casos em que for verificada inadimplência do devedor do devedor, mesmo que a formalidade exigida pela lei não tenha sido cumprida (o registro do instrumento perante o cartório competente).

Em sede de voto, o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, explicou que “o registro, conquanto despiciendo para conferir eficácia ao contrato de alienação fiduciária entre devedor fiduciante e credor fiduciário, é, sim, imprescindível para dar início à alienação extrajudicial do imóvel, tendo em vista que a constituição do devedor em mora e a eventual purgação desta se processa perante o oficial de registro de imóveis, nos moldes do artigo 26 da lei 9.514/97″.

Segundo o ministro, no entanto, essa exigência não dá ao devedor a possibilidade de cancelar o acordo de uma maneira diferente da prevista no contrato, independentemente de quem tinha a responsabilidade de registrar o contrato, seja o devedor ou o credor. Isso ocorre porque o credor fiduciário sempre pode solicitar ao cartório o registro antes de iniciar a alienação extrajudicial.

Desse modo, o entendimento consolidado pela a 2ª seção do STJ flexibiliza os requisitos formais para execução dos termos do contrato de compra e venda com alienação fiduciária em garantia, mesmo que não observadas as formalidades vinculadas ao registro do contrato perante o cartório. Tal medida municia e reforça as teses utilizadas pelas instituições financeiras e de crédito, auxiliando na desburocratização dos procedimentos e visando a efetiva tutela do direito em detrimento da formalidade excessiva.

 


[1] https://www.infomoney.com.br/minhas-financas/45-dos-brasileiros-que-pretendem-se-mudar-e-comprar-imovel-nao-se-planejam-para-isso-aponta-pesquisa/

Lei 14.711/23 - Alienação fiduciária em garantia e patrimônio de afetação

 Vitor Frederico Kümpel e Natália Sóller

quinta-feira, 23 de novembro de 2023


A lei 14.711/23, Lei de Garantias, promoveu diversas alterações no instituto da alienação fiduciária em garantia, modificando diretamente a lei 9.514/97, o Código Civil e outras leis que regulamentam a matéria. O objetivo desta coluna é analisar como tais alterações reforçam a tese de que a AFG tem natureza jurídica de patrimônio de afetação.


Não obstante a nova redação dada ao art. 22 da lei 9.514/97 tenha mantido a definição da AFG como uma forma de propriedade resolúvel1, entende-se que sua natureza mais adequada é a de patrimônio de afetação, não existindo de fato uma resolubilidade com a constituição dessa garantia2.


Em rápida análise, destaca-se que a propriedade resolúvel é uma cláusula aquela que está sujeita à extinção por uma condição resolutiva consignada no próprio título de sua constituição ou em determinação legal; nesse cenário, o titular do bem perde sua propriedade plena em favor de seu titular anterior ou de um terceiro, em razão do implemento de uma condição que fora estabelecida pelas partes no momento da transferência da propriedade (no título) ou que estiver prevista na lei. A alienação fiduciária em garantia, por sua vez, é um contrato com o objetivo de garantia, que gera um direito real de desafetação sobre o bem em favor do fiduciante e que não transfere a propriedade plena ao fiduciário para que, após a garantia, ela se resolva.


O bem adquirido em alienação fiduciária em garantia, embora esteja em nome inicialmente do fiduciário - para, após, ser transmitido ao fiduciante com a quitação -, fica segregado de seu patrimônio, não pertencendo a ele de forma plena desvinculada de outras obrigações, visto que, mesmo com a consolidação da propriedade diante do inadimplemento, o fiduciário ainda está obrigado a realizar sua aquisição plena e transmissão. Assim, o bem tem a finalidade precípua de servir como garantia daquela relação contratada e apenas se desvincula do gravame quando o crédito é quitado pelo fiduciante ou quando ele é levado a leilão pelo fiduciário em caso de inadimplemento.


Ademais, parece que as modificações promovidas pela Lei de Garantias reforçam tal posicionamento. A saber.


A inserção do §4º ao art. 22 da lei 9.514/97, passou a admitir as "alienações fiduciárias sucessivas", permitindo-se, portanto, a constituição de mais de uma garantia por alienação fiduciária sobre o mesmo bem3. Num primeiro momento, poder-se-ia ter o entendimento oposto, no sentido de que, justamente por se permitir apor mais de uma garantia sobre o mesmo bem, ele não estaria afetado à primeira alienação fiduciária. Contudo, o que deve ficar muito claro é que, para os credores de segundo grau para frente, a sua garantia ocorre sobre o direito real de aquisição que o fiduciante tem sobre o bem objeto da garantia (art. 1.368-B, CC)4.


Quando constituída uma alienação fiduciária em garantia, o devedor fiduciante adquire (até o momento da quitação plena) somente o direito real de aquisição sobre o bem, permanecendo a propriedade - afetada - sob titularidade do credor fiduciário. Dessa forma, o único direito que o fiduciante poderia efetivamente alienar em garantia é o seu direito real à reaquisição, leia-se desafetação, não tendo ainda outros direitos de propriedade sobre o bem passíveis de oneração.


Tanto que, pela própria redação do §4º, caso o primeiro credor fiduciário execute o bem, os demais apenas sub-rogar-se-ão no preço obtido, cancelando-se as AFGs posteriores, na medida em que o devedor fiduciante não conseguiu adquirir efetivamente seu direito de propriedade (desconstituindo-se também seu direito real à aquisição). Veja-se que a plena eficácia da alienação fiduciária se dá apenas para a primeira garantia5, tendo esse credor a obrigação apenas de disponibilizar eventual crédito remanescente aos demais.


Outra alteração legislativa que reforma o entendimento pela afetação é o "recarregamento" da garantia, inserido nos arts. 9-A a 9-D da lei 13.476/17, sobre constituição de gravames e ônus sobre ativos financeiros e valores mobiliários, art. 1.487-A do Código Civil e art. 167, II, 37 da Lei dos Registros Públicos.


Em resumo, passou-se a permitir a extensão da garantia nas situações de alienação fiduciária e hipoteca, de forma que tais garantias reais poderão servir para mais de uma obrigação ao mesmo tempo. Veja-se que a extensão se difere da sucessividade - nesta última, embora exista mais de uma obrigação, as garantias são, justamente, sucessivas, autônomas entre si.


Em âmbito da AFG, exige-se, para tanto, que o credor das obrigações garantidas seja o mesmo e que inexistam outras obrigações garantidas pelo bem a outros credores. Logicamente, não se poderia integrar a garantia para mais de uma obrigação se as partes fossem diversas e se o bem já estivesse onerado a terceiros6.


A possibilidade do recarregamento na AFG vai ao encontro do entendimento de que tal garantia gera um patrimônio separado, de forma que a afetação do bem pode ser estendida entre as partes da relação de garantia originária. Em outras palavras, as partes podem "otimizar" a destinação dada ao bem - qual seja a de garantia de alienação fiduciária - funcionando o direito para garantir mais de uma relação obrigacional de crédito entre as partes.


Na hipótese de se classificar o instituto como uma propriedade resolúvel, o recarregamento, na verdade, teria que alterar constantemente a "condição suspensiva", de forma a adaptar os termos que permitiriam a resolução da propriedade em favor do devedor. Nesse cenário, a obrigação originária, portanto, seria necessariamente alterada, na medida em que sua conclusão não mais necessariamente geraria a resolução, estando pendentes outras obrigações garantidas pelo bem.


Não parece, contudo, que o recarregamento admita alterações no vínculo originário ou das outras obrigações constituídas pelas mesmas partes, entendendo-se que ocorre apenas a extensão da afetação do bem em razão de outros vínculos criados pelas partes, concluindo-se os termos das obrigações de maneira autônoma e permanecendo a afetação até a quitação de todos os créditos.


Assim, a adoção do entendimento da natureza da alienação fiduciária em garantia como patrimônio de afetação está em consonância com as novas medidas propostas pela lei 14.711/23. Outras novidades serão analisadas, oportunamente, nesta coluna; sigam conosco!


Sejam felizes!

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[1] Art. 22. A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o fiduciante, com o escopo de garantia de obrigação própria ou de terceiro, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel (Redação dada pela Lei nº 14.711, de 2023)


[2] V. F. Kümpel - C. M. Ferrari, Tratado Notarial e Registral, vol. 5, t. 2, São Paulo, YK, 2020, p. 1775; N. Sóller, Alienação fiduciária em garantia: análise da propriedade fiduciária, do negócio fiduciário, da propriedade resolúvel, do patrimônio de afetação, do elemento de fidúcia e de seus antecedentes no direito romano, Dissertação (Mestrado) - Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2023.


[3] § 4º Havendo alienações fiduciárias sucessivas da propriedade superveniente, as anteriores terão prioridade em relação às posteriores na excussão da garantia, observado que, no caso de excussão do imóvel pelo credor fiduciário anterior com alienação a terceiros, os direitos dos credores fiduciários posteriores sub-rogam-se no preço obtido, cancelando-se os registros das respectivas alienações fiduciárias. (Incluído pela Lei nº 14.711, de 2023).


[4] Nesse mesmo sentido, C. E. E. Oliveira, Lei das Garantias (lei 14.711/23): Uma análise detalhada, in Migalhas, s.l., 01.12.2023, pp. 16 e ss., disponível em https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/396275/lei-das-garantias-lei-14-711-23--uma-analise-detalhada [12.11.2023]. O autor defende de forma muito adequada que o melhor entendimento é o de que o direito gerado ao devedor fiduciante é o direito real à aquisição, que é atual, em vez da "propriedade superveniente" (termo utilizado pela própria lei), que seria um direito futuro, sob condição suspensiva.


[5] C. E. E. Oliveira, Lei cit. p. 12.


[6] Neste ponto, vale destacar que, para a alienação fiduciária em garantia, previu-se a possibilidade de recarregamento ainda quando houve garantias a instituição financeira diversa sobre o mesmo bem, desde que tal instituição seja integrante do mesmo sistema de crédito cooperativo da instituição financeira credora da operação original ou garantidora fidejussória da operação de crédito original - art. 9-A, §3º, Lei nº 13.476/1997.


Fonte: https://www.migalhas.com.br/coluna/registralhas/397361/alienacao-fiduciaria-em-garantia-e-patrimonio-de-afetacao