Lendo o último e excelente livro de Michael Moore, "Adoro Problemas"1,
dentre tantos casos narrados para nosso aprendizado e deleite,
deparei-me com uma história que me intrigou (Veja bem: por mais que
pensemos na questão da sociedade capitalista e saibamos das múltiplas
enganações perpetradas pelos fornecedores, há sempre algo a aprender).
Eis o fato trazido, com muito humor, pelo autor: Disse ele que, quando
nasceu, na década de 1950, estando na maternidade, descobriu que ao
invés dos seios de sua mãe, impingiram-lhe e também a seus colegas bebês
mamilos falsos de borracha:.
"Na década de 1950, os hospitais se consideravam como a vanguarda da sociedade moderna do pós-guerra. E convenciam as mulheres hospitalizadas de que ser 'moderna' significava não dar de mamar ao seu bebê, que amamentar era antiquado e inútil. As mulheres modernas usavam mamadeira!"2."Convenceram nossas mães de que se um alimento vinha numa garrafa – ou numa lata, caixa ou saco de celofane -, então ele era de alguma forma melhor para você do que quando vinha grátis via mãe natureza"3.
Depois, espantado, o cineasta americano pergunta:
"Era, de fato, assim tão fácil enganar nossos pais? Se eles podiam ser enganados de modo tão fácil a esse respeito, o que mais eles podiam ser convencidos a testar? Creme de milho em lata? Grama artificial?"4.
E,
de fato, como é possível que isso tenha ocorrido? Ao que consta, é
sabido por todos, com muita tranquilidade, da importância do aleitamento
materno, mas pude constatar que, realmente, naquele período dos anos
cinquenta, era "moda" usar mamadeira, desprezando-se o leite que a mãe
podia oferecer. Pensei, então, que a análise do caso narrado por Michael
Moore poderia permitir a elucidação do modus operandi
de alguns setores do mercado capitalista no processo de enganação,
controle e alienação dos consumidores, a partir da análise das técnicas
implementadas pela indústria de leite como substituto do leite natural.
Meu caro leitor veja o que encontrei.
Maria Lúcia Magalhães Bosi e Márcia Tavares Machado, no artigo intitulado "Amamentação: um resgate histórico"5, apresentam um panorama que permite uma análise.
Inicialmente, transcrevo o que se sabe, realçado pelas pesquisadoras:
"O leite materno é o alimento adequado para as crianças nos primeiros meses de vida, tanto do ponto de vista nutritivo e imunológico quanto no plano psicológico, além de favorecer o vínculo mãe-filho quando o ato de amamentar é bem vivenciado pelas mães"6.
No
início do Século XX, já estavam em pleno desenvolvimento as pesquisas e
a produção de alimentos que pudessem substituir o leite materno durante
o período de desmame. Várias alternativas de leite de vaca, com adição
de açúcar, água, cremes, etc., que permitiam uma melhor digestão, foram
oferecidas.
"Os
médicos passam a aderir às novas alternativas, prescrevendo-as como
benéficas para a alimentação infantil. Essas práticas associam-se a um
forte marketing focalizado nos pediatras, que passariam a desempenhar um
papel decisivo como influenciadores de um novo movimento na sociedade: a
'cultura da mamadeira'"7.
As
autoras relatam que as indústrias de alimentos realizavam campanhas
publicitárias em jornais médicos e paramédicos, visando – e conseguindo –
influenciar os médicos que prescreviam as fórmulas para as mães.
Assim, aos poucos e incessantemente, os produtos foram se tornando confiáveis:
"No final dos anos 40, iniciando os anos 50, os produtos são apresentados como uma opção para facilitar a tarefa dos médicos que passam a prescrevê-los indiscriminadamente às mães, como a forma mais prática e viável para seus filhos"8.
Nos anos seguintes, o leite em pó passou a ser recomendado e utilizado tão logo o bebê nascia.
Como
apontam as autoras, as estratégias para criar essa cultura da mamadeira
envolviam o fornecimento de produtos lácteos aos profissionais de saúde
(médicos e nutricionistas), o patrocínio de reuniões científicas,
cursos de atualização e congressos, a contribuição para manutenção de
revistas científicas, nas quais eram publicados anúncios constantemente,
etc.
É
de se prestar bastante atenção no esquema, que não só vingou como é
utilizado abertamente pelas grandes corporações até os dias atuais.
Alguns produtos para serem aceitos pelos consumidores passam por um
largo processo de "convencimento". Talvez num primeiro momento os
consumidores não se interessem, como se deu no caso narrado. "Leite em pó, com água e outros componentes numa mamadeira?", devem ter dito as mães num primeiro momento. "Não quero, prefiro que meu filho tome o que eu tenho para dar e que já está pronto". Talvez. Daí é que, então, a indústria desenvolveu seu plano estratégico.
Era
preciso dar autenticidade ao produto; havia que se mostrar suas
qualidades. Quem melhor que os cientistas para fazê-lo? Ou, na hipótese,
os médicos e nutricionistas. Como os pais poderiam deles duvidar? Para
convencer esses cientistas, que tal patrocinar reuniões, cursos,
congressos? Subsidiam-se esses eventos, pagando-se muito bem para que os
palestrastes convençam o público presente da qualidade dos produtos.
Esse público que, claro, já está grato por estar participando do evento
de forma gratuita e que envolve passeios, jantares, etc.
Para
edulcorar o novo conhecimento que está surgindo, que tal manter
revistas científicas, pagando caros anúncios em suas páginas? E, ao mesmo tempo, fazer publicidade em muitos outros veículos?
Com
esse assédio vindo de todos os lados, reforçados por frases que têm um
forte apelo de verdade porque saem da boca de técnicos, cientistas,
médicos e nutricionistas, ladeadas por belos anúncios publicitários que
apresentam as vantagens do aleitamento artificial e com o apoio da
sempre necessidade do consumidor de não estar "por fora", de andar "na
moda", de estar "na onda", acaba dando certo. E esse caso é, de fato,
exemplar porque mostra o poder de convencimento dos fornecedores. Se
eles conseguiram convencer pais e mães que leite em pó, cheio de
produtos artificias, servidos numa garrafa plástica ou de vidro era
melhor que o peito da mãe, que tinha pronta-entrega do leite ideal
produzido por ela mesma, podem mesmo convencer as pessoas a consumirem
quase tudo. É um poder incrível.
Claro
que não foi tarefa fácil convencer pais e mães de que era possível
abandonar a mãe-natureza no que ela tinha de próprio para os bebês e
preferir o alimento artificial. Mas, funcionou, especialmente porque a
tática conseguiu atrelar um produto industrial à ciência, criando uma
imagem positiva e dando credibilidade às prescrições e ofertas.
Eis
aí, pois, mais um exemplo que tem de tudo quanto os fornecedores
aprenderam e usam no esquema de oferta e venda de seus produtos e
serviços. Vê-se que não se trata apenas de publicidade, mas de um largo
projeto de marketing que envolve a ciência e seus profissionais, as
escolas, os meios de comunicação em geral, os depoimentos de autoridades
e pessoas com prestígio social – os confessionais – etc., num longo e
árduo trabalho de convencimento que, quando funciona atordoa o
consumidor final, de modo que ele acaba não percebendo que foi enganado.
Para
concluir, anoto que, no Brasil, a partir dos anos oitenta do século XX,
ressurgiu a lógica e o caráter verdadeiramente científico do discurso
que mostra as vantagens do aleitamento materno.
__________
1São Paulo: Lua de Papel, 2011.
2Ibidem, p. 40.
3Idem, p. 41.
4Idem, mesma pág.
5Cadernos ESP – Escola de Direito Público do Ceará, V. 1, nº 1, Julho-Dezembro – 2005.
6Ibidem, fl. 1.
7Ibidem, fl. 5.
8Ibidem, fl. 6.
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* Rizzatto Nunes
Desembargador aposentado do TJ/SP, escritor e professor de Direito do Consumidor. Fonte: http://www.migalhas.com.br/ABCdoCDC/92,MI168073,21048-A+cultura+da+mamadeira+e+o+controle+exercido+sobre+os+consumidores