segunda-feira, 23 de maio de 2022

Os riscos da supressão do instituto da separação

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O Supremo Tribunal Federal (STF) julgará, no próximo dia 15 de junho, o Recurso Extraordinário 1.167.478/RJ, que tem o ministro Luiz Fux como relator. O tema 1.053 de repercussão geral versa sobre a subsistência da separação como instituto autônomo e também se indaga se permanece como requisito para o divórcio após a promulgação da EC nº 66/2010.

Como presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (Adfas), que atua como amicus curiae nesse processo, e como advogada familiarista, tenho grande preocupação com esse julgamento. A depender do entendimento do STF, ocorrerão graves violações aos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal.

Com a EC 66/2010 a Constituição mudou para introduzir o divórcio direto, em seu artigo 226, § 6º, eliminando o prazo que antes existia de um ano de separação judicial ou extrajudicial para que as pessoas casadas pudessem se divorciar.

O divórcio foi facilitado, o que já era um anseio social. A separação também foi facilitada, já que não tem mais o prazo de um ano de distanciamento conjugal para sua decretação por pedido unilateral. Até aí, nenhum problema, muito ao contrário.

Porém, uma corrente de pensamento passou a interpretar que teria sido eliminado o próprio instituto da separação e não só a sua existência como requisito do divórcio. Se esta interpretação for aceita pelo STF, ocorrerão muitas violações à Constituição Federal, aos direitos fundamentais ali previstos, que, a seguir, são destacados:

Direito fundamental à liberdade no exercício de direitos em razão da crença — O primeiro direito fundamental violado pela interpretação segundo a qual estaria eliminada a separação em nosso ordenamento jurídico é aquele previsto no artigo 5º, inciso VIII, da CF, pelo qual é assegurado o exercício de direitos em razão da crença.

Exatamente por ser um Estado laico, em nosso país é inviolável a liberdade no exercício de direitos em razão da crença.

Em várias correntes evangélicas e no catolicismo, o vínculo conjugal é indissolúvel, de modo que somente a separação é permitida a quem professa essas religiões. Se desaparecer o instituto da separação, restaria apenas o divórcio como forma de dissolução conjugal. Impedidos de se divorciarem por sua crença, esses religiosos teriam duas opções: viver sob o estado civil de casados e na situação irregular de separados de fato perante o Estado ou divorciar-se em desrespeito aos preceitos religiosos.

Observe-se que a separação fática não modifica o estado civil, não extingue por si só o regime de bens e os deveres conjugais, enquanto a separação judicial ou extrajudicial opera tudo isto, já que dissolve a sociedade conjugal (CC, artigo 1.576). A separação meramente fática cria um limbo, que efetivamente não se equipara à separação judicial ou extrajudicial.

Portanto, a interpretação que pretende eliminar o instituto da separação viola o direito fundamental à liberdade de regularização do estado civil, por ser a forma de dissolução conjugal admitida por quem não pode se divorciar em razão de sua crença.

Direito fundamental à liberdade - O segundo direito violado pela interpretação segundo a qual deveria ser declarada a inconstitucionalidade das normas sobre a separação judicial é o direito à liberdade (CF, artigo 5º, caput).

Há casais, independentemente do credo, que, diante de crise conjugal, não pretendem a dissolução do vínculo conjugal e necessitam da separação para a regularização de seu estado civil. Desse modo, com a separação, podem restabelecer a sociedade conjugal a qualquer tempo, na conformidade do artigo 1.577 do Código Civil.

Note-se que o Conselho Nacional de Justiça indeferiu o pedido de providências nº 0005060-32.2010.2.00.0000, realizado pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família, para modificação da Resolução CNJ 35 e considerou que somente houve a supressão do prazo de separação pela EC 66/2010.

O Código de Processo Civil de 2015, após amplo debate, adotou a separação como instituto autônomo, o que é mais um reforço relevante à sua recepção pela EC 66/2010.

Direitos fundamentais à integridade física e psíquica e à honra - Outros direitos seriam violados pela supressão do instituto da separação: a integridade física e psíquica e a honra, que se encontram na cláusula geral de tutela da personalidade — a dignidade da pessoa humana (CF, artigo 1º III).

Isso porque é nas disposições legais do Código Civil sobre a separação judicial que estão estabelecidas as consequências sancionatórias do descumprimento dos deveres conjugais (artigos 1.578 e 1.704), sendo que não foram inseridas no divórcio porque aquele diploma entrou em vigor quando o divórcio era constitucionalmente conversivo. Antes do divórcio as pessoas deveriam estar separadas e com esses assuntos resolvidos.

Assim, embora a corrente que pretende a supressão da separação alegue que o faz para defender a laicidade do Estado brasileiro, o intuito é a eliminação das consequências sancionatórias do descumprimento dos deveres conjugais, transformando-os em meras recomendações, já que dever sem sanção não é jurídico.

Alega-se que descabe falar em culpa nas relações de família, quando, em verdade, culpa é o descumprimento consciente de uma norma de conduta. Se deixarem de existir normas de conduta, deixaria de existir o próprio casamento, como pontua ANTONIO JORGE PEREIRA JR [1]. Se até a compra de um pãozinho gera deveres e direitos entre o consumidor e a padaria, obviamente que o casamento deve continuar a gerar direitos e deveres entre as pessoas que se casam.

Aliás, não se fala no posicionamento que adoto em culpa como condição essencial da dissolução conjugal. A dissolução conjugal cumulada com o pedido de declaração do descumprimento de norma de conduta é uma das opções para o cônjuge vitimado, que, pode escolhê-la ou preferir a espécie não culposa, em preservação, inclusive, de seu direito à liberdade.

No Código Civil os deveres conjugais são regulados no artigo 1.566, que estabelece a fidelidade e o respeito. O objeto do dever de respeito reside nos direitos da personalidade do cônjuge, como a vida, a integridade física e psíquica e a honra.

As consequências do descumprimento dessas normas de conduta são as seguintes: perda do direito à pensão alimentícia plena, com conservação somente dos alimentos mínimos (CC, artigo 1.704, caput e parágrafo único); e perda do direito ao uso do sobrenome conjugal, salvo as exceções expressas (CC, artigo 1.578, I, II e III).

É inaceitável que, diante da tutela aos direitos fundamentais e à dignidade humana, que o cônjuge vitimado pela agressão física ou moral, inclusive pela infidelidade, possa ser obrigado a prestar ao agressor pensão alimentícia plena, ou seja, que englobe o "necessarium vitae" e o "necessarium personae".

Se for eliminado o instituto da separação, mulheres que sofrem violência doméstica e sustentam a casa terão de pagar pensão alimentícia ao agressor, o que importa em violação ao artigo 226, § 8º, pelo qual "O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações". Evidente seria o incentivo à violência se o homem agredisse a mulher e ainda fizesse jus a receber dela pensão alimentícia plena [2].

Também inaceitável seria obrigar a pessoa do cônjuge traído a pagar ao outro alimentos plenos, que têm como parâmetro as possibilidades de quem presta a pensão e todas as necessidades de quem a recebe, da alimentação ao lazer, passando por habitação, vestuário e até mesmo educação, entre outras despesas do cônjuge infiel, como, por exemplo, tratamentos de natureza estética.

Isso equivaleria a endossar a violação à integridade física e moral de uma pessoa, por ser casada, em desacato ao princípio da dignidade da pessoa humana.

No mesmo sentido, não há como aceitar que o cônjuge que sofre essas violações seja forçado a calar-se em relação ao nome de sua família. Violação ao direito ao nome, e, portanto, à dignidade, esta é a consequência da interpretação que pretende a eliminação do instituto da separação.

Reitere-se que a eliminação das sanções civis ao descumprimento de dever conjugal equivaleria a transformar esses deveres em meras recomendações, como acentua a ministra Nancy Andrighi [3].

Também estimularia a poligamia, vale dizer, infirmaria o pilar do casamento que é a monogamia e levaria a grave contradição com as duas teses de Repercussão Geral recentemente firmadas sobre os temas 526 e 529, que reconheceram a plena vigência do dever de fidelidade e, portanto, das consequências de seu inadimplemento, respectivamente:

"É incompatível com a Constituição Federal o reconhecimento de direitos previdenciários (pensão por morte) à pessoa que manteve, durante longo período e com aparência familiar, união com outra casada, porquanto o concubinato não se equipara, para fins de proteção estatal, às uniões afetivas resultantes do casamento e da união estável" (STF, RE 883.168/SC, rel. min. DIAS TOFFOLI, j. 03/08/2021).
"A preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes, ressalvada a exceção do artigo 1723, §1° do Código Civil, impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro." (STF, RE 1.045.273/SE, rel. min. ALEXANDRE DE MORAES, j. 21/12/2020).

E não tem apoio o argumento de que o cônjuge violador poderia ficar sujeito a passar fome, diante dos alimentos indispensáveis que são assegurados ao culpado (CC, artigo 1.704, parágrafo único), que servem às necessidades básicas de quem não tem aptidão para o trabalho e parentes em condições de auxiliá-lo.

Mesmo que fosse possível considerar violação à privacidade o relato em processo judicial sigiloso de comportamentos do cônjuge praticados em violação aos deveres que assumiu no casamento, pelo princípio da ponderação, os direitos à honra e à integridade física e psíquica deverão prevalecer.

Considerações finais
Na doutrina, vários juristas de escol defendem a manutenção do instituto da separação.

Conforme Rosa Maria De Andrade Nery: "A separação consensual e judicial, entretanto, para os casais que pretendem o término da sociedade conjugal, mas, por razões pessoais não queiram, ou o término do vínculo matrimonial, ainda é possível como admitido pelo CPC 23 III e 731 ss" [4].

Também Carlos Alberto Dabus Maluf e Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus Maluf defendem a manutenção da separação judicial com ou sem culpa após a EC 66/2010 [5].

Como afirma Venceslau Tavares, "O direito ao divórcio não depende de comprovação da separação (judicial ou de fato). Remanesce, contudo, a separação judicial como uma faculdade conferida ao casal" [6].

Cite-se, ainda, Lauane Andrekowisk Volpe Camargo, para quem "a separação não acabou, existe, e é uma opção não excluída pela Emenda Constitucional n° 66/2010" [7] .

A jurisprudência também é vasta no entendimento de que o instituto da separação permanece no ordenamento brasileiro após a EC 66/2010, tanto de tribunais estaduais como do Superior Tribunal de Justiça [8].

Por último, temos de ter presente que a manutenção do instituto da separação e de suas normas, inclusive as que estipulam sanção a quem descumpre dever conjugal, serve também para que sejam aplicadas ao divórcio.

Como destaca o ministro Luis Roberto Barroso, a entrada em vigor de nova norma constitucional exige um diálogo entre o novo dispositivo e a legislação que se encontra vigente no ordenamento [9]:

"A interpretação constitucional conduz-se sob a inspiração de determinados princípios cardeais, que a singularizam, dando-lhe um toque de especificidade. Dentre os princípios, destacam-se, para os fins do tópico aqui versado, o da supremacia da Constituição e o da continuidade da ordem jurídica. [...] Merece relevo, por igual, o princípio da continuidade da ordem jurídica. Ao entrar em vigor, a nova Constituição depara-se com todo um sistema legal preexistente. Dificilmente a ordem constitucional recém-estabelecida importará em um rompimento integral e absoluto com o passado."

Em suma, a eficácia direta da Constituição Federal em todo o ordenamento jurídico leva à convicção de que as regras sobre a separação, judicial e extrajudicial, tanto em relação ao instituto em si, como às sanções atinentes ao descumprimento de dever conjugal, foram recepcionadas pela Emenda 66/2010, que se limitou a retirar os requisitos temporais do divórcio.


[1] Antonio Jorge Pereira Jr: Da afetividade à efetividade nas relações de família. In Afeto e Estruturas Familiares. Maria Berenice Dias, Eliene Ferreira Bastos e Naime Márcio Martins Moraes (Coords.). IBDFAM/Del Rey Editora, p. 57/77.

[2] Washington de Barros Monteiro e Regina Beatriz Tavares da Silva: Curso de direito civil: direito de família. 43ª ed., São Paulo: Saraiva, 2016, p. 342 a 358.

[3] Fátima Nancy Andrighi. Doutrina prefacial in Regina Beatriz Tavares da Silva. Divórcio e Separação após a EC 66/2010. 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012

[4] Rosa Maria de Andrade Nery. Instituições de direito civil - Família. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022, p. 360, v. IV.

[5] Carlos Alberto Dabus Maluf e Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus Maluf. O novo divórcio no Brasil, in O novo divórcio no Brasil, Carolina Valença Ferraz, George Salomão Leite e Glauber Salomão Leite (coords.). Salvador: Jus Podivm, p. 126-148. Carlos Alberto Dabus Maluf e Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus Maluf. Curso de Direito de Família, 3 ed., São Paulo: Saraiva, 2018, p.339.

[6] Venceslau Tavares Costa Filho; Torquato Castro Jr. Ao regular separação judicial, novo CPC tira dúvidas sobre instituto. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-nov-30/regular-separacao-judicial-cpc-tira-duvidas-instituto. Acesso em: 9/6/2019.

[7] Lauane Andrekowisk Volpe Camargo, A Separação de o Divórcio após a Emenda Constitucional nº 66/2010. ob. cit., p. 326.

[8] A título de exemplo: STJ: REsp 1247098/MS, rel. min. MARIA ISABEL GALLOTTI, 4ª Turma, j. 14/3/2017, DJe 16/5/2017: "[...] A Emenda Constitucional n° 66/2010 não revogou os artigos do Código Civil que tratam da separação judicial. [...]". REsp 1.431.370/SP, rel. min. RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, 3ª Turma, julgado em 15/8/2017, DJe 22/8/2017: "A Emenda à Constituição nº 66/2010 apenas excluiu os requisitos temporais para facilitar o divórcio. 3. O constituinte derivado reformador não revogou, expressa ou tacitamente, a legislação ordinária que cuida da separação judicial, que remanesce incólume no ordenamento pátrio, conforme previsto pelo Código de Processo Civil de 2015 (arts. 693, 731, 732 e 733 da Lei nº 13.105/2015) [...]".

[9] Luís Roberto Barroso, A Constituição e o conflito de normas no tempo. Direito constitucional intertemporal. Revista da Faculdade de Direito, v. 1, n. 3, Rio de Janeiro, Uerj, 1995, p. 204.


 é advogada, mestre e doutora pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, pós-doutora em Direito da Bioética pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, sócia-fundadora do escritório RBTSSA e presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (Adfas).

Revista Consultor Jurídico, 21 de maio de 2022, 7h03

Acesso dos povos indígenas à Justiça: a necessária Resolução 454 do CNJ

 Por  e 

Nas décadas finais do século 20, a necessidade da elevação do acesso à Justiça à condição de direito autônomo foi tema colocado na ordem do dia nos debates travados na comunidade jurídica e na sociedade civil. A chamada inafastabilidade da jurisdição, presente no artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal (CF) de 1988 foi produto de tais discussões, reforçado ainda pelo ambiente de ampla participação social ocorrido durante a Assembleia Constituinte (1987-1988) e pela preocupação, já existente no período, de se garantir efetividade aos novos direitos que estavam sendo constitucionalmente definidos.

O problema é que o acesso à Justiça foi prevalentemente visto, tanto na literatura acadêmica quanto na prática jurídica, sob a perspectiva da igualdade formal perante a lei, ignorando-se a heterogeneidade e as desigualdades da sociedade brasileira, de modo a fomentar ainda mais as injustiças sociais que marcam secularmente as relações jurídicas públicas e privadas país.

As desvantagens processuais suportadas pelos povos indígenas são, nesse sentido, exemplos de desigualdade que marcam o sistema jurídico. Sem embargo de ostentarem a posição de titulares de direitos que legitimam suas formas de existência, tais populações frequentemente desconhecem os meandros procedimentais vindos de um sistema jurídico que lhes foi imposto por práticas históricas colonialistas do homem branco e, por vezes, até mesmo não fazem da língua portuguesa falada e escrita nos ambientes forenses e nos autos processuais.

Sob tal situação, como assegurar a tais populações o socorro ao Judiciário, em igualdade real de oportunidades dos demais litigantes, quando seus direitos são violados?

A Resolução nº 454, de 22 de abril de 2022, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) foi criada para proporcionar efetividade ao direito de acesso à justiça dos povos indígenas. Editada com base na atribuição do CNJ de controle de políticas judiciárias nacionais (artigo 103-B, §4º da CF), a Resolução preocupa-se com as especificidades das chamadas populações originárias, assim fazendo pela consideração da pluralidade cultural e das desvantagens que enfrentam em um sistema de justiça que, por sua gênese eurocêntrica, nem sempre está adaptado ou pronto para compreender formas de existência não eurocêntricas.

A edição da Resolução 454/2022 ocorre no âmbito do contexto de maior atenção do CNJ aos povos indígenas, iniciada cerca de três anos antes com a elaboração da Resolução nº 287, de 25 de junho de 2019. Esta, contudo, tem aplicação apenas para as pessoas indígenas rés, acusadas ou privadas de liberdade. A Resolução de 454/2022, por seu turno, possui caráter mais geral pela preocupação de assegurar o acesso à justiça indistintamente a esse estrato populacional, incluindo tanto as pessoas indígenas consideradas individualmente, quanto os povos indígenas analisados sob o aspecto da coletividade.

Para isso, o documento normativo em questão traz os princípios que devem reger os processos envolvendo indígenas: autoidentificação, diálogo interétnico e intercultural, territorialidade, reconhecimento de organização social própria e dos meios de resolução de litígios, vedação de aplicação do regime tutelar e autodeterminação.

A autoidentificação, que é o direito de se reconhecer como indígena, a territorialidade, como o direito ao território ancestral, e a organização social própria reafirmam direitos já previstos na Constituição e na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A vedação de aplicação de regime tutelar e a autodeterminação ratificam a interpretação dos direitos contidos no artigo 231 da CF e se somam ao que já se encontrava em toda sistemática da Convenção 169 da OIT e ainda no artigo 3º Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.

Da mesma forma ocorre no tocante ao reconhecimento dos meios de resolução dos conflitos. Baseada no consagrado nos documentos internacionais e constitucional acima referidos, a norma do CNJ explicita, aos agentes do Judiciário, a superação do disposto no artigo 57 do Estatuto do Índio (Lei nº 6.001/1973), que prevê que "Será tolerada a aplicação, pelos grupos tribais, de acordo com as instituições próprias, de sanções penais ou disciplinares contra os seus membros, desde que não revistam caráter cruel ou infamante, proibida em qualquer caso a pena de morte". Diferentemente desse dispositivo, a Resolução 454/2022 reconhece os meios de resolução dos litígios dos povos indígenas e não apenas "tolera" sua aplicação.

Mas a grande inovação da resolução em análise é, sem dúvida, a previsão da interculturalidade e do diálogo interétnico, que não encontram correspondência expressa na Constituição. Embora a interculturalidade não seja novidade absoluta na legislação brasileira, pois a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, conhecida como Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, já trazia esse princípio para tratar da educação escolar indígena, ela (interculturalidade) não possuía aplicação direta nos processos judiciais, pelo menos não em sede de norma jurídica. Agora, por meio da Resolução do CNJ, os processos envolvendo povos indígenas passam a ser vistos sob o aspecto interétnico e intercultural.

O que exatamente significa isso?

A interculturalidade é uma forma de enxergar a diversidade cultural, em que os diferentes povos e culturas são colocados em condição de igualdade, sem que um se sobreponha ao outro. A diversidade da população brasileira é enorme, possuindo indígenas, quilombolas, comunidades ribeirinhas, negros, brancos, entre outros. Quanto aos povos indígenas, particularmente, são mais de 800 mil pessoas, 305 etnias e 274 línguas faladas, conforme dados extraídos do Censo Demográfico de 2010.

Em meio a tanta diversidade, contudo, o processo brasileiro é, na prática, prevalentemente monocultural, o que certamente é um reflexo da velha ideia isonômica formal do direito do acesso à justiça. Justamente por isso, a inserção da interculturalidade representa um ganho em termos de direitos, trazendo consigo importantes alterações nas dinâmicas processuais.

Dentre as mudanças, encontra-se a possibilidade de adaptação das normas processuais nos litígios envolvendo pessoas e grupos indígenas, consoante as especificidades culturais do povo envolvido, sem necessidade de aguardar alteração legislativa e de forma específica para cada caso. Para tanto, diante de uma norma que represente um obstáculo para que o indígena tenha efetivo acesso ao Poder Judiciário, o (a) magistrado(a) poderá utilizar os meios previstos na Resolução 454/2022 para tornar o processo mais equânime ou, ainda, poderá se valer de outros meios conforme a necessidade verificada em cada demanda.

A Resolução 454/2022 já traz algumas adaptações a serem adotadas nos processos envolvendo pessoas e povos indígenas como, por exemplo, a admissão do depoimento e de testemunho na língua nativa (artigo 16) e o direito de utilizar intérprete da própria comunidade (parágrafo segundo do artigo 16). Além disso, essa norma torna mais claras determinações que se encontram na Constituição, como o direito de ingressar em juízo para defender seus direitos sem precisar de nenhuma instituição estatal intermediária e nem da constituição prévia de uma pessoa jurídica (artigo 232 da CF e artigo 10 da Resolução 454/2022).

A vantagem da inserção da interculturalidade dentro dos processos judiciais se dá por ela ser o que Catherine Walsh chama de um processo e atividade contínua (Interculturalid, Estado, Sociedad: Luchas (de)coloniales de nuestra época, 2009), ou seja, a cada nova interação cultural surgem novos diálogos entre compreensões ontológicas diferentes e outras possibilidades de adaptação do procedimento. Consequentemente, as alternativas trazidas pela Resolução 454/2022 não esgotam todas as possibilidades do diálogo interétnico e intercultural. Na verdade, podem ser visualizadas até mesmo outras hipóteses, tal como, por exemplo, a tradução de sentenças para a língua nativa do povo envolvido.

Faltou, contudo, o tratamento sobre os indígenas de contexto urbano, que possuem especificidades outras em relação àqueles que vivem em situação de aldeamento e longe dos centros urbanos. Poderia a Resolução 454/2002, ao menos, ter mencionado em um artigo que as suas disposições seriam aplicáveis a todos os povos e pessoas indígenas, independente de situação de aldeamento ou de se encontrar o indivíduo em área urbana. É de se lembrar, a título de exemplo, que a diferença de contemplação de direitos entre indígenas urbanos e residentes em terras não homologadas e aqueles que vivem em áreas reconhecidas pelo Estado chegou a ser discutida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2021, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 709, em que, entre outros temas, trouxe a discussão sobre a extensão da vacinação prioritária também aos indígenas que se encontravam em terras não homologadas e em contexto urbano, preferência que havia sido estabelecida apenas para aqueles de áreas já demarcadas.

Tal circunstância, porém, não justifica a ausência de tratamento processual peculiar a todos os povos indígenas, sem discriminações, em conformidade com suas próprias formas de existência. Afinal, como visto, a condição de sujeitos especiais de direitos decorre de normas constitucionais e internacionais. A Resolução 454/2002 apenas explicitou o que já se encontra vigente, indicando importantes caminhos aos agentes do Judiciário, para que supram desvantagens históricas no exercício do direito de acesso à Justiça.

 é juiz de Direito, doutor e pesquisador em estágio pós-doutoral na Universidade de São Paulo (USP), professor do mestrado profissional Direito e Judiciário na Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam) e autor do livro "Povos Indígenas e Direitos Humanos: Direito à Multiplicidade Ontológica na Resistência Tupinambá" (Editora Giostri).

Raffaela Cássia de Sousa é juíza federal substituta e mestranda em Direito e Poder Judiciário pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam).

Revista Consultor Jurídico, 21 de maio de 2022, 11h18

https://www.conjur.com.br/2022-mai-21/bezerra-sousa-acesso-indigenas-justica

Juíza autoriza mãe e filha haitianas a entrar no Brasil mesmo sem visto

 A juíza Silvia Figueiredo Marques, da 26ª Vara Cível Federal de São Paulo, autorizou a entrada no Brasil, mesmo sem visto, de uma mulher haitiana e sua filha menor de idade. O marido da autora já está no país e possui visto permanente. A informação é do jornal O Estado de S. Paulo.

Mãe e filha, cidadãs do Haiti, puderam entrar no Brasil sem visto
Reprodução 

Na decisão, a magistrada destacou a situação de calamidade pública do Haiti para justificar a autorização para ingresso de mãe e filha no Brasil sem a necessidade de visto. As autoras também alegaram, na ação, que pretendem apresentar um pedido de refúgio à Justiça brasileira.

"A turbulência política (no Haiti) é notória e levou à suspensão da emissão de vistos e ao fechamento de diversas embaixadas estrangeiras, traduzindo a excepcionalidade vivida naquele país", afirmou a juíza, que também levou em consideração o fato de a filha ser menor.

Assim, explicou a magistrada, o Estado deve garantir ao menor de idade, entre outras coisas, o direito à vida e à proteção, "o que somente ocorrerá com a autorização de seu ingresso no país para realizar a reunião familiar com seus pais".


Revista Consultor Jurídico, 22 de maio de 2022, 16h51

https://www.conjur.com.br/2022-mai-22/juiza-autoriza-mae-filha-haitianas-entrar-brasil-visto

Pensão por morte não é extinta com casamento de dependentes, decide TST

 A 6ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho excluiu a possibilidade de cessação do pagamento de pensão devida à viúva, aos filhos e às filhas de um trabalhador vítima de acidente de trabalho caso venham a se casar ou estabelecer união estável. De acordo com o colegiado, a única limitação ao recebimento da parcela é a expectativa de vida da vítima.

ReproduçãoA pensão por morte do montador não foi extinta com o casamento de dependentes

No caso julgado, o trabalhador era montador da Tagplan Comércio e Serviços de Engenharia e Representações, sediada em Guaratinguetá (SP), e prestava serviços para a Espírito Santo Centrais Elétricas (Escelsa), em Vitória. O contrato de trabalho foi extinto com a morte do empregado, em novembro de 2015, quando ele, então com 35 anos, sofreu o acidente.

Durante a montagem e a instalação de estruturas metálicas para linhas de transmissão de energia elétrica em Jaguaré (ES), uma árvore caiu sobre ele. A viúva, as duas filhas e os dois filhos do montador ajuizaram, então, a ação trabalhista com pedido de indenizações por danos morais e patrimoniais. 

A reclamação foi julgada pelo juízo da 2ª Vara do Trabalho de Coronel Fabriciano (MG), que condenou as empresas ao pagamento de indenização por danos morais de R$ 100 mil à viúva e de R$ 150 mil a cada dependente, além de pensão mensal.

A decisão, no entanto, foi alterada pelo Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (MG), que reduziu o valor da reparação para R$ 50 mil para cada familiar e aumentou o valor da pensão para dois terços da última remuneração, mas limitou o pagamento à data em que se casem ou estabeleçam união estável.  

Segundo o TRT, é razoável concluir que, nessa situação, quem antes era considerado dependente não terá mais essa condição, "pois se presume que toda pessoa adulta, não sendo portadora de invalidez comprovada, é capaz de satisfazer as suas próprias necessidades".

No entanto, para o relator do recurso de revista dos familiares, ministro Augusto César, o período de recebimento da pensão somente deve ser limitado à expectativa de vida do empregado falecido, não cabendo condicioná-la à superveniência eventual de casamento ou união estável de seus dependentes.

Em relação à indenização, o colegiado considerou que a proporção adequada entre dano e valor da reparação foi mais bem aplicada pelo juízo de primeiro grau. Desse modo, decidiu restabelecer a sentença. Com informações da assessoria de imprensa do TST.

RRAg 11868-05.2016.5.03.0034

Revista Consultor Jurídico, 22 de maio de 2022, 14h21

O Supremo Tribunal Federal e as resoluções do Conama

 22 de maio de 2022, 12h11

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