sábado, 19 de outubro de 2013

Fontes da obrigação segundo o Código Civil de 2002

O Código Civil de 2002 não explicita o que considera fontes das obrigações, no livro próprio (arts. 233 a 420, optando por disciplinar diretamente as modalidades (obrigações de dar, de fazer, de não fazer, alternativas, divisíveis, solidárias), que não são, propriamente, espécies de fontes, mas modos de ser das variadas obrigações. O Código Civil italiano de 1942, e os que por ele foram influenciados, destinou um capítulo introdutório ao livro Das Obrigações, definindo explicitamente as fontes das obrigações (contrato, fato ilícito e outros eventos indicados pelo ordenamento),  o caráter patrimonial da obrigação e o princípio da boa-fé objetiva (regole della correteza). Igualmente, os Códigos Civis mais recentes tendem a defini-las. Código português (1966): contratos, negócios unilaterais, gestão de negócios, enriquecimento sem causa e responsabilidade civil. Código peruano (1984): contratos, gestão de negócios, enriquecimento sem causa, promessa unilateral e responsabilidade extracontratual. Código Paraguaio (1987): contratos, promessas unilaterais, gestão de negócios alheios, enriquecimento sem causa, pagamento indevido, responsabilidade civil. Código de Québec (1994): contratos e todos os atos ou fatos a que a lei atribua efeitos de obrigação.
                   No Livro I, da Parte Especial (arts. 421 a 965), o Código Civil brasileiro regula determinadas obrigações, a saber, o contrato, a responsabilidade civil por danos imputáveis (doravante, por conveniência didática, apenas denominada responsabilidade civil), os atos unilaterais e os títulos de créditos. Não são fontes, mas espécies ou tipos abertos de obrigações. Outras espécies podem ser consideradas, desde que se enquadrem nas modalidades gerais. Por outro lado, o Livro III da Parte Geral do Código Civil (arts. 104 a 232), destinado aos fatos jurídicos, fornece os requisitos mais gerais de identificação das obrigações civis.
                   As espécies de contratos, previstas no Código Civil, não esgotam a ampla possibilidade criativa de outras, pelas partes contratantes, em virtude do princípio do auto-regramento da vontade e da regra de tutela da atipicidade (art. 425), estejam ou não disciplinadas em leis especiais. Ou seja, podem as partes criar novas espécies de contratos, não previstos em lei, desde que observem as normas gerais, inclusive os princípios da função social, da boa-fé e da equivalência material.  A atipicidade não se confunde com arbitrariedade, pois cada espécie contratual nova haverá de contar com um mínimo de “tipicidade social”, segundo expressão de Emílio Betti[14], assim entendida a que se desenvolve e é acolhida no tráfico jurídico, remetendo para as valorações econômicas ou éticas da consciência social, para além dos interesses meramente individuais, contingentes, variáveis, contraditórios, socialmente imponderáveis.
                   A responsabilidade civil (também predicada como extranegocial ou aquiliana) é obrigação derivada da violação do dever de não causar dano a outrem. O direito brasileiro consagrou, definitivamente, a reparação não apenas do dano material, mas igualmente do dano moral, máxime com o advento da Constituição Federal (art. 5º, X), do Código de Defesa do Consumidor (art. 6º, VI) e do art. 186 do Código Civil. Todavia, não é o dano a fonte da obrigação, mas o fato jurídico que se constituiu com a violação do dever de não causar dano, do qual derivou a relação jurídica obrigacional, entre o credor (a vítima) e o devedor (o imputável pelo dano).
              As espécies de atos unilaterais tratadas pelo Código Civil (arts. 854 a 886), sob essa denominação genérica, são diferentes entre si, tendo em comum apenas o fato de não se enquadrarem nos contratos ou na responsabilidade civil extranegocial. Com efeito, a promessa de recompensa é negócio jurídico unilateral; a gestão de negócio pode ser ato jurídico em sentido estrito (ou ato jurídico lícito, segundo a terminologia utilizada pelo art. 185 do Código Civil), quando realizada segundo a vontade presumida do dono do negócio, ou pode ser ato ilícito (art. 186 do Código Civil), quando realizada contra a vontade presumida do dono do negócio; o pagamento indevido é ato ilícito, em relação a quem o recebeu; e o enriquecimento sem causa é fato jurídico em sentido estrito, pois o enriquecimento pode decorrer sem qualquer manifestação de vontade das partes envolvidas, a exemplo da avulsão (art. 1.251 do Código Civil).
                   Os títulos de crédito são, também, atos unilaterais, nesse sentido amplo.  Na atualidade, assumiram natureza eminentemente empresarial, razão porque melhor se qualificariam como obrigações mercantis.
                   O Código Civil de 2002 unificou, no plano legal, as obrigações de direito privado. Contudo, no plano didático, permanece adequada a classificação entre obrigações eminentemente civis e obrigações mercantis, cuja natureza radica em sua inserção predominante na atividade empresarial. Assim, são contratos mercantis aqueles nos quais o direito exige que um dos figurantes seja empresa (sociedade empresária ou empresário individual). Por exemplo, o Código Civil de 1916 incluía o contrato de seguro entre os contratos civis, mas a legislação subseqüente tornou esse contrato objeto exclusivamente de atividade empresarial fiscalizada; o parágrafo único do art. 757 do Código Civil é a culminância dessa trajetória, ao estabelecer que somente pode ser parte, no contrato de seguro, como segurador, entidade para tal fim legalmente autorizada.


LÔBO, Paulo. Fatos jurídicos como fontes das obrigações. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3761, 18 out. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/25366>. Acesso em: 19 out. 2013.

Classificação dos fatos jurídicos (Paulo Lôbo)

Os fatos jurídicos são classificados em três tipos: a) fatos jurídicos em sentido estrito ou involuntários; b) atos-fatos jurídicos ou atos reais; c) atos jurídicos em sentido amplo ou voluntários (atos jurídicos em sentido estrito e negócios jurídicos). Considerando-se o papel da manifestação da vontade, teremos: nos fatos jurídicos em sentido estrito, não existe vontade ou é desconsiderada; no ato-fato jurídico, a vontade está em sua gênese, mas o direito a desconsidera e apenas atribui juridicidade ao fato resultante; no ato jurídico, a vontade é seu elemento nuclear. Essa classificação teve o refinamento doutrinário de Pontes de Miranda[1] e Marcos Bernardes de Mello[2], a partir do elemento nuclear do suporte fático, contribuindo para difundi-la no Brasil, máxime no âmbito da teoria geral do direito.
                   A classificação dos fatos jurídicos é importante para o enquadramento das chamadas fontes das obrigações, como demonstraremos a seguir, na esteira do que propugnam esses autores. Para Marcos Bernardes de Mello[3] apenas nos fatos jurídicos podem radicar as fontes das obrigações.
                   Quando os fatos naturais ou humanos convertem-se em fatos jurídicos, é porque houve uma norma que previu hipoteticamente seus elementos e que incidiu sobre eles, provocando necessariamente efeitos, tais como direitos e deveres, pretensões e obrigações.
                   Tradicionalmente, a doutrina indica como fontes – imediatas ou mediatas - as principais espécies de fatos jurídicos, na ordem de importância das ocorrências práticas da vida, ou acontecimentos vitais merecedores de ordenação, a saber:
                   a) os contratos (obrigações contratuais);
                   b) os atos ilícitos (obrigações extracontratuais);
                   c) atos unilaterais (obrigações unilaterais).
                   A mais sedutora das classificações das fontes, por sua simplicidade, a vontade humana e a lei, é a mais controvertida. Como diz Orlando Gomes, quando se indaga a fonte de uma obrigação procura-se conhecer o fato jurídico ao qual a lei atribui efeito de suscitá-la; é que entre a lei, esquema geral e abstrato, e a obrigação, relação singular entre pessoa, medeia sempre um fato, considerado idôneo pelo ordenamento jurídico para determinar o dever de prestar[4].
                   O contrato é uma espécie de negócio jurídico, mas não a única. Há negócios jurídicos que não são contratos, como os negócios jurídicos unilaterais (por exemplo, a promessa de recompensa, arts. 854 a 860 do Código Civil; a oferta para contratar, enquanto não houver aceitação a outra parte, art. 427; os títulos de crédito; assentimento a ato de outrem) e até mesmo negócios jurídicos bilaterais não contratuais, a exemplo do acordo de transmissão da propriedade, que se integra ao contrato de compra e venda de imóvel, e que se perfaz com o registro público. E há obrigações nascidas de outros tipos de fatos jurídicos não negociais. A lei não é fonte direta das obrigações não convencionais, pois está presente em todas elas, quando incide no suporte fático concreto e faz irradiar entre os efeitos as obrigações, assim que os deveres possam ser exigíveis pelo credor.
Os contratos (espécies de negócios jurídicos, que por sua vez são espécies de atos jurídicos, que por sua vez são espécies de fatos jurídicos), em todas as épocas, exerceram importantes funções de relação entre os homens. Foram concebidos na prática cotidiana, de acordo com as necessidades e complexidades das relações econômicas e sociais. Na atualidade, os contratos dificilmente partem de um núcleo comum. Uma grande dicotomia se formou, no que respeita ao conteúdo, substituindo a classificação tradicional dos contratos de direito privado em contratos civis e contratos comerciais, por contratos comuns e contratos de consumo, com características e finalidades distintas. Quanto à forma, os contratos ou são paritários ou são de adesão a condições gerais; aos primeiros, a vontade individual declarada e o consentimento desempenham papel criador, nos segundos, à predisposição unilateral de um deve corresponder a tutela jurídica da coletividade de aderentes, cuja vontade é irrelevante na criação do ato. Como diz Karl Larenz[5], o significado vital dos contratos é muito diferente, porque há contratos, como a locação de imóveis urbano, que ao menos para uma das partes pode ter importância vital, enquanto outros só fundamentam uma relação fugaz entre os interessados e não afetam interesse algum de importância existencial. Nos primeiros se poria de manifesto a “missão social do direito privado”, a saber, estabelecer condições e ditar normas que façam possível um equilíbrio razoável das forças sociais e dos interesses humanos, tomando em consideração a necessidade de proteção dos economicamente débeis. Em verdade, dizemos nós, dos juridicamente vulneráveis, que eventualmente podem não ser os economicamente débeis ou hipossuficientes, pois tudo depende do poder contratual dominante e da situação de sujeição do contratante vulnerável, como ocorre com os contratos de consumo e de adesão. 
                   No ato ilícito, a relação jurídica obrigacional surge sem convenção do credor ou do devedor, em virtude de ofensa culposa a direito alheio. O ato ilícito (art. 186 do Código Civil) é insuficiente para abranger toda a gama de danos imputáveis, pois o direito distanciou-se do subjetivismo individualista, que marcou o desenvolvimento da responsabilidade civil, para absorver os imperativos de solidariedade social (art. 3º, I, da Constituição) e imputar responsabilidade pelos danos oriundos de situações ou fatos objetivos, seja pelos riscos criados, seja pela atividade desenvolvida, independentemente de sua licitude ou ilicitude. Nem todo dano gera imputação de responsabilidade a alguém, mas a trajetória do direito é na direção de realização da máxima reparação dos danos; em outras palavras, a cada dano deva corresponder uma reparação, ainda que o fato que o causou seja lícito, como se vê no amplo enunciado do art. 931 do Código Civil: “os empresários individuais e as empresas respondem independentemente de culpa pelos danos causados pelos produtos postos em circulação”. Imputável é quem responde pelo dano (devedor), que pode ser quem não o causou, por exemplo, os pais pelos filhos menores, o empregador por seu empregado. Daí dizer-se dano imputável.
                   Além dos contratos e dos danos imputáveis, cogitam-se de obrigações oriundas de atos jurídicos unilaterais (promessas unilaterais, outros negócios jurídicos unilaterais, pagamento indevido, enriquecimento sem causa).
                   Há, ainda, situações jurídicas derivadas do moderno tráfico em massa que dispensam as manifestações de vontade negocial, mas que produzem efeitos obrigacionais semelhantes aos atribuídos ao negócio jurídico. São condutas sociais típicas às quais o direito imputa conseqüências próprias dos negócios jurídicos, distanciando-se dos requisitos de existência, validade e eficácias destes e que estão previstos na Parte Geral do Código Civil. A massificação negocial é fruto da massificação social (e, infelizmente, da massificação da pobreza) que se aguçou a partir da segunda metade do século XX, com a urbanização avassaladora e a oferta impersonalizada de produtos e serviços, a exemplo dos transportes públicos urbanos e dos centros de compras. Nesses exemplos, as pessoas realizam suas necessidades vitais, inclusive os menores e os demais civilmente incapazes, sem lhes poder ser aplicáveis os requisitos de validade do negócio jurídico, previstos no art. 104 do Código Civil (agente capaz, objeto lícito, possível e determinado, e forma prevista ou não defesa em lei). As condutas e não as manifestações de vontade são suficientes, prevalecendo até mesmo quando as segundas foram contrárias aos efeitos negociais objetivamente imputáveis (se entrar no ônibus, ainda que por engano quanto ao destino, terá de pagar a tarifa, não podendo alegar anulação por erro; se o menor absolutamente incapaz, às vezes por conta própria, estiver a ofertar publicamente na rua produtos ou serviços, não se poderá alegar nulidade). Para Marcos Bernardes de Mello, ainda nessas circunstâncias a categoria negócio jurídico continua proveitosa, desde que se a entenda não mais “como um instrumento de satisfação da vontade das pessoas, mas como um instrumento do tráfico jurídico”[6].
                   A doutrina cogitou das relações contratuais de fato[7], em virtude da falta de consciência da declaração de vontade ou mesmo de sua desnecessidade; no caso do transporte coletivo, ter-se-ia uma relação jurídica obrigacional não porque o usuário teria querido ou declarado, mas porque, de acordo com os pontos de vista gerais do tráfico jurídico, sua conduta estaria unida a essa conseqüência. Karl Larenz[8] atenuou os excessos dessa teoria aproximando-a do regime contratual comum; a inexistência do consentimento seria compensada pela imputação de efeitos semelhantes às “condutas socialmente típicas”. Exemplo de repercussão favorável dessa doutrina na jurisprudência brasileira é a Súmula n. 130 do STJ, cujo enunciado estabelece que “a empresa responde, perante o cliente, pela reparação de dano ou furto de veículos ocorridos em seu estabelecimento”. Não se trata aí de relação contratual presumida ou implícita de depósito de coisas, mas de incidência de dever autônomo de prestação de segurança e reparação derivado de conduta social típica, independentemente da vontade da empresa (loja, supermercado, shopping center) ou do detentor do veículo. O STJ avançou no sentido de imputar responsabilidade até mesmo a órgãos públicos, a exemplo dos estacionamentos de universidades públicas[9], ainda que não haja relação de consumo de serviço, pela ausência de remuneração atual ou potencial, requisito exigido pelo § 2º do art. 3º do CDC . Em solução muito próxima, Pontes de Miranda entende que há “dever de custódia que não deriva da relação jurídica de depósito, mas sim da lei ou das circunstâncias” - nas quais podemos incluir a conduta social típica – e que, em todas essas espécies, à relação jurídica existente corresponde o dever de prestação, “dentro do qual se incrusta o de custodiar”[10]

LÔBO, Paulo. Fatos jurídicos como fontes das obrigações. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3761, 18 out. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/25366>. Acesso em: 19 out. 2013.