quarta-feira, 1 de agosto de 2018

Sou obrigado a aceitar minha herança?

Publicado por Suzanna Borges de Macedo Zubko

Tema cada vez mais debatido entre as famílias - a possibilidade de estabelecer ainda em vida, quem fica com o que, seja através de testamento, doações, holdings familiares, entre outros, evitando brigas entres os herdeiros no futuro. Porém, caso o indivíduo não queira receber a parte da herança que lhe cabe, é possível?

Há de se esclarecer que pelo princípio da saisine, desde o falecimento da pessoa (i. E, desde a abertura da sucessão), a herança é desde logo transmitida ao herdeiro, independentemente de sua vontade, cabendo a este posteriormente manifestar sua aceitação ou renúncia, na forma do descrito no art. 1.784 do Código Civil.

Trata-se de decisão de grande importância, vez que “aceita a herança, torna-se definitiva a sua transmissão ao herdeiro, desde a abertura da sucessão." (Art. 1.804, Código Civil). Igualmente, os atos de aceitação ou renúncia de herança são irrevogáveis (Art. 1.812, Código Civil).

Art. 1.784. Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários.
Art. 1.804. Aceita a herança, torna-se definitiva a sua transmissão ao herdeiro, desde a abertura da sucessão.
Art. 1.812. São irrevogáveis os atos de aceitação ou de renúncia da herança.

Desta forma, é possível que o herdeiro renuncie sua parte na herança (seu quinhão hereditário), mas deve fazê-lo de forma total. Ou seja, não pode “escolher” o que quer aceitar, lhe caberá o ônus e o bônus (Art. 1.808, Código Civil), como bem explica o doutrinador Luiz Paulo Vieira de Carvalho:
“Assim, não pode o herdeiro pretender aceitar os créditos hereditários e repudiar os débitos, ou, então, aceitar os bens imóveis e recusar os bens móveis, ou, ainda, aceitar apenas uma terça parte do que lhe foi transferido.”

Caso seja opção do herdeiro renunciar o que lhe cabe, deverá fazer através de instrumento público ou termo judicial, conforme dispõe o art. 1.806do Código Civil. Se de fato deseja renunciar, deve fazer atenção para que não pratique nenhum ato comum à aceitação da herança.

Art. 1.806. A renúncia da herança deve constar expressamente de instrumento público ou termo judicial.

A aceitação da herança pode ser de maneira expressa, tácita ou presumida. A forma expressa se perfaz, por exemplo, quando o herdeiro declara em processo de inventário, que tem interesse em receber seu quinhão, e está prevista na primeira parte do art. 1.805 do Código Civil. A aceitação tácita por sua vez, se dá quando o herdeiro pratica atos comuns a quem aceita a herança, ou seja, passa a cuidar do patrimônio, manifestar-se em processo de inventário, cuidar de eventuais dívidas deixadas pelo falecido, etc., e está prevista na parte final do art. 1.805 do Código Civil.

Diferentemente é a aceitação presumida, que ocorre quando o herdeiro simplesmente se abstém de qualquer manifestação a respeito da herança, mesmo quando devidamente intimado num processo de inventário, de forma que seu silêncio é considerado como anuência com a herança (Art. 1.807 e 111do Código Civil).

Ao herdeiro que pensa em renunciar de sua herança, importante ressaltar que tal ato tem efeito ex tunc (retroativo), isto é, passa-se a considerar como se ele nunca tivesse sido chamado à sucessão, trazendo repercussões para seus próprios filhos. A prole do renunciante não poderá herdar “por representação”, ou seja, não receberá aquilo que cabia a seu pai pela morte do avô, por exemplo.

Não suficiente, há entendimentos de que para o herdeiro casado poder renunciar seu quinhão, deverá ter a outorga marital de seu cônjuge; quer dizer, seu consentimento para o ato, devendo assinar conjuntamente o termo judicial ou a escritura pública de renúncia.

Assim, o herdeiro que não quiser não é obrigado a aceitar a herança que lhe cabe, mas deve estar ciente das consequências da renúncia, e atentar-se para não praticar atos atinentes à aceitação da sucessão.

Confira outros artigos de nossa autoria sobre Direito das Sucessões, como: “Posso deixar bens em testamento para crianças, adolescentes e nascituros? ”e “Óbito de familiar: tenho que pagar impostos para passar o patrimônio para o meu nome? ”

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Fontes: DE CARVALHO, Luiz Paulo Vieira, Direito das Sucessões . 1. Ed. São Paulo: Editora Atlas, 2014.

https://suzannamacedo.jusbrasil.com.br/artigos/447428418/sou-obrigado-a-aceitar-minha-heranca

Saiba mais sobre o uso da ata notarial como meio de prova no Direito de Família

Artigo - "Atas Notariais no Direito De Família" – Por Denise Vargas
Publicado em 13/07/2017


A ata notarial é relevante meio probatório em vários ramos do Direito, e, em especial, no Direito de Família para resguardar interesses legítimos face ao abuso do direito à intimidade e privacidade, ao lado dos tradicionais e difundidos meios de provas.
 
Muitos profissionais da área jurídica ainda desconhecem o poder da ata notarial como meio de prova, inclusive no Direito de Família.
 
A ata notarial é um documento contido num instrumento público lavrado por tabelião de notas, seus substitutos ou escreventes autorizados, para formalizar a descrição objetiva de um fato ou de uma determinada situação que presenciam por seus próprios sentidos, sem emissão de juízo de valor.
 
O notário, por ser agente dotado de fé pública, instado por alguém, pode lavrar uma ata descrevendo um fato que tomou conhecimento ou de uma situação que lhe é apresentada, narrando-a no referido instrumento. Assim agindo, o tabelião, a pedido da parte interessada, constata algo e o descreve em seu livro, entregando uma cópia ao interessado.
 
Com o advento das novas tecnologias de comunicação, a exemplo das redes sociais e aplicativos de mensagens, a ata notarial passou a ser um excelente meio probatório de atos e situações violadoras de direitos, a exemplo de alienação parental, crimes contra a honra, fraudes na partilha, ameaça etc.
 
Muitas vezes, diante de uma disputa pela guarda dos filhos, um dos genitores passa a usar as redes sociais ou os aplicativos de trocas de mensagens para vilipendiar a honra do outro genitor, depreciando-o para os filhos ou até mesmo para o público das referidas redes, numa atitude de alienação parental, injúria e difamação. Nesses casos, o interessado pode requerer ao notário que veja as mensagens e as narre, inclusive com um retrato da tela onde as mensagens foram postadas.
 
Além de ter um maior valor probatório que um mero “print screen” feito pelo próprio interessado, a ata notarial acaba sendo um instrumento para assegurar a prova diante da possibilidade de que o autor das postagens as apague, posteriormente. Assim, quando uma mensagem desabonadora é postada, a vítima deve, o quanto antes, se dirigir a qualquer Tabelionato de Notas e requerer a lavratura da ata, para que a prova não se perca com a sua retirada do espaço digital.
 
No Direito de Família, a ata notarial tem sido muito utilizada, no seguintes casos:
 
I – para provar a falta de capacidade de um dos genitores de manter a guarda dos filhos, mediante postagens nas redes sociais que demonstram vida desregrada, agressividade, uso de drogas e alienação parental;
 
II – danos morais por atos de violam a honra e a imagem de um dos ex-cônjuges;
 
III – Fraude na partilha de bens, quando, por exemplo, há diversas fotos e postagens assumindo a propriedade de bens adquiridos na constância do casamento, mas que estão em nome de interpostas pessoas;
 
IV – Capacidade financeira de arcar com um valor mais proporcional de pensão alimentícia.
 
Enfim, a ata notarial é relevante meio probatório em vários ramos do Direito, e, em especial, no Direito de Família para resguardar interesses legítimos face ao abuso do direito à intimidade e privacidade, ao lado dos tradicionais e difundidos meios de provas.
 
*Denise Vargas é mestre em Direito Constitucional. Especialista em Direito Processual, Penal e Constitucional. Professora de Direito de Família e Constitucional, advogada em Brasília, titular da banca Denise Vargas Advocacia.
 
Fonte: Migalhas

http://www.notariado.org.br/index.php?pG=X19leGliZV9ub3RpY2lhcw==&in=OTc2Nw==&filtro=9&Data=

Razões pelas quais companheiro não se tornou herdeiro necessário

Por 
Retomo hoje o tema da sucessão na União Estável e os limites das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento dos Recursos Extraordinários 878.694 e 646.721, que declararam a inconstitucionalidade da diferenciação das regras de concorrência sucessória entre cônjuge e companheiro (CC, artigo 1.790) e mandaram aplicar à União Estável o regime da sucessão do cônjuge.
Após a decisão da Suprema corte brasileira, diversas decisões judiciais passaram a considerar ter ocorrido uma plena equiparação entre a UE e o Casamento, senão em todos os seus efeitos jurídicos, mas certamente na plenitude dos direitos sucessórios. Em outras palavras, todas as regras legais atinentes à sucessão do cônjuge aplicar-se-iam à sucessão do companheiro, inclusive a designação legitimária do artigo 1.845 do CC/2002, transformando o companheiro sobrevivente em herdeiro necessário, tanto quanto descendentes, ascendentes e cônjuge.
Com o máximo respeito aos que pensam diferente, entendo que a pretensão de se estender a designação legitimária do artigo 1.845 ao companheiro sobrevivente toma como base um “isonomismo ” jamais imaginado quer pelo constituinte de 1988, quer pelo próprio STF.
Sei que a posição que defendo aqui vai de encontro à maioria das manifestações doutrinárias até agora publicadas. Entretanto, e sem qualquer receio de me manter perfilando corrente minoritária, entendo que o companheiro não se tornou herdeiro necessário. E ofereço, a seguir, quatro argumentos que lastreiam esse entendimento.
Argumento 1: a qualificação de cônjuge ou de companheiro decorre do atendimento ou não de formalidades ou de exigências exigidas por lei. No casamento, formalidades e solenidades integram a substância do ato, sem as quais aquele não ingressa no plano da validade. Na união estável, inexistem formalidades exigíveis como requisito de ingresso ao plano da validade, ainda que os conviventes desejem formalizar a relação. O que importa é a convivência no plano dos fatos, com as qualificadoras exigidas pela lei. Da mesma forma, o status de herdeiro necessário também decorre do preenchimento dessas formalidades próprias do casamento, dispondo a lei, de forma explícita, que somente quem possua o estado civil de “casado” portará o título de sucessor legitimário, ostentando a qualificadora restritiva da liberdade testamentária. E sob esse raciocínio, pode-se afirmar que a situação jurídica de herdeiro necessário guarda relação direta com as formalidades do casamento, única entidade familiar com a aptidão a modificar o estado civil, de maneira que a interpretação a favor de uma não inclusão do companheiro como herdeiro necessário seria admissível com base nas próprias distinções decorrentes das normas de formalidade.
Argumento 2: o artigo 1.845 é nítida norma restritiva de direitos. O direito fundamental à herança não pode ser visto apenas sob a ótica do herdeiro, mas deve se pautar também pelos interesses do autor da herança, pois o exercício da autonomia privada integra o núcleo da dignidade da pessoa humana. A designação legitimária é dever imposto ao autor da sucessão de reservar parte de seus bens a determinados herdeiros. A norma institui restrição ao livre exercício da autonomia privada, restringe, sem dúvida, a sua liberdade de disposição, constituindo, por isso, exceção no ordenamento jurídico e, conforme as regras ancestrais de hermenêutica, não se pode dar interpretação ampliativa à norma restritiva. Normas restritivas de direitos devem ser interpretadas sempre de forma também restrita. O rol do artigo 1.845, portanto, é taxativo! Da mesma forma que só a lei pode retirar qualquer herdeiro daquele elenco, somente a lei pode ampliar o seu conteúdo, não sendo permitido ao intérprete fazê-lo.
Argumento 3: restringir a liberdade testamentária do autor da herança, no caso, mostra absoluto descompasso com a realidade social, marcada pela interinidade dos vínculos conjugais. Notadamente nas uniões informais, que se formam e se dissolvem mais facilmente que o casamento. Sem falar na insegurança jurídica que resultaria da necessidade de reconhecimento judicial pos mortem da UE, muitas vezes em relação de simultaneamente com um casamento válido, como se dá em grande parte das famílias recompostas.
Argumento 4: o STF não se manifestou, em momento algum, sobre a aplicação do artigo 1.845 à sucessão da união estável. Os debates travados durante o julgamento nos levam a concluir que o STF, não só não quis assegurar esse status ao companheiro, como expressamente ressalvou a prevalência da liberdade do testador, na sucessão da UE. Confira-se, a propósito, o seguinte trecho do voto do ministro Edson Fachin:
Como oitava premissa, emerge o argumento quanto à existência de desigualdade no elemento subjetivo que conduz alguém a optar pela união estável e não pelo casamento. Sob esse argumento, quem vive em união estável pretenderia maior liberdade. União estável, porém, não é união livre. União estável pressupõe comunhão de vida. Eventual desigualdade quanto à pressuposição de maior liberdade na união estável, por ser união informal, não justifica menor proteção às pessoas em regime de convivência do que àquelas casadas.
Se a informalidade da constituição da relação, a qual, repise-se, exige comunhão de vida para ser família, pudesse justificar direitos diferentes ou em menor extensão, também restaria afastada a incidência de regime de comunhão de bens, quanto aos efeitos inter vivos.
Na sucessão, a liberdade patrimonial dos conviventes já é assegurada com o não reconhecimento do companheiro como herdeiro necessário, podendo-se afastar os efeitos sucessórios por testamento. Prestigiar a maior liberdade na conjugalidade informal não é atribuir, a priori, menos direitos ou diretos diferentes do casamento, mas, sim, oferecer a possibilidade de, voluntariamente, excluir os efeitos sucessórios. (RE 646.721, Ministro Edson Fachin, p. 57)

Considero os argumentos acima suficientes à formação e fixação de meu convencimento de que o companheiro sobrevivente não foi alçado à posição de herdeiro reservatário.
Mário Luiz Delgado é advogado, professor da Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo (Fadisp) e da Escola Paulista de Direito (EPD), doutor em Direito Civil pela USP, mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP e especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam), diretor do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) e membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC).
Revista Consultor Jurídico, 29 de julho de 2018, 8h00
https://www.conjur.com.br/2018-jul-29/processo-familiar-razoes-pelas-quais-companheiro-nao-tornou-herdeiro-necessario

"Il Terzo Contratto" — Surge uma nova categoria de contratos empresariais ?

Por 
A publicação deste artigo se deve ao honroso convite da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo, coordenada pelos ministros do Superior Tribunal de Justiça Luis Felipe Salomão, Antônio Carlos Ferreira e Humberto Martins e pelos professores Ignácio Maria Poveda Velasco, Otavio Luiz Rodrigues Junior, José Antônio Peres Gediel, Rodrigo Xavier Leonardo e Rafael Peteffi da Silva. Sem dúvida o privilégio não é maior do que a responsabilidade de ocupar este espaço frequentado pelos juristas e estudiosos da Rede. Espero que a minha contribuição seja útil.
Na doutrina italiana, com Roberto Pardolesi[1], que cunhou o termo terzo contratto no prefácio do livro de Giuseppe Colangelo[2], se passou a observar que a contratação entre duas empresas, quando uma delas é dependente economicamente da outra, reflete uma categoria de contrato que não se identifica com o contrato clássico (primeiro contrato), aquele caracterizado pela presença de partes igualmente informadas e com livre capacidade de escolha. Essa contratação também não se identifica com o contrato de consumo (segundo contrato), que é marcado pela presumida vulnerabilidade de uma das partes em razão essencialmente da deficiência de informação. Cuida-se de uma realidade diversa — um terceiro contrato (il terzo contratto) —, para a qual o regime dualista apontado não oferece resposta adequada. É um novo personagem que surge no horizonte e que deve ser visto muito proximamente[3], como parte da fenomenologia e disciplina atual dos contratos entre empresas.[4]
Em geral a doutrina hoje classifica os contratos, de forma unitária, a despeito da variação designativa, em contratos business-to-business (B2B) e business-to-consumer (B2C), contratos negociados e não negociados, contratos individuais e estandardizados, contratos paritários e não paritários, e contratos com simetria ou não de poderes, revelando, fundamentalmente, a distinção entre a contratação individual e a contratação de massa, bem como a distinção entre a contração negociada e a contração não negociada.[5]
Bem anota Giuseppe Amadio que a classificação referida, assim como a norma que regula a respectiva contratação, tem como objeto de observação a atividade (não somente a posição ou o papel das partes no negócio, quanto à modalidade do exercício da autonomia negocial) e a efetividade da contratação, considerando no plano normativo o confronto entre o contrato de direito comum e o contrato de consumo. Do ponto de vista teórico, a distinção se faz entre o contrato que é celebrado com ou sem acordo de vontades.[6]
A classificação feita pela doutrina nestes termos passa em boa medida pela forma de exercício da autonomia privada e se reflete na dualidade de tratamento da tutela contratual. Esse dualismo, entre contrato de consumo e contrato de direito comum, revela que a lei labora: (i) de um lado, com um modelo de contrato inteiramente negociado, entre partes que se encontram em condição de igualdade, e que reclama o máximo de liberdade e o mínimo de intervenção do legislador e do juiz, em favor da autonomia privada; (ii) de outro lado, com um contrato (de consumo) no qual se verifica uma disparidade de instrumentos e de informações, não negociado plenamente e marcado pela assimetria de forças, que reclama o máximo de controle do legislador, especialmente no momento formativo, e admite em grau maior a intervenção judicial.
Quando se unificou o direito privado nas codificações, o que ocorreu no Brasil com o Código Civil de 2002, o regime geral dos contratos (empresariais ou não) também foi unificado. Destacou-se desse regime geral a contratação nas relações de consumo, o que polarizou o direito contratual em duas categoriais bem definidas. Sucede que a afeição do jurista à categorização do direito o levou a perder a percepção para outras realidades não compreendias nos modelos conhecidos, o que se refletiu no paradigma do direito contratual orientador da tutela adequada.
Esses dois polos definidos no direito contratual não alcançam, seguramente, todas as categoriais contratuais que, em razão das suas especificidades, não se ajustam a esse dualismo[7]. Como exemplo da não adequação às categorias definidas, Roberto Pardolesi lembra que os contratos financeiros (bancários), embora compreendidos nas relações de consumo, devem ser regulados não só do ponto de vista da tutela do consumidor, contratante fraco e pouco informado, mas também do ponto de vista da estabilidade e segurança do sistema financeiro. Não cabe aplicar a esses contratos rigorosamente o regime das relações de consumo, diante de outro valor presente nesta relação igualmente digno de tutela. Também não é o caso de aceitar o modelo clássico liberal para regular essa contratação. Outro exemplo de Pardolesi está nos contratos relacionais, hoje bem conhecidos na doutrina brasileira, órfãos de um regime jurídico próprio, cuja regulação não pode se dar com a aplicação de regras dos contratos típicos e instantâneos, como a compra e venda, diante dos efeitos decorrentes da duração das relações entre as partes.[8]
O contrato de franchising, que tem no franqueado a parte fraca da relação, sujeita às condições previamente estabelecidas pelo franqueador, a respeito das quais há restrita margem de negociação, é outro exemplo de contrato que não se ajusta ao referido dualismo. Cabe incluir também o contrato de distribuição e os contratos de rede de empresas. A esses contratos não podem ser aplicadas indistintamente a regulação e a tutela própria dos contratos negociados, porque, embora celebrados entre empresas, é fácil perceber que um deles (por exemplo o franqueado) está em situação absolutamente diversa do ponto de vista da simetria dos poderes de negociação.
São hipóteses contratuais que não se identificam com as matrizes colocadas no sistema dualista ou, propriamente, não se identificam com as categorias de direito contratual com as quais o jurista se habituou.[9] Em comum a essas relações está a assimetria de poderes e a vulnerabilidade de uma das partes. Diversamente das relações de consumo, a assimetria de forças (entre partes empresárias) nos contratos não é necessariamente um problema jurídico se ao empresário havia alternativa e liberdade de contratação. O desequilíbrio se revela patológico para o direito somente quando decorre do abuso decorrente da dependência econômica.
Pode-se dizer, portanto, que a assimetria nas relações de consumo é de natureza informativa, porque nesse ponto reside fundamentalmente a vulnerabilidade do consumidor, enquanto nos contratos empresariais, nas situações de dependência entre empresas, a assimetria decorre, não da incapacidade de negociar, mas da falta de alternativa.
A consequência do referido binário tratamento legislativo é a fragmentação da unidade do paradigma contratual, ponto sobre o qual, como afirma Giuseppe Amadio, não se discute na doutrina. A questão que se coloca hoje é como reordenar o sistema na busca do paradigma perdido[10].
É justamente entre estes dois polos — contrato liberal clássico e contrato de consumo — que se investiga essa terra di mezzo (terra do meio), uma área intermediária na qual está o chamado terceiro contrato. A hipótese dessa figura se amolda a um contrato entre empresários com capacidade de negociação. Todavia, se verifica de um lado da relação o empresário fraco (débil), que se coloca em situação muito próxima do consumidor nas relações de consumo, quando se olha somente para a assimetria de poderes e a vulnerabilidade da parte. É uma nova categoria de contratante débil, como afirma Pardolesi.
Na próxima semana a publicação da segunda parte deste artigo aborda essa nova categoria de contrato.
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT e UFBA).

1 Na página eletrônica de LUISS – Università Guido Carli, [http://docenti.luiss.it/pardolesi/research/working-papers/] pode ser encontrado o link para “Una postilla sul Terzo Contratto”, de Roberto Pardolesi, ou diretamente em: http://www.law-economics.net/workingpapers/L&E-LAB-FIN-07-2008.pdf.
2 L' abuso di dipendenza economica tra disciplina della concorrenza e diritto dei contratti. Un'analisi economica e comparata. Editora Giappichelli, 2004.
3 Gregorio Gitti e Gianroberto Villa. Il Terzo Contratto. (Introduzione). Ed. il Mulino, 2008, p. 7.
4 Vale registrar a observação de Rita Marsico: “Trattasi di una recentissima fattispecie dai contenuti normativi ed applicativi ancora incerti e che non ne garantiscono, ad ora, portata dogmatica, nonostante stia acquisendo sempre maggiori consensi nel panorama civilistico” (https://www.filodiritto.com/articoli/pdf/2010/11/le-nuove-frontiere-della dottrina-civilistica-il-terzo-contratto?_id8=3 – acessado em 24.05.2018). Mesmo quando não invocada a nova figura, a doutrina reconhece a existência de um vazio na hipótese de um contrato entre empresários. Ernesto Capobianco, justifica esse vazio pelo fato de que, diante de uma relação contratual entre empresas, sujeitos profissionalmente organizados e melhores árbitros dos próprios interesses, não haveria de se imaginar necessária a intromissão judicial para decidir sobre a justiça do contrato (Lezioni sul contratto. G. Giappichelli Editore – Torino, 2014, p. 172).
5 Giusepe Amadio. Il terzo contratto. Il problema. Op. cit., p. 10.
6 Op. cit., p. 10-11.
7 Bem a propósito a precisa observação de Eros Roberto Grau e Paula Forgioni no sentido de que “o contrato não é um instituto único, porém um feixe de institutos jurídicos (os contratos)”, de forma que as regras aplicáveis aos contratos são diferentes (O Estado, a empresa e o contrato. Malheiros Editores, 2005, p. 16).
8 Conclusioni. Op. cit., p. 336-337.
9 O problema desse dualismo vem a tona quando a doutrina defende a distinção entre contratos de consumo e contratos empresariais. Paula A. Forgioni ressalta que o direito comercial e o direito do consumidor são regidos por princípios peculiares diversos, submetendo-se a lógicas apartadas. A distinção destas duas espécies de contratos é imperiosa para que não se faça a indevida aplicação de princípios de um ramo do direito a outro. Diz a autora: “Torna-se premente resgatar os contratos comerciais para impedir sua absorção pelo consumerismo e o aviltamento da racionalidade própria do direito empresarial” (Contratos Empresariais. Editora Revista dos Tribunais, 2ª ed., p. 37). A advertência da autora é exatamente no sentido de que não se pode emprestar o regime de uma categoria de contratos a outra. A advertência se mostra pertinente quando se verifica que não há um regime adequado para separar os contratos empresariais do modelo clássico-liberal de contratação, o que revela a insuficiência das duas categorias polarizadas no direito contratual.

10 No Brasil, assim como na França e Itália, esse sistema binário é instrumentalizado pela edição de um Código do Consumidor, ao contrário do sistema alemão, que incorporou no próprio Código Civil a disciplina da relação de consumo a partir da reforma do BGB de 2001/2002, unificando o direito das obrigações.
Carlos Alberto Garbi é mestre e doutor em Direito Civil pela PUC-SP. Pós-doutorando pela Universidade de Coimbra em ciências jurídico-empresariais. Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo. Consultor e advogado. Professor e Chefe do Departamento de Direito Privado e Social da FMU-SP.
Revista Consultor Jurídico, 30 de julho de 2018, 8h30
https://www.conjur.com.br/2018-jul-30/direito-civil-atual-il-terzo-contratto-categoria-contratos-empresariais

Ex-cônjuge tem direito à pensão alimentícia por não ter condições de inserção no mercado de trabalho

27 JUL 2018

Com informações do Correio Forense
A Primeira Câmara Cível do Tribunal de Justiça da Paraíba, por unanimidade, deram provimento à Apelação nº 0520171-02.2004.815.2001, para determinar o pagamento de pensão alimentícia, no valor de 20% da renda, por parte de ex-marido para a ex-companheira, após o divórcio. A decisão levou em conta a dificuldade de inserção da mulher no mercado de trabalho, devido à idade avançada, e foi em harmonia com o parecer da Procuradoria de Justiça.
A Apelação Cível foi interposta contra sentença do Juízo de 1º Grau que, ao deferir o divórcio, determinou que o imóvel do casal fosse dividido de forma igualitária, mas afastou a fixação de pensão alimentícia. Inconformada, a ex-cônjuge questionou a negativa de pensão, alegando que nunca trabalhou, por imposição do então esposo e, na época da separação, já tinha mais de 50 anos, o que impossibilitou sua inserção no mercado de trabalho. Desse modo, defendeu o dever de mútua assistência entre os companheiros.
No relatório, o juiz convocado Onaldo Rocha de Queiroga recapitulou que a fixação de alimentos é admitida de forma provisória quando, rompido o matrimônio, o ex-cônjuge precisa de um período para se adequar à nova realidade profissional e financeira. A exemplo de uma mulher jovem que ficou, temporariamente, sem trabalhar, ou que, mesmo tendo mais idade, sempre trabalhou. Assim, a pensão fixada por tempo determinado visa permitir que ela busque formação profissional ou condições favoráveis à reinserção no mercado de trabalho, para evitar a continuidade da prestação de alimentos.
No entanto, observando que, no caso em questão, a apelante já tinha idade relativamente avançada para iniciar formação profissional ou passar a integrar o mercado, o relator entendeu que “deve prevalecer a obrigação alimentar entre ex-cônjuges, pois esta deriva do dever de mútua assistência, previsto no artigo 1.694 do Código Civil”.
“Outrossim, não existe comprovação acerca da diminuição da capacidade financeira do apelado. Ele não trouxe elementos a justificar a redução em sua capacidade econômica após a fixação dos alimentos, nunca questionou o percentual fixado e, durante a instrução processual, não comprovou melhoria na condição da apelante ou qualquer outra alteração fática a fim de não mais justificar o pensionamento”, ressaltou.
Além disso, o magistrado disse que a recorrente demonstrou que não tem condições de arcar com o próprio sustento, por nunca ter exercido outra atividade, a não ser a dedicação exclusiva ao lar, sem nunca ter havido oposição do então marido quanto a isso. “Logo, considerando que não há provas, nos autos, de qualquer formação profissional da apelante e, não tendo o apelado contestado a dedicação exclusiva da ex-cônjuge às atividades domésticas durante o relacionamento nem, tampouco, o percentual pago a título provisório, entendo que a apelante faz jus à pensão alimentícia”, concluiu o relator.
O advogado Rodrigo da Cunha Pereira, especialista em Direito de Família e Sucessões, explica que a pensão alimentícia decorrente do casamento e da união estável, atrela-se também ao binômio necessidade e possibilidade, mas também à duração da conjugalidade. Certamente, os critérios do quantum decorrente de um casamento de curta duração são muito diferentes de uma conjugalidade de longa duração. “A Emenda Constitucional nº 64/10 alterou o art. 6º da Constituição da República para introduzir a alimentação como um direito social, o que reforça a sua amplitude e importância como direito essencial, fundamental e atributo da dignidade da pessoa humana”, ressalta o especialista em Direito de Família e Sucessões.
Rodrigo explica ainda que  o caso clássico a justificar este tipo de pensionamento é o do cônjuge/companheiro, historicamente a mulher, parte economicamente mais fraca, que, por acordo ainda que tácito, passou sua vida dando o suporte doméstico para a educação e criação dos filhos, com isso possibilitando que o outro cônjuge se desenvolvesse profissionalmente. “É também uma forma de se atribuir um conteúdo econômico ao desvalorizado trabalho doméstico”, avalia.
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Conheça o verbete alimentos compensatórios do Dicionário de Direito de Família e Sucessões.
ALIMENTOS COMPENSATÓRIOS [ver tb. alimentos, pensão alimentícia compensatória] – A pensão alimentícia compensatória, ou alimentos compensatórios, é uma das formas de compensar o desequilíbrio econômico-financeiro decorrente do divórcio ou da dissolução da união estável, independentemente do regime de bens entre eles. Tal forma de pensionamento não está atrelada, obrigatoriamente, à clássica equação aritmética necessidade/possibilidade. O quantum alimentar, o fundamento e objetivo da pensão compensatória é proporcionar e equiparar o padrão socioeconômico a ambos os divorciados ou ex-companheiros. O caso clássico a justificar este tipo de pensionamento é o do cônjuge/companheiro, historicamente a mulher, parte economicamente mais fraca, que, por acordo ainda que tácito, passou sua vida dando o suporte doméstico para a educação e criação dos filhos, com isso possibilitando que o outro cônjuge se desenvolvesse profissionalmente. É também uma forma de se atribuir um conteúdo econômico ao desvalorizado trabalho doméstico.
A pensão alimentícia compensatória surge e ganha força no ordenamento jurídico brasileiro em consequência do comando constitucional de reparação das desigualdades entre cônjuges ou companheiros, sob o manto de uma necessária principiologia para o Direito de Família. O desfazimento de um casamento ou união estável, especialmente aqueles que se prolongaram no tempo, e tiveram uma história de cumplicidade e cooperação, não pode significar desequilíbrio no modo e padrão de vida pós-divórcio e pós-dissolução da união estável. As normas jurídicas que dão suporte e autorizam a pensão compensatória advêm dos princípios constitucionais da igualdade, solidariedade, responsabilidade e dignidade humana. As normas infraconstitucionais, mais especificamente o art. 1.694 do CCB 2002, bem como a melhor jurisprudência e o direito comparado, apresentam-se também como fontes obrigatórias para a compreensão e desenvolvimento do raciocínio jurídico desta modalidade de pensamento.
Nas sociedades capitalistas e patriarcais, é comum atribuir-se valor apenas à força de trabalho que produz mercadorias e rendas. Em outras palavras, atribui-se valor apenas àquilo que traduz um conteúdo econômico. E, assim, o trabalho doméstico, historicamente desenvolvido pelas mulheres, nunca recebeu seu devido valor. Nunca se atribuiu a ele um conteúdo econômico. Entretanto, não é possível a existência de sociedades e famílias sem esse necessário trabalho doméstico. Mesmo que se delegue a empregados os cuidados e fazeres domésticos, a administração, o cuidado, o olhar, o afeto e a energia ali despendida para que se crie filhos saudáveis, é necessário que, ao menos um dos pais, se dedique mais a essa função. Contudo, como isto não gera renda ou produz dinheiro, tal função ganhou uma importância inferior à de quem trabalha fora de casa. E, assim, a importância e o verdadeiro valor da força de trabalho para a criação e educação de filhos são invisíveis.
A pensão alimentícia compensatória se difere da pensão alimentícia comum, em razão da sua natureza reparatória e compensatória de diferenças que vão além da natureza assistencial da pensão alimentícia comum. O seu fundamento e a sua natureza é a de reparar o desequilíbrio econômico entre os ex-cônjuges, ou ex-companheiros, para que se dissolvam as desvantagens e desigualdades socioeconômicas instaladas em razão do fim da conjugalidade. A pensão pode ter dupla natureza jurídica, que demonstra tanto a necessidade alimentar tradicional quanto na indenizatória no sentido reparatório das desigualdades dos padrões de vida dos ex-cônjuges. E, como natureza reparatória, não se pode atrelá-la à responsabilidade subjetiva, pois não está a procurar um culpado pelo fim do casamento/união estável, até porque não há. Aliás, não se está a falar em momento algum de culpa, mas tão somente de responsabilidade. Daí, poder-se afirmar que estamos diante de um típico caso de responsabilidade civil objetiva decorrente de uma relação contratual, seja casamento ou união estável (Art. 927, CCB).
A obrigação alimentar compensatória se extingue com a morte do alimentário ou com a ausência de necessidade compensatória, seja em razão de abrupta queda da possibilidade do alimentante, seja pelo repasse integral de numerário, tornando-se isonômicas as realidades, ou mesmo pela desnecessidade do alimentário decorrente de fator superveniente ao padrão posto em análise no momento da fixação.
http://www.rodrigodacunha.adv.br/ex-conjuge-tem-direito-pensao-alimenticia-por-nao-ter-condicoes-de-insercao-mercado-de-trabalho/

Por ver discriminação, juiz inclui netas de relação não matrimonial em testamento

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Se a Constituição veda aos pais discriminação entre filhos havidos ou não no casamento, essa proteção também se estende aos avós em relação aos netos.
Com esse entendimento, o juiz Milton Biagioni Furquim, de Guaxupé (MG), determinou que duas netas sejam incluídas na partilha da avó, que tinha excluído ambas do testamento por serem fruto de relacionamento não matrimonial do pai.
De acordo com o juiz, ainda que a autora do testamento possa dispor livremente da parte disponível da herança, esse direito encontra limitações constitucionais, devendo o Poder Judiciário afastar esses abusos.
Na ação, as duas netas afirmaram que foram excluídas do testamento por serem fruto de relacionamento não matrimonial do pai. Dos sete netos, a avó deixou de fora apenas as duas. O valor atribuído a causa é de R$ 35 milhões.
Ao proferir sentença parcial de mérito, Furquim reconheceu que houve abuso de direito por parte da avó e que é possível a intervenção do Judiciário. "A última vontade da testadora, assim como todos os atos jurídicos, de esfera pública ou particular, devem ser compatíveis com os instrumentos normativos de hierarquia superior, podendo sofrer controle de legalidade, supra legalidade e/ou constitucionalidade", afirmou.
O juiz lembrou que a Constituição Federal de 1988 aboliu toda diferenciação entre filhos legítimos, ilegítimos ou adotados, sem qualquer ressalva de situações preexistentes. "A igualdade e a não discriminação dos filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, é imperativo imposto pela ordem constitucional vigente que o intérprete da lei civil não pode ignorar quando se confronta com uma questão como a sob foco."
Para o magistrado, não haveria discriminação se a avó tivesse aquinhoado terceiros ou apenas um ou dois entre tantos netos. No entanto, explicou, houve disposição em favor de cinco dos sete netos, deixando de fora apenas as duas netas concebidas por um de seus filhos em relação não marital.
"O princípio constitucional que impede a discriminação dos filhos para todo e qualquer fim, especialmente para fins sucessórios, é proteção que, em relação aos avós, obviamente se estende aos netos, que são filhos dos filhos daquela. Até porque, o caput do artigo 227, da CF/88, confere um dever a que a família coloque seus membros a salvo de sofrerem discriminação ou lesão à sua dignidade e/ou aos seus direitos, inclusive patrimoniais", registrou o juiz.
Na decisão, ele disse ainda que chama a atenção o fato de o testamento contemplar exatamente os cinco netos e, ao mesmo tempo, de forma indisfarçavelmente discriminatória, não contempla as outras duas netas.
"Ora, o direito não tolera o abuso. Não tolera que, no exercício de um direito reconhecido, o agente, ao exercê-lo, exceda manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico e social, pela boa-fé ou pelos bons costumes", complementou.
Furquim afirmou também que o tratamento discriminatório, além de contaminar a essência da igualdade familiar, acarretará em discrepância ainda maior em razão da magnitude do patrimônio. "No seio da mesma família, por força da discriminação imposta, um verdadeiro abismo se formará entre os primos, uns milionários, e outras, em petição de miséria."
Segundo o magistrado, essa situação atenta contra a dignidade da pessoa humana, além de desvirtuar o instituto do testamento para, através dele, dar vazão aos chamados planejamentos sucessórios. Assim, reconhecendo o tratamento discriminatório dispensado pela avó, o juiz declarou o direito das netas de serem incluídas na partilha.
Clique aqui para ler a sentença.
Processo 0058435-49

Tadeu Rover é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 31 de julho de 2018, 8h40
https://www.conjur.com.br/2018-jul-31/testamento-nao-discriminar-netos-relacao-nao-matrimonial

Questões polêmicas sobre a prisão civil por dívida alimentar

Por ério Cruz e Tucci
A primeira questão polêmica que veio a ser resolvida pelo Código de Processo Civil de 2015 concerne justamente à execução de prestações alimentares lastreada em título executivo extrajudicial.
Com base no artigo 784, extrai-se a possibilidade da celebração de inúmeros instrumentos particulares de transação contendo cláusulas que fixam obrigação alimentar, desde que referendados pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública, pela Advocacia Pública, pelos advogados dos transatores ou por conciliador ou mediador devidamente credenciado pelo tribunal. Ainda, o artigo 733 do novo diploma processual, repetindo a norma do artigo 1.124-A do código revogado (introduzido pela Lei 11.441/2007), possibilita a formalização extrajudicial da separação e do divórcio consensuais, e agora também a instrumentalização da dissolução consensual de união estável, de casais sem filhos incapazes e não havendo nascituros, admitindo-se, como é curial, a inclusão, no respectivo ato notarial, de disposições relativas à pensão alimentícia devida em favor de um dos cônjuges ou companheiros.
Em todas essas hipóteses, caso haja inadimplência da obrigação alimentar, o título executivo se consubstancia na própria escritura pública de transação, separação, divórcio ou dissolução de união estável.
Diante dessa evidência, o legislador de 2015 estruturou separadamente, de modo criterioso, o cumprimento de sentenças que impõem a obrigação de prestar alimentos, nos artigos 528 e seguintes; e reservou a disciplina da execução de alimentos, fundada em título extrajudicial, nos artigos 911 e seguintes do Código de Processo Civil.
Vale destacar, todavia, que a discrepância de tratamento entre o cumprimento de sentença e a execução de título extrajudicial revela-se apenas aparente. Apesar de a regulamentação de ambos encontrar-se em capítulos diferentes, receberam basicamente o mesmo regramento. E isso porque o parágrafo único do artigo 911 faz expressa alusão aos parágrafos 2º a 7º do artigo 528, tornando inequívoco o entendimento de que nas duas diversificadas situações é cabível a aplicação do meio coercitivo da prisão civil.
Não havia motivo para interpretação em sentido contrário. Mesmo sob a regência do velho código, doutrina e jurisprudência já haviam se posicionado, prevalentemente, no sentido de permitir a execução de alimentos sob pena de prisão, mesmo quando fundada em título executivo extrajudicial.
Se não fosse admitido o cumprimento do acordo que versa sobre alimentos, pelo procedimento contemplado nos parágrafos 2º a 7º do artigo 528 do Código de Processo Civil, estaria inteiramente desprestigiada a extinção extrajudicial dos casamentos e uniões estáveis, uma vez que a dissolução perante o Poder Judiciário produziria um instrumento muito mais eficaz do que o ato notarial equivalente. A distorção seria enorme e sem fundamento!
Assim, e por força da suprarreferida remissão expressa do artigo 911, é inarredável a conclusão de que todos os meios executivos pré-ordenados para o cumprimento de sentença que reconhece a obrigação de natureza alimentar são aplicáveis às obrigações decorrentes de títulos executivos extrajudiciais que imponham obrigação de pagar alimentos do Direito de Família.
No cumprimento de sentença ou decisão antecipatória, que tenha por objeto obrigação alimentar, sempre a requerimento do exequente, o juiz determinará a intimação pessoal do executado para, em três dias, pagar o débito, provar que o fez ou justificar a impossibilidade de efetuar o pagamento.
Para a execução de prestações alimentares, prevista no artigo 528 do Código de Processo Civil, com a possibilidade de ser decretada a prisão, exige-se a intimação pessoal do devedor, não bastando a mera intimação na pessoa de seu advogado. A observância dessa determinação é inafastável sempre que a execução de alimentos definitivos se der ex intervallo, com a prévia extinção do processo de conhecimento, ainda que não tenha transcorrido o prazo de um ano a contar do trânsito em julgado, de acordo com a previsão do artigo 513, parágrafo 4º. Fica, pois, excluída a aplicação da regra geral do artigo 513, parágrafo 2º, inciso I, que contempla a intimação pela imprensa oficial, na pessoa do advogado, para as execuções de alimentos definitivos, sob pena de prisão. A necessidade da intimação pessoal na situação em apreço, como é evidente, decorre da gravidade da imposição da restrição à liberdade física, que não pode surpreender o devedor em circunstância alguma. A intimação do devedor será feita por meio de carta com aviso de recebimento, encaminhada para o endereço constante dos autos, sendo ônus das partes mantê-lo atualizado (cf. artigo 274 do Código de Processo Civil).
Todavia, se o cumprimento não for de sentença, mas de decisão antecipatória de tutela, instaurado em autos suplementares, forçosamente perante o mesmo juízo no qual ainda tramita o processo, entendo que é dispensável a intimação pessoal do devedor que tem procurador constituído nos autos. É suficiente que a intimação se aperfeiçoe na pessoa do advogado que representa o executado, o que propicia enorme economia de esforços e garante maior celeridade ao processo, dispensando atos e termos desnecessários.
Caso o executado não cumpra o comando judicial, o respectivo ato decisório poderá ser levado a protesto, incumbindo ao exequente apresentar certidão de inteiro teor do provimento condenatório ao cartório de protesto (artigo 517). A previsão de protesto do pronunciamento judicial confere maior efetividade à execução de alimentos, sendo ainda possível a inscrição do nome de devedor de alimentos no cadastro de proteção ao crédito, segundo preceituam os parágrafos 3º e 5º do artigo 782 do Código de Processo Civil.
Consoante o disposto no artigo 517, parágrafos 1º e 2º, expressamente referido pelo parágrafo 1º do subsequente artigo 528, caberá ao exequente apresentar ao tabelionato de protesto a certidão que indicará o nome e a qualificação do exequente e do executado, o número do processo, o valor da dívida e a data de decurso do prazo para pagamento voluntário.
Independentemente do protesto, no cumprimento que se processa sob pena de prisão, a execução de alimentos não comporta o acréscimo da multa prevista no artigo 523.
Todavia, se o cumprimento de sentença se iniciar pelo procedimento do artigo 528, vale dizer, sob pena de prisão, mas se frustrar mesmo após a imposição da segregação física, o exequente poderá requerer o prosseguimento da execução por meio da sub-rogação de bens, nos termos do que dispõe o subsequente artigo 530. E, nesta hipótese, são perfeitamente cabíveis os acréscimos de multa e honorários previstos no parágrafo 1º do artigo 523.
Já sob outro enfoque, ex vi do parágrafo 7º do artigo 528, só é cabível a execução sob pena de prisão em relação às três prestações anteriores à instauração do cumprimento de sentença e a todas as demais que se vencerem no curso da execução. Trata-se da positivação de construção pretoriana, que já havia sido consolidada no enunciado da Súmula 309/STJ (“O débito alimentar que autoriza a prisão civil do alimentante é o que compreende as três prestações anteriores ao ajuizamento da execução e as que se vencerem no curso do processo”), o que implica significativa distinção legislativa no tratamento concedido aos alimentos presentes e aos pretéritos. Diante da considerável efetividade advinda do receio da pena de prisão, verifica-se que, ao restringir a possibilidade do seu decreto às três últimas prestações, o legislador praticamente retira a natureza alimentar das dívidas mais antigas, que só podem ser exigidas como débito comum, pelo procedimento previsto no Livro II, Título II, Capítulo III, do novel diploma processual, com temperamento das demais regras aplicáveis à execução de alimentos (excetuando-se, obviamente, a possibilidade do decreto de prisão do devedor).
Se esse entendimento era questionável à vista do aludido enunciado sumulado, deixa de sê-lo a partir da entrada em vigor do Código de Processo Civil, a teor do disposto no parágrafo 7º do artigo 528.
Assim, tratando-se de prestações vencidas há menos de três meses, o exequente pode optar pelo procedimento previsto no artigo 528, requerendo que o cumprimento da sentença ou decisão antecipatória se faça sob pena de prisão. Alternativamente, o devedor pode requerer o cumprimento de sentença de conformidade com o artigo 523 e seguintes, também do Código de Processo Civil, caso em que não será admissível o pedido de prisão do executado. Os meios executórios, nessa hipótese, devem recair sobre o patrimônio do devedor, com a penhora de bens suficientes à satisfação do crédito alimentar e, se não houver o pagamento voluntário no prazo de 15 dias, a dívida pode sofrer acréscimos de multa e honorários.
Não cabe a fixação de honorários advocatícios se no prazo de três dias o devedor proceder ao pagamento do débito alimentar. Primeiramente, porque não poderia haver decreto de prisão por dívida diversa da alimentar. Mas, além disso, há de se outorgar tratamento simétrico à questão, seja no cumprimento processado pelo artigo 528, seja naquele disciplinado pelo artigo 523. E o parágrafo 1º do artigo 523 não deixa margem para dúvidas: só cabe a fixação de honorários advocatícios de sucumbência, na fase de cumprimento de sentença, se o devedor intimado não proceder ao pagamento da dívida, acrescida de custas, no prazo que para tanto lhe for assinado.
José Rogério Cruz e Tucci é professor titular e ex-diretor da Faculdade de Direito da USP, além de membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas.
Revista Consultor Jurídico, 31 de julho de 2018, 8h00
https://www.conjur.com.br/2018-jul-31/paradoxo-corte-questoes-polemicas-prisao-civil-divida-alimentar