segunda-feira, 13 de agosto de 2018

TJGO - Juiz de Itajá dá guarda de cachorro para mulher após separação do casal

10/08/2018 11h59

Ao reconhecer a dissolução de sociedade conjugal de um casal com pedido de liminar ajuizado pelo homem, o juiz Adenito Francisco Mariano Júnior, da comarca de Itajá, determinou que o cachorro da raça poodle, que está na posse do autor, seja entregue à mulher. O magistrado levou em conta o argumento de que o animal pertence à filha da ré, entendendo que “este deve ser entregue a requerida, considerando seu valor afetivo”.
Na sentença, o juiz determinou ainda a partilha dos bens adquiridos na constância da união estável, como um veículo marca Ford, modelo Ranger 2002/2002, e dois lotes de terreno, totalizando uma área de 600 metros quadrados, localizado na cidade de São João de Aporé (MS), na proporção de 50% para cada parte. Outros bens móveis e imóveis não foram partilhados porque a mulher não conseguiu provar que foram adquiridos durante a união estável que, segundo os autos, começou em 2008.
O homem alegou que neste ano iniciou um relacionamento amoroso com a requerida, a qual passou a residir em sua casa, que já possuía todos os móveis e eletrodomésticos necessários para a convivência. Segundo os autos, passado longos anos, o relacionamento chegou ao fim, havendo, inclusive, medida protetiva de urgência, a qual perdeu a validade, em razão da reconciliação do casal.
Contudo, em 2015, eles separaram novamente, tendo o homem ido morar com sua mãe e a mulher permanecendo em sua casa. Ele sustentou que ela vem se desfazendo do mobiliário e que os únicos bens adquiridos durante a convivência foram os dois veículos mencionados.
Agressões
Por sua vez, a mulher argumentou que a união com o requerente foi marcada por agressões físicas e psicológicas e interesse financeiro. Disse que por diversas vezes tentou por fim ao relacionamento, mas ele a ameaçava, obrigando-a a reatar a convivência. Ao final, destacou que os bens não se limitam aos informados na ação.
O juiz Adenito Francisco Mariano Júnior afirmou que restou comprovado que eles conviveram maritalmente, devendo os bens móveis e imóveis serem partilhados, vez que o “esforço comum não decorre somente da participação monetária, mas da realização de outras atividades e cooperação conjugal, circunstâncias que favorecem a constituição do patrimônio”. Contudo, o juiz ressaltou que a requerida embora tenha mencionado outros bens adquiridos durante a união estável, “não restou comprovado, tendo em vista que esta não juntou provas que acompanhassem suas alegações”.
Quanto ao pedido de indenização por danos morais pleiteado pela mulher, o magistrado assinalou que não é nenhuma ofensa ou dissabor do cotidiano que caracteriza dano moral. “É imprescindível que a lesão apresente certo grau de gravidade, de modo a não configurar simples desconforto. As alegações trazidas pela requerida, bem como as provas produzidas por ela produzidas, não trouxeram uma elucidação satisfatória para a comprovação do dano moral”, assinalou Adenito Francisco Mariano Júnior. (Texto: Lílian de França – Centro de Comunicação Social do TJGO)
http://www.tjgo.jus.br/index.php/home/imprensa/noticias/161-destaque1/18394-juiz-de-itaja-da-guarda-de-cachorro-para-mulher-apos-separacao-do-casal

Em uma democracia, o Poder Judiciário deve assumir um papel representativo?

Por  e 
Em uma belíssima reflexão, recentemente publicada em O Globo, a filósofa Andrea Faggion procurou responder à seguinte pergunta que lhe foi colocada: numa democracia real, um juiz ou um tribunal teria legitimidade para condenar quem foi absolvido pela maioria dos cidadãos?
É natural que, prima facie, a resposta pareça óbvia, afinal — em tempos de binarismo político e espetacularização da Justiça —, a pergunta parece ter como pano de fundo a legitimidade da prisão do ex-presidente Lula enquanto líder nas pesquisas de intenção de voto. E, também naturalmente, a resposta de qualquer cidadão consciente que subscreva à ideia de que decisões judiciais devem ser cumpridas será algo na linha de “ora, é claro que Lula deve ser preso!”.
Só que a pergunta não é essa. E a resposta, aparentemente tão óbvia, já não mais parece tão simples quando damos um passo atrás e questionamo-nos mais abstratamente. Em termos mais simples: se, ao menos por um tempinho, deixarmos Lula, Temer e Bolsonaro de lado — o que, às vezes, é uma questão de sanidade —, conseguiremos refletir, de forma razoável, sobre esse hipotético conflito entre uma minoria dotada de autoridade e uma maioria que, de uma forma ou outra, a essa autoridade responde[1].
Se ainda assim a resposta segue parecendo óbvia, até mesmo ao leitor que aceita o convite ao passo atrás, a pergunta ainda vale a pena. Quando não nos questionamos sobre aquilo que, em sociedade, já parece ter atingido um patamar de obviedade consensual, corremos o risco de, por meio de ações irrefletidas, perpetuarmos costumes e comportamentos irracionais e iníquos (Felizmente, Emmeline Pankhurst e as suffragettes questionaram a tão óbvia proibição do voto feminino e conquistaram o sufrágio universal, garantindo que as gerações seguintes de mulheres não sofressem as consequências de viver em uma sociedade que se adapta, triunfantemente, à degradação dos tempos[2]).
Não nos cabe responder diretamente à pergunta que abre este ensaio; além de Faggion já o ter feito magistralmente, interessa-nos, mais do que investigar as bases filosóficas da (i)legitimidade de absolvições populares, tomar as reflexões subjacentes ao artigo como leitmotiv para tecer alguns questionamentos acerca de qual é e qual deve ser o papel e a atuação do Poder Judiciário em uma sociedade verdadeiramente democrática. Colocamos a pergunta, assim, de forma mais ampla, em termos como numa democracia, o Poder Judiciário deve assumir um caráter representativo?
A pergunta já seria de difícil resposta ao levantar — direta e indiretamente — conceitos de tão complexa definição, como democracia, representação, participação. Se isso já não fosse suficiente, ela, quando contextualizada, torna-se ainda mais complicada: em nossos interessantes tempos[3] de crise político-institucional, vemos um Judiciário cada vez mais atuante — para o bem e para o mal —, cada vez mais midiático.
E muitas vezes esse protagonismo do Poder Judiciário é justificado por seus protagonistas (com a devida licença para uma aparente redundância) com, já não mais tão nova, a partir da qual se assume que juízes, ou ministros, devem ouvir a “voz das ruas” — ou, é claro (com a devida licença para uma certa dose de cinismo), aquilo que se diz ser a “voz das ruas”. Diante do cenário de nossa já mencionada crise político-institucional e sua decorrência lógica — uma crescente insatisfação popular com um Congresso tido como corrupto, engessado, incapaz de acompanhar o ritmo que as demandas sociais exigem e de representar àqueles a quem devia —, fortalece-se o movimento, intrínseco e extrínseco, por um Supremo Tribunal iluminista, que deve atender ao clamor social e atribuir a si mesmo um papel de guia da história[4].
Parece inegável (i) que vivemos em uma sociedade que se pretende democrática, (ii) que democracia pressupõe a participação dos cidadãos, e (iii) que esses cidadãos são os destinatários das normas sociais; assim, parece natural, desejável e nada mais que democrático que tenhamos uma suprema corte que saiba atender ao clamor social. A defesa de uma concepção de democracia que pressupõe um Judiciário representativo parece se fortalecer ainda mais quando nos deparamos com um Congresso Nacional que, ao fazer por merecer muitas das críticas que recebe — da esquerda e da direita —, transmite aos cidadãos a ideia de que não mais os representa.
Mas será? Será mesmo que, de nossas premissas estabelecidas, segue-se essa conclusão? É possível derivar logicamente esse dever ser das circunstâncias que formam o nosso ser? Uma vez mais, o óbvio não é tão óbvio quando olhado de perto.
De novo, é um trecho do artigo de Faggion que serve de ponto de partida à(s) nossa(s) resposta(s), sempre parciais (tanto no sentido de em andamento — porque não pretendemos chegar em um ponto último —, quanto no sentido de que toma partido — porque (i) somos céticos quanto a respostas moralmente neutras e (ii) partimos do pressuposto de que a democracia é algo positivo —, quanto no sentido de incompletas — porque a maioria de nossas colocações são interrogações).
O trecho em questão lê o seguinte: “Em sociedades cada vez mais moralmente fragmentadas, a independência do sistema normativo estatal com relação à moralidade social também pode surgir como uma virtude, o modo artificial possível de assegurarmos alguma coesão social”.
A colocação traz consigo um poderoso insight, a partir do qual pensamos ser possível dar início à elaboração de algumas perguntas que seguem carentes de respostas.
1. Qual é a voz das ruas? O que ela diz?[5] Uma sociedade democrática — ou, (repetimos) no mínimo, que se pretende democrática — é, eminentemente, uma sociedade pluralista. Some-se a isso o fato de que somos um país desigual por essência, e temos que nossa sociedade parece cada vez mais fragmentada em todos os aspectos: moral, político, social, econômico. Disso, naturalmente, segue-se que também as demandas sociais são variadas, por vezes conflitantes. Se em um contexto hipotético de coesão social, a subjetividade humana, traduzida nas individualidades, já seria capaz de apresentar opiniões muito distintas em questões divisivas, que dizer de um contexto como o nosso, binário e polarizado? Talvez as ruas tenham mais vozes que se pense. E parece muito mais lógico que elas se façam ouvir no parlamento; enquanto este é justamente o ambiente institucional ao qual as democracias modernas atribuem a função representativa, a ausência de uma mesma previsão, a priori, com relação ao Judiciário torna-nos vulneráveis à possibilidade de que as cortes escolham qual voz deve ser ouvida.
2. Caso saibamos identificar a voz das ruas, ela deve servir de base para uma decisão judicial? Para fins de argumentação, aceitemos que seja possível, em meio à nossa multiplicidade contemporânea, identificar uma voz das ruas, uma unidade em meio ao pluralismo. Parece-nos que, em meio a tantas diferenças, essa unidade só poderia ser apontada a partir de termos abstratos com os quais todos concordariam e que, por isso mesmo, poderiam justificar qualquer decisão que não se sustentaria a partir de argumentos jurídicos. Ilustrando em termos mais claros a partir de um exemplo: absolutamente ninguém se diz ou diria contra, digamos, a necessidade de justiça. Contudo, parece muito difícil visualizar qualquer situação minimamente aproximada de unanimidade que não seja assim: nada mais que uma redução a uma essência simplista que, em verdade, de tão abstrata, torna-se desprovida de sentido. Kierkegaard, sempre genial, já dizia que conceitos abstratos só não são invisíveis quando tornados concretos[6].
A voz das ruas clama por conceitos diante dos quais essa voz é dividida em muitas outras que discordam sobre quais são as melhores concepções acerca desses conceitos. Todos concordamos com a justiça; discordamos profundamente sobre o que ela significa. É por isso que a responsabilidade política subjacente ao papel institucional do juiz impõe que suas respostas sejam jurídicas — ou seja, aquelas que foram previamente delineadas e estabelecidas através das vias legislativas[7].
Nesse sentido, é possível ir além: e quando a “voz das ruas” tem um caráter eminentemente antijurídico? O (suposto) clamor social (qual seria sua definição autêntica?) pode colidir com uma cláusula pétrea. Qual é o limite? Quem traça a linha divisória entre a reivindicação legítima e a voz das ruas que exige decisões contra legem? Esse, naturalmente, é só (mais) um dos riscos mais óbvios que apresenta um órgão dotado de um poder sem qualquer instância que o regule. É a ideia de liberdade negativa, de Constant[8], que impõe uma barreira no caminho da tirania[9]. Uma vez mais, ecoa a importante lição de Faggion: “Em sociedades cada vez mais moralmente fragmentadas, a independência do sistema normativo estatal com relação à moralidade social também pode surgir como uma virtude, o modo artificial possível de assegurarmos alguma coesão social”.
3. Considerando os níveis de desaprovação da população para com seus representantes, por uma série de motivos (por exemplo, corrupção, ineficiência), não é melhor que sejamos representados por juízes?[10] Ainda que respondidas as primeiras perguntas — com as ideias de que (i) a pluralidade social impede a identificação de unidade nas reivindicações que dão significado ao “clamor social” e (ii) ainda que este pudesse ser identificado, só o seria em termos abstratos que nada significam em um contexto prático —, resta uma terceira: se reconhecemos a crise de representatividade pela qual atravessamos e, ao mesmo tempo, reconhecemos também que há boas razões para que os cidadãos não se sintam representados de forma legítima, não seria melhor que outorgássemos a tarefa representativa a outro órgão? A pergunta, por mais natural que seja, parece-nos apressada; a conclusão, um silogismo bastante problemático. Desilusões não se resolvem a partir de ilusões, e não podemos cair na armadilha de comparar a péssima imagem do parlamento — que, convenhamos, parece muitas vezes esforçar-se para merecê-la — com uma imagem idealizada das cortes. Que o pior do Judiciário seja comparado ao pior do Legislativo, e que aquilo que o Legislativo tem de melhor seja comparado àquilo que de melhor tem o Judiciário. E, para além disso, ainda, não podemos perder de vista o papel constitucional de cada um.
Fiquemos com a importante lição de Jeremy Waldron: “Se importantes decisões em questões divisivas devem ser feitas […], parece apropriado que elas sejam feitas em um ambiente institucional que seja mais aberto — mais explícita e deliberadamente aberto à participação social do que são as Cortes”[11].
Não é porque algo parece estar em desacordo com seu telos que a solução é esperar que a finalidade em questão seja bem atendida por aquilo que jamais a teve. O que se quer dizer é que, gostemos ou não — e, em caso negativo, é um ônus da democracia —, a função representativa cabe ao parlamento, e não às cortes. Se ele não nos ouve, façamo-nos ouvir. A cidadania deve ser exercida; se já parece um clichê dizer que temos responsabilidade enquanto eleitores, talvez assim seja porque a ideia é verdadeira. E se também é bem verdade que o sistema político da era Cunha (que, não nos enganemos, não terminou só porque Eduardo está na cadeia) tem reforçado os meios de perpetuação no poder, disso não se segue que a saída não mais esteja no exercício da cidadania do indivíduo. Muito pelo contrário: é paradoxal, e talvez contraditório, esperar que um órgão do Estado nos salve da falência de outro órgão do Estado.
E bem ou mal, mal ou bem, a participação e a representação são elementos que se encontram no parlamento. Esperar que a resposta moralmente correta e politicamente adequada venha de um órgão sem accountability, especialmente em uma sociedade pluralista em profundos desacordos, parece ilusório e problemático. Contraditoriamente (e pensamos que inegavelmente), o populismo — característica típica de quem reivindica para si justamente a voz “do povo” — é uma das maiores ameaças às democracias autênticas. Por que um Judiciário populista não o seria? Seja a vox populi reivindicada por um líder carismático ou pelas autoridades às quais compete a função jurisdicional, a demagogia é sempre uma ameaça ao rule of law.
Trazemos um ponto de Madeleine Albright, em recente entrevista à The Economist: “Nenhuma instituição, por melhor construída que seja, poderá ajudar se perdermos nosso senso de humanidade compartilhada”. As respostas nem sempre vêm de cima para baixo. Talvez não precisamos de uma corte iluminista que guie a história. Por vezes, as respostas vêm de baixo pra cima, e sua manifestação nos meios institucionalmente adequados é uma questão de democracia.
Porque, como Albert Camus bem respondia quando questionado se o fim justifica os meios, somente os meios podem justificar o fim[12].


[1] Se o leitor exige um exemplo concreto, imagine, no lugar da figura de um ex-presidente popular, um cenário hipotético em que uma pequena comunidade, com um sistema de Justiça constituído, tem um de seus membros condenado ao responder por algo pelo qual a maioria da população diz absolvê-lo.
[2] Para (mais uma) belíssima reflexão — agora sobre essa adaptação de gerações passadas ao que, hoje, parece aberrante —, ver GIANNETTI, Eduardo. Trópicos Utópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, pp. 20-21.
[3] “Que você viva em tempos interessantes”, dizia a maldição chinesa. Ao que tudo indica, os deuses não nos pouparam.
[4] Preocupa-nos sobremaneira que ministros do Supremo Tribunal Federal subscrevam, consciente ou inconscientemente, de um modo ou outro, ou (i) à tese de uma história a ser empurrada na direção de princípios formais, transcendentais e abstratos, ou (ii) à uma história sem transcendência, absolutamente racional, que consagra um perigoso relativismo ao tudo justificar em nome de seu fim. Uma corte suprema é só uma corte suprema; o fato de um tribunal ser de justiça significa que ele é, em parte, responsável pelo sistema de Justiça, e não pela perfectibilização de uma Justiça transcendente.
[5] A partir de outra perspectiva — em uma crítica tão contundente quanto rica, que parte do dualismo metodológico de Laband e Jellinek —, Lenio Streck questiona esse mesmo problema em texto publicado também na ConJur.
[6] “Abstract concepts are as invisible as a straight line; they are only visible when they are made concrete”. Cf. KIERKEGAARD, Søren. Kierkegaard’s Journals and Notebooks, vol. 2. Editado por Niels Jørgen Cappelorn, Alastair Hannay, David Kangas, Bruce H. Kirmmse, Vanessa Rumble, e K. Brian Söderquist. Princeton: Princeton University Press, 2008, p. 42.
[7] Evidentemente, não se imagina, aqui, ingenuamente, que seja possível conceber um código completo, capaz de conter todas as respostas de forma tal que sejam anteriores até mesmo às perguntas. Bem se sabe que faz parte de qualquer prática jurídica, seja ela pertencente ao civil law ou ao common law, aquilo a que a tradição anglo-saxã (especialmente com Dworkin) chama de hard cases. De todo modo, somente as mais radicais vertentes do realismo jurídico aceita(ria)m uma decisão que não estivesse minimamente vinculada a uma ideia de observância à lógica estruturante do sistema vigente.
[8] Àqueles que desejam compreender melhor o(s) conceito(s) de liberdade, recomendamos (muito) a participação da professora Andrea Faggion no Café Filosófico, na qual a filósofa discorre sobre liberdade, democracia e escolhas.
[9] Sem o ideal do rule of law, não é nada absurdo imaginar um Judiciário hobbesiano, em que não há nada que vincule previamente quais serão as diretrizes daquele que detém a autoridade — que, por isso mesmo, acaba por não estar vinculada às próprias diretrizes.
[10] Para uma reflexão sobre a irrelevância do posicionamento no espectro político para, ainda assim, ver a supremacia judicial com — no mínimo — ressalvas, ver recente coluna de um dos autores deste ensaio.
[11] WALDRON, Jeremy. Refining the question about judges' moral capacity. International Journal of Constitutional Law, vol. 7, n. 1, jan. 2009, pp. 69–82.
[12] «La fin justifie les moyens? Cela est possible. Mais qui justifiera la fin? À cette question, que la pensée historique laisse pendante, la révolte répond: les moyens.» Cf. CAMUS, Albert. L’homme révolté. Paris: Gallimard, 1951, p. 361.
Gilberto Morbach é mestrando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), bacharel em Direito pela Universidade Feevale, membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos e da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro).
Giovanna Dias é graduanda em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.
Revista Consultor Jurídico, 4 de agosto de 2018, 8h00
https://www.conjur.com.br/2018-ago-04/diario-classe-numa-democracia-judiciario-assumir-papel-representativo

Recolhimento e prazos no CPC 2015


Direito de visitar os netos no rompimento de casamento ou união estável


O Código Civil concede aos avós o direito de visitar os netos nos casos de rompimento de casamento ou união estável. Se forem impedidos, caberá ao magistrado fixar as regras para o exercício desse direito, priorizando sempre os interesses da criança ou do adolescente. Acesse o CC e saiba mais sobre o tema: https://goo.gl/iKBuFC #DireitodeVisita #Avós#Netos #DireitoCivil

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Você diz que vai mudar a Constituição; todos nós queremos mudar a sua cabeça

Por 
Há exatos 50 anos, os Beatles apresentavam ao mundo a música Revolution, um sucesso estrondoso que traduzia e fazia reverberar por todas as partes a revolução cultural e política que naquele momento se desenvolvia em diversos países. Lançada oficialmente em agosto de 1968[1], seu impacto abalou as estruturas culturais da época não apenas pelos inovadores riffs de guitarra distorcidos e os vocais rasgados de Lennon e McCartney, mas também pela letra altamente politizada, meticulosamente pensada por John Lennon para representar musicalmente o estado de convulsão social globalmente vivenciado e revoltosamente expressado nos protestos políticos de maio de 1968.
Revolution emite uma mensagem universal — e ainda muito atual. Compreende, por um lado, os anseios humanos por mudança. Por outro, prega o espírito de ação paciente e pacífico (John Lennon a escreveu no período de meditação na Índia)[2] e deixa um eloquente recado de respeito às instituições, sobretudo no trecho em que conclama explicitamente pela preservação da Constituição: “You say you'll change the Constitution; Well, you know; We all want to change your head” (“Você diz que vai mudar a Constituição. Bem, você sabe, todos nós queremos mudar a sua cabeça”). A política por trás de Revolution deveria hoje servir de ensinamento também para o Direito Constitucional.
Cinquenta anos depois, neste ano de 2018, duas Constituições completam aniversário — 30 anos da Constituição do Brasil e 40 anos da Constituição da Espanha — enfrentando o desafio da sobrevivência em meio à circulação, na esfera pública, de vozes cada vez mais convictas no sentido de seu esgotamento como alicerce de unificação e pacificação social e de sua superação como documento normativo orientador da política.
É interessante rememorar que, em 1968, Brasil e Espanha viviam o auge de suas ditaduras. No Brasil, como se sabe, aquele ano ficaria marcado não apenas pela influência globalizante da revolução cultural em curso — como tão bem retratado no famoso livro de Zuenir Ventura[3] —, mas sobretudo pelo acirramento da força do regime ditatorial — a “ditadura escancarada”, como qualificou Elio Gaspari[4] —, cujo ápice está representado pelo Ato Institucional 5, do dia 13 de dezembro. Na Espanha, o regime autoritário do general Franco logo abafou as incipientes manifestações influenciadas pelos protestos estudantis da primavera francesa e deu continuidade ao seu plano desenvolvimentista (el plan de desarrollo). É curioso notar que, naquele ano, o grupo ETA produziu seus primeiros atentados, uma resposta terrorista ao excesso do regime.
A década posterior ao ano de 68 foi decisiva para os espanhóis. Após a morte de Franco, em 1975[5], o rei Juan Carlos assumiu a liderança do país com o difícil desafio de redemocratizar o Estado e pacificar uma sociedade que ainda sentia e vivia os reflexos da profunda divisão causada pela guerra civil de 1936-39. A Constituição da Espanha, de dezembro de 1978, nasceu como fruto de uma transição de regime em que, como qualificou seu maestro político, o então presidente de governo Adolfo Suárez, “fue posible la concordia[6] entre as radicalmente distintas forças e ideologias políticas (de esquerda e de direita), assim como entre as diversas culturas (inclusive suas distintas línguas) coexistentes no território espanhol. O objetivo primordial da denominada “Constitución de la concordia” foi assegurar “la indisoluble unidad de la Nación española, patria común e indivisible de todos los españoles”, garantindo ao mesmo tempo a autonomia dos povos das diversas regiões espanholas[7].
Após 40 anos, e muitos problemas superados — como o terrorismo do grupo ETA —, os recentes e crescentes movimentos políticos separatistas na região da Catalunha, intensificados em grande parte como reflexo da polêmica decisão Tribunal Constitucional espanhol de 2010[8], colocaram sérios desafios para a Constituição de 1978 como base política de unificação de um só povo espanhol, fazendo surgir no debate público as teses defensivas de sua completa superação. De fato, a Espanha passou a lidar nos últimos anos com o abrupto recrudescimento de um dos fatores que contribuem para a estabilidade da democracia, que é a manutenção de uma unidade política em meio ao pluralismo cultural[9], que no caso espanhol, como se sabe, é extremamente acentuado pelas nítidas diversidades regionais. Se a atual questão separatista levar a divisões profundas demais para serem superadas pelos mecanismos constitucionais previstos[10], a atual ordem constitucional espanhola estará em sério risco.
Os 30 anos da Constituição do Brasil de 1988 também têm servido de palco de controvérsias a respeito de sua capacidade para proporcionar o desenvolvimento de todo o potencial da democracia brasileira. A Constituição que permitiu a completa superação do anterior regime ditatorial e fundamentou, por três décadas, a convivência democrática das diversas forças políticas agora se vê fortemente criticada como uma das possíveis causas das graves crises políticas vivenciadas desde 88 — especialmente os impeachments de dois dos quatro presidentes eleitos no período —, sobretudo em razão de ter fornecido as bases para o desenvolvimento muito peculiar do sistema presidencialista (o denominado “presidencialismo de coalizão”).
A Constituição que é denominada de cidadã, por amplamente albergar as reivindicações por direitos fundamentais e inclusão de grupos e minorias, é alvo atual de contestações quanto ao possível excesso de promessas sociais que realizou e que, pelo tamanho das despesas obrigatórias que implica, a tornaria a principal responsável por uma dívida pública incontrolável e pela grave crise financeira que atinge União, estados, municípios e, portanto, afeta o seu próprio sistema federativo.
A Constituição que alicerçou o funcionamento dos poderes estatais e possibilitou o desenvolvimento de modelos minimamente eficazes de checks and balances e de accountability horizontal entre eles, em especial pelo fortalecimento de instituições de fiscalização e de controle (Ministério Público, advocacia pública e Defensoria Pública, tribunais de contas), se encontra confrontada pelas teses que discutem sobre sua real (in)capacidade de conter (para muitos, ela seria a verdadeira influenciadora dos) os cada vez mais alegados fenômenos do “ativismo judicial”, dos “ímpetos autoritários” dos membros da polícia e do Ministério Público, do “excesso” dos órgãos de controle.
Em meio a todas essas vozes, cada vez mais eloquentes, é preciso relembrar que os problemas de um país, especialmente os possíveis déficits democráticos, dificilmente serão resolvidos com a confecção, no calor das circunstâncias, de novos arranjos constitucionais. Uma Constituição, assim como não é a única causa de crises políticas, econômicas e sociais, tampouco pode servir de projeto inovador para a solução dessas crises.
Toda Constituição possui defeitos. Todos os arranjos constitucionais trazem alguma desvantagem política. Como lucidamente constatou Robert Dahl em um de seus principais estudos sobre as democracias contemporâneas: “De um ponto de vista democrático, não existe a Constituição perfeita”[11]. Constituições possuem desenhos e modelos que, em algum momento histórico, poderão favorecer ou não o desenvolvimento das instituições e nortear o caminho para se sair das crises. De todo modo, manter os atuais desenhos institucionais ou modificá-los completamente pode não ter um efeito direto sobre crises se não for acompanhado de práticas políticas que criem condições para a democracia.
A tarefa primordial de uma Constituição democrática é oferecer o fundamento jurídico que estabeleça as balizas para o funcionamento regular dos poderes estatais e que permita o desenvolvimento, em todo o seu potencial, das instituições políticas e das condições favoráveis ao pleno florescimento da democracia: eleições livres, justas e frequentes, liberdade de expressão e amplo acesso à informação, liberdade e autonomia para as associações (partidos, sindicatos, grupos etc.), cidadania inclusiva, com adequada garantia de direitos e proteção das minorias, etc.
Uma breve visão retrospectiva das últimas décadas demonstra que, quanto ao cumprimento desses objetivos essenciais, as Constituições do Brasil e da Espanha foram exitosas. Todas as crises políticas e econômicas foram superadas dentro dos marcos constitucionais. A manutenção dos regimes democráticos nesses países, portanto, não está a depender de mudanças constitucionais totais ou radicais, mas do cultivo permanente de todas aquelas instituições políticas tidas como essenciais para a existência de uma verdadeira democracia.
O fato é que ambos os países podem estar vivendo atualmente em um daqueles pontos de inflexão histórica, no qual devem enfrentar o sério desafio da preservação das democracias que conseguiram construir até o momento com fundamento nas Constituições de 1978 e de 1988. Ambas ainda oferecem as bases jurídicas suficientes para a continuidade do processo de consolidação de suas instituições políticas democráticas. Nos dois casos, requer-se mais prática política democrática do que novos projetos constitucionais.
A objeção a qualquer proposta de substituição completa da Constituição não significa, por outro lado, a inviabilidade de se levar a frente estudos sobre a sua capacidade normativa atual e análises sobre a real necessidade de reformas pontuais em seu texto, com vistas a revigorar periodicamente a sua força normativa. Esse, inclusive, é um conselho dado por Robert Dahl, quando assevera que “não seria má ideia se um país democrático reunisse mais ou menos uma vez a cada 20 anos um grupo de estudiosos, líderes políticos e cidadãos bem informados para avaliar sua Constituição não apenas à luz da experiência, mas também do corpo de conhecimentos em rápida expansão obtidos de outros países democráticos”[12].
No Brasil e na Espanha, 2018 é um ano propício ao desenvolvimento dessas reflexões e estudos aprofundados sobre as suas Constituições, inclusive para a proposição das reformas necessárias e pontuais, seguindo-se sempre os procedimentos previstos nos próprios textos.
Enfim, democracias como Brasil e Espanha não precisam atualmente de novas Constituições, mas da persistência no contínuo processo de construção e consolidação das suas instituições democráticas, sobretudo por meio do cultivo das condições políticas, sociais e econômicas que favorecem o pleno desenvolvimento da democracia. Não há mais espaço para soluções radicais, de tudo ou nada, muito menos revolucionárias.
Nesse aspecto, Robert Dahl bem recorda que, “movido por seu otimismo em relação à Revolução Francesa e à norte-americana, Thomas Jefferson uma vez disse que seria bom haver uma revolução em cada geração”[13]. Porém, como se sabe, “essa ideia romântica foi por terra durante o século XX pelas incontáveis revoluções que falharam trágica ou tristemente — ou, pior, produziram regimes despóticos”.
Os 50 anos de Revolution (neste agosto) nos oferece essa reflexão para os 30 anos da Constituição brasileira (no próximo outubro) e para os 40 anos da Constituição espanhola (em dezembro). E o recado final da música é direto: “Don’t you know it’s gonna be alright... alright... alright...”.


[1] A música Revolution (Lennon-McCartney) foi gravada pelos Beatles em julho e lançada em 26 de agosto de 1968 como Lado B do single Hey Jude/Revolution.
[2] Alguns trechos da música: “Você diz que quer revolução, todos nós queremos mudar o mundo. Você diz que tem a solução real, adoraríamos ver o plano. Você me pede uma contribuição, nós fazemos o que se pode. Mas se você quer dinheiro para pessoas com mentalidade de ódio, tudo que digo é que você irá esperar”. Segundo a revista Rolling Stone, na época do lançamento de Revolution, a revista Time aprovou a crítica da música “aos ativistas radicais do mundo todo”. Em 1980, em entrevista, Lennon comentou: “A letra ainda vale hoje. Ela ainda mostra meu sentimento quanto à política: quero ver o plano... Quero saber o que você vai fazer depois de derrubar tudo. Quero dizer, não dá para aproveitar alguma coisa? Qual o sentido de explodir Wall Street? Se você quer mudar o sistema, mude o sistema. Não adianta nada atirar nas pessoas”. In: The Beatles, as 100 melhores canções. Revista Rolling Stone, edição especial 1, 2011, p. 38.
[3] VENTURA, Zuenir. 1968: o ano que não terminou. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Objetiva; 2018.
[4] GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. Col. Ditadura Vol. 2. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Intrínseca; 2014.
[5] Uma das melhores biografias de Francisco Franco está na obra: PRESTON, Paul. Franco. Caudillo de España. Barcelona: Ed. Random House Mondadori; 2013.
[6] A análise pormenorizada da atuação política engenhosa de Adolfo Suárez na condução da transição para a democracia na Espanha pode ser encontrada na obra: ÓNEGA, Fernando. Puedo prometer y prometo. Mis años con Adolfo Suárez. Barcelona: Ed. Plaza Janés; 2013.
[7] Assim prescreve o artigo 2º da Constituição de 1978: “La Constitución se fundamenta en la indisoluble unidad de la Nación española, patria común e indivisible de todos los españoles, y reconoce y garantiza el derecho a la autonomía de las nacionalidades y regiones que la integran y la solidaridad entre todas ellas”.
[8] Trata-se da decisão do Tribunal Constitucional espanhol no conhecido caso do Estatuto da Cataluña (STC 31/2010, de 28 de junio).
[9] DAHL, Robert. Sobre a democracia. Trad. de Beatriz Sidou. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2001, p. 172.
[10] Sobre os problemas do Estado de autonomias espanhol e propostas de solução, inclusive por meio de reformas constitucionais, vide: MUÑOZ MACHADO, Santiago. Informe sobre España. Repensar el Estado o destruirlo. Barcelona: Ed. Crítica; 2012.
[11] DAHL, Robert. Sobre a democracia. Trad. de Beatriz Sidou. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2001, p. 157.
[12] DAHL, Robert. Sobre a democracia. Trad. de Beatriz Sidou. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2001, p. 158.
[13] DAHL, Robert. Sobre a democracia. Trad. de Beatriz Sidou. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2001, p. 158.
André Rufino do Vale é procurador federal e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Doutor em Direito pela Universidad de Alicante (Espanha) e pela Universidade de Brasília e mestre em Direito pela Universidade de Brasília e em Argumentação Jurídica pela Universidad de Alicante.
Revista Consultor Jurídico, 11 de agosto de 2018, 8h05
https://www.conjur.com.br/2018-ago-11/observatorio-constitucional-voce-mudara-constituicao-queremos-mudar-cabeca

O testamento magistral: uma nova figura criada em Guaxupé (parte 2)

Por 
Em nossa última coluna, analisamos a decisão do juiz Milton Biagioni Furquim, de Guaxupé (MG), pela qual duas netas da falecida testadora, não beneficiadas pelo testamento, foram “tornadas herdeiras” e receberam parte da herança à qual não teriam direito, em nítida afronta à vontade da avó.
A questão narrada pela ConJur é de uma testadora, avó de sete netos, sendo cinco havidos na constância do casamento e duas netas havidas de relação não matrimonial. Os cinco netos foram contemplados pelo testamento, e as duas netas, não. A decisão do juiz então incluiu, como herdeiras, as netas em questão.
Um dos fundamentos da sentença foi a igualdade dos filhos e a clara discriminação da testadora.
2.2. A igualdade dos filhos e a inexistente discriminação
É inegável que o Direito Civil brasileiro passou por um processo de repersonalização e consequente despatrimonialização em que o patrimônio deixa de ser o centro de proteção do ordenamento e a pessoa humana assume o papel de relevo[1]. Se isso era absolutamente significativo no sistema do Código Civil de 1916, que foi atingido por uma ordem constitucional em muito incompatível com seus preceitos (a Constituição de 1988 derrubou pilares históricos do Código Civil de 1916, tais como a desigualdade dos filhos e dos cônjuges), o Código Civil de 2002 já nasce na nova ordem, já vem com seus princípios estampados em seu texto.
A leitura do Código Civil de 2002 pelo filtro da Constituição exige um cuidado grande do intérprete, sob pena de enxergarem-se problemas imaginários, fictícios, criando-se problemas aos outros para tornar sua vida difícil (Elena Ferrante).
A igualdade dos filhos não é nem poderia ser absoluta em termos patrimoniais. Isso porque o Direito das Sucessões, como ramo do Direito Civil, que, por sua vez, faz parte do Direito Privado, é o norteado pela vontade e tem por base a liberdade. É por isso que a sucessão legítima é subsidiária, somente aplicando-se a ordem de vocação hereditária se testamento não houver.
Se é verdade que a liberdade de testar não é absoluta e encontra como grande limite a existência de herdeiros necessários (artigo 1.845 do CC), é também verdade que estamos diante de manifestação de liberdade (autonomia, criação da própria regra é decorrência da liberdade), valor que não é menor nem menos importante.
A decisão não entendeu regra basilar do Direito das Sucessões: o testador tem autonomia plena com relação à parte disponível de seus bens. É por isso que o seu nome é “parte disponível”, pois dela é possível que se disponha, que se transmita, sem necessidade de justificativa ou motivo. É ato de liberdade.
A dita discriminação vislumbrada pelo magistrado denota sua total miopia diante do sistema legal. Se a parte é disponível, eu posso dispor em favor de qualquer pessoa (por exemplo, de meu amigo Zeno Veloso, e não em favor de meu amigo Mauricio Bunazar). Teria eu discriminado Bunazar ao não o contemplar com a parte disponível? Se o sistema permite que eu, respeitando a legítima, deixe toda a parte disponível a um só de meus filhos, qual seria o problema em deixar apenas a um só de meus netos?
Se o raciocínio do magistrado fosse aplicado a todo e qualquer testamento, o resultado seria o fim, a morte da liberdade de testar. Alguns exemplos tornam óbvia a questão:
  • se eu testar a parte disponível em favor de meu filho (sexo masculino) e não de minha filha (sexo feminino), haveria nulidade da deixa por sexismo;
  • se eu testar a parte disponível em favor de meu amigo caucasiano e não de meu amigo negro, haveria nulidade da deixa por racismo;
  • se eu testar a parte disponível em favor de meu amigo heterossexual e não de meu amigo homossexual, haveria nulidade da deixa por homofobia;
  • se eu testar a parte disponível em favor de meu filho maior e não de minha filha menor, haveria nulidade da deixa por sexismo e por desproteger o incapaz.
Na Alemanha, a questão foi decidida pelo Tribunal Constitucional conforme noticia Rodrigo Pontes Araldi por e-mail. Não há discriminação em tratar os filhos de maneira desigual quando se trata da parte disponível. A decisão alemã foi a seguinte:
“Um elemento que caracteriza a garantia do direito sucessório é a liberdade de testar. Ela, assim como o direito fundamental de propriedade e o princípio da autonomia privada, ancorado no Art. 2 Abs. 1 GG, serve à autodeterminação do indivíduo na vida jurídica (cf. BVerfGE 91, 346 <358>; 99, 341 <350>). A liberdade de testar, como elemento integrante da garantia do direito sucessório, abrange o poder de o autor da herança, enquanto em vida, ordenar a transmissão de seu patrimônio a um ou mais herdeiros após a sua morte, divergindo da ordem de sucessão legitima; especialmente excluir um herdeiro legítimo de sua participação na herança e limitá-lo, em termos de valor, à parcela não disponível desta (cf. BVerfGE 58, 377 <398>). Ao autor da herança é, desse modo, concedida a possibilidade de regrar amplamente a sucessão por meio de disposição em razão da morte, segundo os seus desejos e ideias pessoais. (cf. BVerfGE 58, 377 <398>; 99, 341 <350 f.>). Em particular não está o autor da herança obrigado pela Constituição ao tratamento igualitário de seus descendentes (cf. BVerfGE 67, 329 <345>)”[2].
O tortuoso raciocínio conduz à conclusão absurda: se a testadora tivesse deixado a parte disponível para terceiros, problema não haveria no exercício de sua liberdade. Problema surge quando escolhe beneficiar todos os netos decorrentes do casamento e não outros.
De outro lado, tivesse a testadora aquinhoado terceiros, ou apenas um ou dois entre seus tantos netos, nem se poderia cogitar da aplicação da tese da discriminação, pois então a escolha estaria despida da discriminação de que se cogita na espécie. No entanto, tendo havido a disposição testamentária em favor e em benefício de cinco dos sete netos, o princípio constitucional que impede a discriminação dos filhos para todo e qualquer fim, especialmente para fins sucessórios, é proteção que, em relação aos avós, obviamente se estende aos netos, que são filhos dos filhos daquela” (grifou-se).
A proteção constitucional de igualdade, que não existe para a questão patrimonial invocada (parte disponível), passa a ser limitação da liberdade de testar, salvo com relação a terceiros.
A decisão conduz ao seguinte absurdo: poderia a testadora deixar sua fortuna de R$ 35 milhões para o time do Flamengo que nada se poderia reclamar. Poderia, ainda, ter beneficiado apenas um dos netos, que os demais não poderiam reclamar. Contudo, por ter beneficiado os cinco netos que decorrem de relação conjugal, ocorre a discriminação.
Isso nos leva a outro problema técnico, desconhecido pelo magistrado. O motivo, as razões para se celebrar um contrato ou se fazer um testamento são irrelevantes para o sistema. E nem poderia ser diferente. A razão ou motivo, apenas quando declarada como razão determinante do negócio jurídico, é motivo de invalidade por erro (a antiga falsa causa do Código Civil de 1916 e atualmente o falso motivo)[3].
É nesse ponto que a sentença denota um poder sobre-humano do magistrado ao interpretar a vontade da falecida: “O que se indaga, portanto, é se pode ser considerada moral e juridicamente válida disposição testamentária eivada dessa discriminação vedada pela nova ordem constitucional. Isso porque tal disposição testamentária contempla uns netos (no total de cinco), em detrimento de outras (as duas autoras), sabendo-se que a única distinção entre todos eles repousa no fato de que, aqueles, (sic) são fruto do casamento das filhas-mulheres da testadora, enquanto estas, (sic) são fruto de relação não matrimonial havida, pelo único filho-homem da testadora, com duas distintas pessoas”.
Como pode o magistrado afirmar que a vontade da testadora decorre dessa “única distinção”? Convivia o magistrado com a família? Conhecia as relações afetivas e pessoais? E, se as conhecesse, poderia julgar com base nesse conhecimento ou deveria se ater às provas dos autos?
O mesmo magistrado anularia um contrato de compra e venda por discriminação pelo fato de o vendedor ser homem e não mulher, caucasiano ou negro, hétero ou homossexual? Se fosse seguido seu raciocínio, sim, pois os motivos de foro íntimo (não gostar de mulheres, negros ou homossexuais) seriam então relevantes para a análise da validade do negócio jurídico.
3. A conclusão do julgado. Novamente uma falácia lógica
Em conclusão, como houve abuso de direito e discriminação, a sentença inclui as netas não beneficiadas pelo testamento como herdeiras. A questão dogmática, novamente, é ignorada.
Se discriminação houvesse, e não houve, se abuso de direito houvesse, e não houve, se algum vício houvesse, e não houve, reconheceria o juiz a nulidade do testamento, determinando que os bens seguissem a ordem de vocação hereditária em aplicação ao artigo 1788 do CC:
“Morrendo a pessoa sem testamento, transmite a herança aos herdeiros legítimos; o mesmo ocorrerá quanto aos bens que não forem compreendidos no testamento; e subsiste a sucessão legítima se o testamento caducar, ou for julgado nulo”.
Testamento, como negócio jurídico, é expressão da vontade do testador. O magistrado substituiu a testadora e manifestou sua vontade (do juiz) pela vontade do de cujus. Ao incluir duas netas que não seriam herdeiras pelo testamento na qualidade de beneficiárias da herança, a voz do juiz se sobrepôs à voz da testadora. É ele que passa a ser o autor do testamento.
Como lembra Zeno Veloso[4], ao citar Pontes de Miranda[5], Andreas Von Tuhr definiu o testador como a pessoa que os juristas ordinariamente contrariam. Pontes de Miranda acrescenta que “não só o jurista: as gentes do foro, os práticos, os interessados, todo mundo!”.
É isso que se verifica no presente caso. “As gentes do foro” pretendem testar pela testadora.
A decisão teratológica passa a admitir que, no Brasil, o testamento seja conjuntivo, ou seja, feito a quatro mãos pelo testador e pelo magistrado, em momentos sucessivos, é verdade. A vontade do juiz “se soma à vontade do testador” para determinar os destinos dos bens do testador. Guaxupé será lembrada, a partir de hoje, por uma nova modalidade de testamento: o testamento magistral!
O homem não só tem o Direito de testar, mas que ele mesmo é a isso obrigado por um dever geral fundado sobre as leis naturais.”
(Gouvea Pinto, Tratado Regular e Prático de Testamento e Sucessões)


[1] Sobre a repersonalização do direito, ver: FACHIN, Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 92; LÔBO, Paulo Luiz Netto. A repersonalização das famílias. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese, v. 6, n. 24, 2007, p. 151.
[2] A tradução foi feita por Rodrigo Pontes Araldi. Segue o texto original: “BVerfG v. 19.4.2005, 1 BvR 1644/00 (BVerfGE 112, 332): „Ein bestimmendes Element der Erbrechtsgarantie ist die Testierfreiheit. Sie dient ebenso wie das Eigentumsgrundrecht und der in Art. 2 Abs. 1 GG verankerte Grundsatz der Privatautonomie der Selbstbestimmung des Einzelnen im Rechtsleben (vgl. BVerfGE 91, 346 <358>; 99, 341 <350>). Die Testierfreiheit als Bestandteil der Erbrechtsgarantie umfasst die Befugnis des Erblassers, zu Lebzeiten einen von der gesetzlichen Erbfolge abweichenden Übergang seines Vermögens nach seinem Tode an einen oder mehrere Rechtsnachfolger anzuordnen, insbesondere einen gesetzlichen Erben von der Nachlassbeteiligung auszuschließen und wertmäßig auf den gesetzlichen Pflichtteil zu beschränken (vgl. BVerfGE 58, 377 <398>). Dem Erblasser ist hierdurch die Möglichkeit eingeräumt, die Erbfolge selbst durch Verfügung von Todes wegen weitgehend nach seinen persönlichen Wünschen und Vorstellungen zu regeln (vgl. BVerfGE 58, 377 <398>; 99, 341 <350 f.>). Insbesondere ist der Erblasser von Verfassungs wegen nicht zu einer Gleichbehandlung seiner Abkömmlinge gezwungen (vgl. BVerfGE 67, 329 <345>)”.
[3] CC/16: “Art. 90. Só vicia o ato a falsa causa quando expressa como razão determinante ou sob forma de condição”.
CC/2001: “Art. 140. O falso motivo só vicia a declaração de vontade quando expresso como razão determinante”.
[4] Temas de Direito Civil, Editora Jupodivum: São Paulo, 2018, p. 390.
[5] Tratado de Direito Privado. Tomo LVI, § 5725, Rio de Janeiro: Editora Borsoi, 1972.

Bibliografia
FACHIN, Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
LÔBO, Paulo Luiz Netto. A repersonalização das famílias. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese, v. 6, n. 24, 2007.
PONTES DE MIRANDA, F. C. Tratado de Direito Privado. Tomo LVI. Rio de Janeiro: Editora Borsoi, 1972.
TARTUCE, Flávio. Direito Civil, v. 1: Lei de Introdução e Parte geral. 13ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
VELOSO, Zeno. Temas de Direito Civil, Editora Jupodivum: São Paulo, 2018.
José Fernando Simão é advogado, diretor do conselho consultivo do IBDFAM e professor da Universidade de São Paulo e da Escola Paulista de Direito.
Revista Consultor Jurídico, 12 de agosto de 2018, 8h00
https://www.conjur.com.br/2018-ago-12/processo-familiar-testamento-magistral-figura-criada-guaxupe-parte

Vício oculto e o direito do consumidor

Vícios ocultos são defeitos de fabricação que não estão aparentes, podem ser descobertos a qualquer momento da vida útil do produto e geralmente ocorrem quando a garantia chegou ao fim. Mas o consumidor não está desprotegido nesse tipo de situação. 

O Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/1990) prevê expressamente, no artigo 26, § 3º, que, se for um vício oculto, o prazo decadencial tem início no momento em que ficar evidenciado o defeito de fabricação. Dessa forma, se você se deparar com esse tipo de defeito, saiba que o prazo para reclamação é de 30 dias para produtos não duráveis e 90 dias para os produtos duráveis a partir do momento em que o defeito é detectado pelo consumidor.

 Importante! Não se trata de garantia eterna. A lei é clara: quando se constata um defeito de fabricação, mesmo que se manifeste após o fim do período de garantia oferecido pelo fabricante e afastadas as hipóteses de desgaste natural e mau uso, é dever do fornecedor solucionar o problema.
Confira: http://bit.ly/CodigoDoConsumidor

Descrição da imagem #PraCegoVer e#PraTodosVerem: Ilustração de uma pessoa com mexendo no computador. O computador está saindo uma fumaça do lado, dando ideia de que está queimado. Ele está sem entender o que aconteceu. Texto: Vício oculto. Um problema difícil de detectar. Quando um defeito de fabricação é descoberto somente depois que o período de garantia já se encerrou, ainda é possível reclamar junto ao fornecedor para que ele faça o conserto ou a substituição do produto. Art. 26, § 3° do Código de Defesa do Consumidor. CNJ


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