terça-feira, 24 de novembro de 2015

O estranho caso do inimputável capaz - Parte III

por Vitor Frederico Kümpel
O artigo foi escrito em coautoria com Thales Ferri e Bruno de Ávila Borgarelli
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Vimos no último artigo que um dos elementos da culpabilidade é a imputabilidade, que pode ser definida como a possibilidade do sujeito entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento1. Em relação aos sujeitos com doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, o Código Penal adotou o critério biopsicológico, segundo o qual a verificação da imputabilidade do sujeito deve levar em conta duas condições: previsão legal da causa de exclusão e se no momento da ação ou omissão criminosa o sujeito possuía ou não a plena capacidade de entender e de querer2; neste sentido dispõe o art. 26, "caput", do Código Penal: "É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento".
Já o parágrafo único do mesmo dispositivo cuida dos semi-imputáveis, ou seja, aqueles que por perturbação da saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não são inteiramente capazes de entenderem o caráter ilícito do fato ou de se determinarem de acordo com esse entendimento. Aos inimputáveis deve ser aplicada medida de segurança (absolvição imprópria), enquanto aos semi-imputáveis poderá ser imposta medida de segurança ou pena reduzida, sendo vedada a aplicação cumulativa de pena e medida de segurança, por força da adoção do sistema vicariante (CP, arts. 97 e 98).
Pressuposto para o reconhecimento da inimputabilidade e imposição de medida de segurança é que o sujeito tenha praticado um fato típico e antijurídico, pois, caso contrário, deverá ser absolvido plenamente (absolvição própria). A imposição de medida de segurança, ao contrário da pena, não leva em conta a culpabilidade do sujeito, justamente porque não se pode fazer um juízo de reprovação – ou de censura – sobre o inimputável, por lhe faltar cognoscibilidade para entender a ilicitude de sua conduta; faz-se, pois, um juízo de periculosidade, que é avaliação da potência do indivíduo para converter-se em causa de ações ou omissões lesivas, exame que determinará a medida de segurança aplicável e sua duração (prognose), nos termos dos arts. 96 e 97 do Código Penal.
Pois bem. Até o advento da lei 13.146/15 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), com vigência a partir do dia 3 de janeiro de 2016 (art. 127), havia uma plena harmonia em nosso sistema jurídico. Isso porque o Código Penal reconhece que o sujeito que possui doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado não tem condições de entender a ilicitude de qualquer ação ou omissão de natureza criminosa, desde que, no momento do delito, esteja acometido de tal perturbação, faltando-lhe, portanto, cognoscibilidade, o que afasta sua culpabilidade e inviabiliza a imposição de pena, que deverá ser substituída por medida de segurança.
Na mesma esteira, o art. 3º do Código Civil inclui entre os absolutamente incapazes "aqueles que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil" (inciso II), bem como "que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade" (inciso III), enquanto o art. 166, inciso I do mesmo diploma fulmina de nulidade absoluta o negócio jurídico celebrado pelo absolutamente incapaz que não esteja representado por seu curador. Já o art. 4º, incisos II e III, do Código Civil elenca entre os relativamente incapazes "os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por enfermidade mental, tenham o discernimento reduzido", bem como "os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo", sendo que o art. 171, inciso I confere a possibilidade de anulação do negócio jurídico celebrado pelo relativamente incapaz não assistido.
Portanto, a lei civil, assim como a penal, reconhece a falta de cognoscibilidade e autodeterminação do sujeito acometido por enfermidade ou doença mental: a primeira, no que se refere aos negócios jurídicos, e a segunda, em relação aos crimes e contravenções penais. Embora os arts. 3º e 4º do Código Civil, e 26, "caput", do Código Penal não utilizem exatamente as mesmas expressões para se referirem aos sujeitos que buscam proteger, certo é que, genericamente, ambos dizem respeito às pessoas com deficiência ou enfermidade.
De acordo com a clássica tipologia dos criminosos proposta por Enrico Ferri, o inimputável por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado pode ser incluído os "delinquentes loucos", ou seja, aqueles levados ao crime não apenas em razão da enfermidade mental, mas também "pela atrofia do senso moral"3, muito embora o mesmo autor reconheça que qualquer criminoso "é sempre um anormal"4; entre os doentes mentais podemos citar os psicopatas, esquizofrênicos, paranóicos e portadores de paralisia cerebral, enquanto Nélson Hungria inclui entre os sujeitos com desenvolvimento mental incompleto ou retardado os oligofrênicos (idiotas, imbecis e débeis mentais) e os surdos mudos que não se comunicam5. Tais sujeitos merecem especial proteção e tratamento diferenciado pelo Estado, seja no âmbito civil, seja no penal.
Não obstante, o novo Estatuto terminou por desproteger justamente as pessoas que deveria resguardar, ao praticamente extinguir o sistema de proteção dos incapazes previsto no Código Civil; como já afirmado neste mesmo espaço, a nova lei inclui os incapazes no grupo dos capazes, porém "os inclui para desprotegê-los e abandoná-los a sua própria sorte"6. Mas o que causa maior perplexidade é o fato da nova lei romper a harmonia até então existente entre o Direito Civil e Penal, de modo que, a partir da derrogação dos arts. 3º e 4º do Código Civil, teremos o seguinte quadro, no que se refere às pessoas com deficiência:
a)Para fins penais, aplica-se o art. 26, "caput", do Código Penal, que reconhece a inimputabilidade do sujeito que, por doença mental ou desenvolvimento incompleto ou retardado, é inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento; portanto, qualquer que seja o delito praticado por esse sujeito, desde os mais brutais, v.g., homicídio, latrocínio ou estupro, até os mais sofisticados, e.g., estelionato, apropriação indébita e falsidade ideológica, a lei o isentará de pena, cabendo ao magistrado lhe impor medida de segurança, conforme sua periculosidade;
b)Para fins civis, aplicam-se os novos arts. 3º e 4º do Código Civil, com vigência a partir de 3 de janeiro de 2016 (art. 127 da lei 13.146/15), e as demais disposições do Estatuto, que reconhecem a validade de qualquer negócio jurídico celebrado pela pessoa com deficiência, desde os mais simples, como uma compra e venda de bem móvel, até os mais complexos, como a aquisição de um automóvel por contrato de “leasing” mediante alienação fiduciária em garantia, muito embora o art. 84, parágrafo 1º, do novo Estatuto disponha que "quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela, conforme a lei", apesar de não ser incapaz.
Com efeito, o novo diploma "criou" um sujeito muito estranho, que desconhece a caráter ilícito de um crime de homicídio, latrocínio, estupro, enfim, de toda gama de delitos existentes no arcabouço jurídico-penal, mas, por outro lado, entende perfeitamente a natureza de qualquer negócio jurídico, desde os mais corriqueiros e que não exigem profundo conhecimento sobre o seu conteúdo, como a aquisição de um bem móvel pela ocupação (CC, art. 1.263), até os contratos mais complexos e sofisticados, como os de "Factoring" e "time sharing", não tendo problemas, ainda, para se casar e conhecer todas as implicações do regime de bens que eleger.
Por fim, há uma importante questão relacionada às sentenças de absolvição imprópria, que impõem medida de segurança. Poderia o juiz penal, considerando a total "capacidade do inimputável" no âmbito civil, estabelecida pela canhestra lei 13.146/15, impor na sentença a obrigação de reparar o dano, fixando o valor mínimo da indenização devida à vítima, com fundamento no art. 387, inciso IV, do Código de Processo Penal, que adotou o sistema da solidariedade7? Suponha-se que Tício, inimputável por deficiência mental, efetue disparos de arma de fogo contra Caio, ferindo-o, não consumando o delito por circunstâncias alheias à sua vontade; submetido a processo por tentativa de homicídio, é absolvido sumariamente ao final do "judicium accusationis", impondo-se medida de segurança em razão da tese de inimputabilidade ser a única da Defesa, nos termos da lei 11.689/08, que alterou o art. 415 do Código de Processo Penal8. Segundo o Estatuto da Pessoa com Deficiência, Tício possui plena capacidade para compreender o ato ilícito que praticou, apesar de, estranhamente, não entender a ilicitude desse mesmo fato na esfera penal.
Parece-nos que a resposta a esta indagação só pode ser negativa. Apesar da melhor doutrina reconhecer a natureza condenatória da sentença que impõe medida de segurança, adquirindo esta, na lição de Frederico Marques, "as qualidades de título penal executório"9, ao juiz penal deve ser vedado estabelecer o valor mínimo para a reparação do dano causado pelo delito em tal hipótese, ainda que se cuide de absolvição imprópria, sob pena de analogia "in malam partem"; vale lembrar que a própria isenção de pena ao inimputável está prevista no artigo anterior, que trata das hipóteses de absolvição (CPP, art. 386, VI)10. No entanto, de acordo com o novo Estatuto, poderá a vítima acionar diretamente o seu algoz, inimputável, porém estranhamente capaz, na esfera civil, não se aplicando a responsabilidade subsidiária e mitigada prevista no art. 928, “caput” e parágrafo único, do Código Civil11, o que revela o total descompasso entre as consequências civis e penais provenientes de um mesmo fato gerador.
Em suma, o Estatuto da Pessoa com Deficiência rompeu a harmonia até então existente entre o Direito Civil e Penal, dificultando assim uma compreensão interdisciplinar do fenômeno jurídico em questão, e, mais do que isso, desamparando justamente as pessoas que pretendia proteger, ao alterar um sistema protetivo eficaz e que não necessitava de reparos.
Referências Bibliográficas
DEMERCIAN, Pedro Henrique; MALULY, Jorge Assaf. Curso de Processo Penal. 9 ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
FERRI, Enrico. Princípios de Direito Criminal: o criminoso e o crime. Trad. de Luiz de Lemos D’Oliveira. São Paulo: Livraria Acadêmica Saraiva e C., 1931.
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal: Arts. 11 a 27. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958, v. 1, Tomo 2.
MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. 1 ed. 2ª tiragem. Campinas: Bookseller, 1998, v. 3.
RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 18 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
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1 Nélson Hungria sabiamente adverte que "segundo um critério tradicional, que o Código rejeitou, haveria que distinguir entre responsabilidade e imputabilidade, significando esta a capacidade de direito penal ou abstrata condição psíquica da punibilidade, enquanto aquela designaria a obrigação de responder penalmente in concreto ou de sofrer a pena por um fato determinado, pressuposta a imputabilidade. A distinção é bizantina e inútil. Responsabilidade e imputabilidade representam conceitos que de tal modo se entrosam, que são equivalentes, podendo, com idêntico sentido, ser consideradas in abstracto ou in concreto, a priori ou a posteriori" (Comentários ao Código Penal: Arts. 11 a 27. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958, v. 1, Tomo 2, p. 320-321).
2 Sobre o tema, oportuna a lição de Nélson Hungria: "O método biopsicológico exige a averiguação da efetiva existência de um nexo de causalidade entre o anômalo estado mental e o crime praticado, isto é, que êsse estado, contemporâneo à conduta, tenha privado completamente o agente de qualquer das mencionadas capacidades psicológicas (quer a intelectiva, quer a volitiva)" (op. cit., p. 324-325).
3 Princípios de Direito Criminal: o criminoso e o crime. Trad. de Luiz de Lemos D'Oliveira. São Paulo: Livraria Acadêmica Saraiva e C., 1931, p. 258-259. As chamadas "categorias antropológicas de delinquentes", segundo o mesmo autor, são: delinquente nato, louco, habitual, ocasional e passional" (p. 256-264).
4 Ibid., p. 251.
5 Op. cit., p. 336.
6 KÜMPEL, Vitor Frederico; BORGARELI, Bruno de Ávila. As aberrações da Lei 13.146/2015.
7 Sobre o sistema da solidariedade: RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 18 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 592. A respeito da retroatividade do referido dispositivo, confira-se: DEMERCIAN, Pedro Henrique; MALULY, Jorge Assaf. Curso de Processo Penal. 9 ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 597.
8 Dispõe o art. 415 do Código de Processo Penal: “O juiz, fundamentadamente, absolverá desde logo o acusado quando:
I- provada a inexistência do fato;
II- provado não ser ele autor ou partícipe do fato;
III- o fato não constituir infração penal;
IV- demonstrada causa de isenção de pena ou de exclusão do crime.
Parágrafo único. Não se aplica o disposto no inciso IV do caput deste artigo ao caso de inimputabilidade prevista no caput do art. 26 do Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, salvo quando esta for a única tese defensiva".
9 Elementos de Direito Processual Penal. 1 ed. 2ª tiragem. Campinas: Bookseller, 1998, v. 3, p. 43.
10 O art. 386 do Código de Processo Penal assim dispõe: "O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça:
(…)
VI – existirem circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena (arts. 20, 21, 22, 23,26 e § 1º do art. 28, todos do Código Penal), ou mesmo se houver fundada dúvida sobre sua existência".

11 No mesmo sentido: RIBEIRO, Moacyr Petrocelli de Ávila. Estatuto da Pessoa com Deficiência: A revisão da teoria das incapacidades e os reflexos jurídicos na ótica do notário e do registrador. Acesso em 28.08.2015. Dispõe o art. 928 do Código Civil: "O incapaz responde pelos prejuízos que causar, se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios suficientes. Parágrafo único. A indenização prevista neste artigo, que deverá ser equitativa, não terá lugar se privar do necessário o incapaz ou as pessoas que dele dependem".
http://www.migalhas.com.br/Registralhas/98,MI230397,61044-O+estranho+caso+do+inimputavel+capaz+Parte+III

Ação de consignação em pagamento no novo CPC

Jorge Amaury Maia Nunes
Nos dias atuais, não são raras as situações em que o devedor se vê compelido a procurar meios de saldar dívidas, por resistência de qualquer natureza apresentada pelo credor. Quando por motivo outro não seja, pelo fato de que o devedor supostamente inadimplente corre o sério e muito provável risco de ver seu nome inscrito em um dos diversos cadastros de maus pagadores que pululam em nossa terra.
A existimatio do cidadão, i.e., a sua reputação é, hoje, condição necessária (porém, não suficiente) para obtenção de crédito e, às vezes, até para firmar contratos onerosos, fato que impõe a todos o zelo com o próprio nome. Nesse espaço, opera a consignação em pagamento, instituto do Direito Civil, pertinente ao adimplemento e extinção das obrigações, por meio do qual é considerado pagamento e extingue a obrigação, o depósito judicial ou em estabelecimento bancário da coisa devida, nos casos e forma legais (art. 334 do Código Civil).
A ação de consignação em pagamento é procedimento especial que visa a permitir a realização daquele instituto de direito material, por meio do qual o autor da ação, se procedente o pedido, obterá uma sentença declaratória da extinção da obrigação que foi cumprida. Observe-se que o Código Civil cuida de (i) depósito judicial; ou (ii) depósito em estabelecimento bancário da coisa devida. Já o anterior Código Civil, de 1916, cuidava apenas e tão somente de “depósito judicial da coisa devida” (art. 972), sem nenhuma alusão a depósito em estabelecimento bancário.
Essa alusão a depósito bancário como forma de consignação em pagamento surgiu, primeiramente, não em uma lei civil, mas sim, de forma heterotópica, em uma lei processual, a lei 8.951, de 13/12/1994, que alterou o CPC de 1973, e nele inseriu este comando: "
Art. 890...
§ 1º Tratando-se de obrigação em dinheiro, poderá o devedor ou terceiro optar pelo depósito da quantia devida, em estabelecimento bancário oficial, onde houver, situado no lugar do pagamento, em conta com correção monetária, cientificando-se o credor por carta com aviso de recepção, assinado o prazo de dez dias para a manifestação de recusa.
Cabe lembrar que essa lei e mais outras três leis processuais1, da mesma data, são originárias de projetos apresentados pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual e pela Escola Nacional da Magistratura e passaram praticamente sem emendas no Congresso Nacional. Nelas foi aproveitado, e muito, o conteúdo do Anteprojeto de Modificação do Código de Processo Civil, elaborado por uma comissão de eméritos processualistas, composta por LUÍS ANTÔNIO DE ANDRADE, JOSÉ JOAQUIM CALMON DE PASSOS, KAZUO WATANABE, JOAQUIM CORREIA DE CARVALHO JÚNIOR e SÉRGIO BERMUDES, publicado em Suplemento ao DOU de 24.12.852. Aí se encontra a fonte da inserção do depósito bancário como forma de consignação extintiva da obrigação.
CPC/15 cuidou da matéria no art. 539/549 e trouxe algumas modificações de natureza cosmética, cabendo fazer o mesmo comentário que se fez quando veio a lume a lei 8.951/94: sendo um Código de Processo Civil, que traça regras de composição jurisdicional de conflitos ou de prestação de tutela jurídica em processos necessários, resolveu o legislador nele inserir regras extraprocessuais de solução de controvérsias. Dir-se-ia melhor, regras de direito material de exoneração de obrigações pecuniárias.
Observe-se que o caput do artigo 539, tal como ocorria no caput do art. 890 do CPC/1973, cuida de consignação, com efeito de pagamento, de quantia ou coisa devida. Os parágrafos nele inseridos, entretanto, somente cuidam de consignação quando se tratar de obrigação pecuniária (mas não da consignação de coisa, que somente é regulada a partir do art. 543). Se se tratar de obrigação desse jaez, poderá o devedor (ou terceiro que pretenda efetuar o pagamento em seu lugar, presentes as regras do artigo 335 e seguintes do Código Civil Brasileiro) optar pelo depósito da quantia devida em estabelecimento bancário, oficial onde houver, situado no lugar do pagamento, cientificando-se o credor por carta com AR, fixando-lhe o prazo de 10 dias para a manifestação da recusa.
É bem verdade que não incumbe ao legislador a preocupação com academicismos, cabendo-lhe apenas regrar os fatos da vida de modo a prevenir e solucionar conflitos sociais. À doutrina é que se impõe descobrir a natureza jurídica das figuras concebidas pelo legislador. Conceda-se, porém, que esse mister às vezes é dos mais ingratos.
Esse depósito bancário firmado pelo devedor, em favor do credor, em estabelecimento bancário oficial, é um exemplo disso. Uma espécie de centauro do Direito. Se visto sob a ótica do devedor, depositante, é depósito voluntário; se visto sob ótica do estabelecimento bancário oficial (que não é parte em qualquer testilha), é depósito necessário, legal, porquanto o legislador não deferiu ao estabelecimento bancário o direito de recusar-se a recebê-lo. Ao revés, a Resolução nº 2814, do Conselho Monetário Nacional deixou claro que é obrigatório, para os bancos oficiais, receber depósitos dessa natureza.
É depósito feito em conta aberta para esse fim (o devedor deverá indicar expressamente, na efetivação do depósito, qual o fim a que se destina, que obrigação objetiva extinguir), mas não esclarece o legislador quem é o titular da conta, se o depositante ou o beneficiário. A Resolução do CMN supre essa deficiência ao dispor:
Art. 3º Acolhido o depósito de consignação em pagamento, este fica à exclusiva disposição:
I - do credor, caso não seja recebida, pela instituição financeira, a recusa formal referida no art. 4º, parágrafo único, inciso II, alínea "a";
II - do depositante, após recebida, pela instituição financeira, a recusa formal referida no inciso anterior;
III - do juízo competente, após proposta a ação de consignação em pagamento referida no art. 6º, prevista pela legislação em vigor.
Por outro lado, cabe enfatizar que as regras estabelecidas nos parágrafos do art. 539, relativas ao depósito em instituição financeira concernem ao direito material e constituem uma opção do credor. Não se trata, pois, sequer daquilo a que sói a doutrina apelidar de condições de procedibilidade, até porque essas regras só têm possibilidade de incidir se no local houver estabelecimento bancário oficial. Se não, não poderá o devedor valer-se desse meio extrajudicialde exoneração de obrigação pecuniária.
O § 1º do art. 890 do Código de 1973 cuidava de em depósito em conta com correção monetária. Não se trata de conta de poupança que, além da correção monetária, prevê o pagamento de juros remuneratórios. o que não está previsto nesse parágrafo. De outra parte, os depósitos à vista nas instituições financeiras não são corrigidos monetariamente. Criou, assim, o legislador um brutal problema para as instituições financeiras oficiais e outro para o País: no momento em que todas as leis econômicas buscavam a desindexação de toda espécie de obrigação pecuniária, o legislador processual, na contramão da história — ou dotado de poderes premonitórios indicadores de futuro econômico nada alvissareiro —, impunham correção monetária como que lançando uma "moção de desconfiança aos planos econômicos de fins do século passado. O novo Código eliminou a referência à correção monetária e remediou a questão.
O credor é comunicado da realização do depósito, por carta, com aviso de recepção. Diz a lei cientificando-se o credor. Seria lícito perguntar: Quem cientifica, o devedor ou o banco depositário? Tenha-se em mente que o estabelecimento bancário não é sequer partícipe da relação obrigacional. Repugna o entendimento de impor-lhe graciosamente esse encargo. A resolução do CMN resolveu a questão, afirmando que o banco será o responsável pela cientificação, mas será ressarcido pelo depositante.
Se o credor não manifestar a recusa ao estabelecimento bancário, no prazo decendial que a lei lhe concede, reputar-se-á o devedor liberado da obrigação, ficando à disposição do credor a quantia depositada.
Pode ocorrer, entretanto, que o credor não manifeste a recusa, não proceda ao levantamento do depósito e promova a competente ação de conhecimento ou de execução, conforme o título de que disponha. Nessas circunstâncias, competirá ao agora devedor/executado arguir, dentre outras defesas que tiver, a existência de fato extintivo do direito do autor, procedendo-se na forma do art. 350 do CPC, cabendo ao autor manifestar-se sobre o alegado depósito. É claro, isso é cabível se se tratar de ação de conhecimento. Se o credor aforar ação de execução, a matéria poderá ser discutida, pelo consignante, em objeção de pré-executividade ou em embargos.
Ainda em caso de recusa de recebimento do depósito, reza a lei que o devedor ou o terceiro poderá propor, dentro de um mês a ação de consignação, instruída a inicial com a prova do depósito e da recusa.
Quanto à natureza desse prazo certamente que dúvidas surgirão. Preclusão, prescrição ou decadência? Preclusão é fenômeno eminentemente endoprocessual e, até esse momento, não terá havido a instauração da relação processual. De prescrição não parece tratar-se porque, ainda que não aforada no prazo de trinta dias, continua o devedor com o direito de propor a ação (recorde-se que o parágrafo 1º cuidade uma opção do devedor, o que não se compadece com o instituto da prescrição, de evidente força cogente).
A nosso ver, trata-se de prazo decadencial do direito de realizar eficazmente a oferta pela via prevista no art. 539. Parece claro que, tendo havido a recusa e não tendo ocorrido a propositura da ação no prazo de 30 dias o que ocorre é que a presunção de que a oferta foi realizada desaparece (parece induvidoso que o depósito da soma devida configura oferta real). Passa a haver necessidade de demonstrar a mora accipiendi.
Nem o depósito nem a consignatória, é bom que seja recordado, inibem a propositura da competente ação de execução, se o credor dispuser de título executivo, em face da norma contida no § 1º do art. 784 do CPC/15.
Na inicial, agora, além dos requisitos do art. 319 do CPC que sejam aplicáveis à espécie, o autor requererá o depósito da quantia ou coisa devida (que deve ser realizado no prazo de cinco dias contados do deferimento, sob pena de extinção do processo sem resolução de mérito) ressalvada a hipótese do § 3º do artigo 539, em que o autor já terá depositado a importância em conta bancária, à disposição do credor. Nessa circunstância, a inicial já deverá vir acompanhada da prova do depósito e da recusa, fornecida pela instituição financeira; deverá requerer, também, a citação do réu para levantar o depósito ou oferecer contestação.
Quanto ao prazo para oferecer resposta, é bom observar que, à falta de regra específica, será o comum, de 15 dias. Na resposta, poderá alegar que: (i) não houve recusa ou mora em receber a quantia ou coisa devida; (ii) foi justa a recusa; (iii) o depósito não se efetuou no prazo ou no lugar do pagamento; e (iv) o depósito não foi integral.
No parágrafo único do artigo 544, merece especial atenção o fato de que o réu tem de indicar montante que entende devido, isto se sua contestação arguir que o depósito não foi integral. Casa-se a regra com a do art. 545 que permite ao autor complementar o depósito que tenha sido feito a menor.
O § 1º do art. 545 contém regra que deve ser entendida cum grano salis: o levantamento do depósito feito a menor só é possível se a defesa do credor se fundar exclusivamente nessa circunstância ou em defesas processuais de caráter meramente dilatório. Se se tratar de outras defesas de conteúdo material ou processual de caráter peremptório, cumuladas com insuficiência do depósito, que possam conduzir à total improcedência do pedido, não é de ser deferido o levantamento.
A regra do § 2º, na hipótese que regula, transforma a ação de consignação em pagamento numa espécie de actio duplex. De fato, é de comum ensinança que as sentenças que dão pela improcedência do pedido são declaratórias negativas. Negam a pretensão do autor e não atribuem qualquer direito ao réu (ressalvada a condenação na verba honorária, ressarcimento de despesas com o processo e condenação em litigância de má-fé).
No artigo sob exame, a ser seguida a mencionada regra geral, se insuficiente o depósito para exonerar o consignante da obrigação, seria de dar-se simplesmente pela improcedência do pedido. O legislador, nesse caso, inverte os pólos da relação e transforma o réu em autor (sem pedido, mas com pretensão condenatória). A parte inicia o processo na qualidade de ré e termina como detentora de um título executivo judicial que é fruto do exame e decisão sobre uma relação jurídica de direito material.
Especial hipótese de consignação ocorre quando o devedor tem dúvida sobre a quem deva pagar. Nessa circunstância, deverá proceder ao depósito e requerer a citação de todos os possíveis titulares do crédito para que venham a juízo demonstrar sua legitimação. Independentemente de quantos acorram ao chamado citatório, se não houver discussão quanto ao valor do depósito, o juiz deverá (i) declarar satisfeita a obrigação e o processo continuará apenas entre os supostos credores, se houver mais de um; ou (ii) determinar a entrega do valor depositado ao réu, se apenas um comparecer. Não comparecendo pretendente algum, o depósito realizado é convertido em arrecadação de coisa vaga, com regência parca no art. 746 do CPC/15, mas que sugere uma recompensa ao inventor (aquele que achou a coisa) e a entrega do saldo à União, ao Estado ou ao Distrito Federal.
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1 Lei 8.950 (recursos), Lei 8.951 (consignação em pagamento e usucapião), Lei 8.952 (processo de conhecimento e processo cautelar), Lei 8.953 (processo de execução),de 13 de dezembro de 1994, Lei 9.028 (capacidade postulatória da AGU) de 12 de abril de 1995, Lei 9.079 (ação monitória) de 14.07.95, Lei 9.139 (recurso de agravo) de 30.11.95 e Lei 9.245 (procedimento sumário) de 26.12.95.

2 Servimo-nos da publicação do Anteprojeto feita na Revista de Processo nº 43, jul/set 1986.
http://www.migalhas.com.br/ProcessoeProcedimento/106,MI230452,21048-Acao+de+consignacao+em+pagamento+no+novo+CPC