Não é apanágio da mídia ser ambivalente. Praticamente todas as coisas
são dotadas de alguma ambivalência. No entanto, chama-se a atenção para
este seu aspecto no que diz respeito à Democracia, sua construção e,
mais importante, sua manutenção.
Os diversos recursos midiáticos (imprensa em suas várias vertentes,
televisão, teatro, internet, redes sociais, rádio etc.) podem ser e são
veículos excelentes para a promoção do debate democrático e para a
disseminação de mensagens positivas. Não obstante, também podem
facilmente descambar para o lado oposto, defendendo ideologias
antidemocráticas, insuflando anarquia e, mais intensamente ainda,
contribuindo para a fixação de um pensamento único de interesse de dado
setor social ou da própria mídia. Aqui também entra em jogo a questão do
poder financeiro que se impõe nos meios midiáticos, seja no que diz
respeito à posse desses meios, seja em seu financiamento, sua mantença
em viabilidade econômica, que se dá pela publicidade, e então a
do poder financeiro se amplia sobremaneira. Muitos, para não dizer a grande esmagadora maioria dos
são reféns do poder financeiro privado e/ou público. Nos grandes
centros as propagandas dos governos centrais e suas agências, bem como
das grandes empresas e conglomerados econômicos são capazes de ditar
tranquilamente os rumos da mídia. Nas pequenas cidades interioranas a
situação é ainda pior, principalmente sob o prisma público. Pequenos
jornais impressos ou programas radiofônicos, por exemplo, vivem
praticamente de financiamentos públicos da municipalidade executiva ou
do Poder Legislativo municipal. O dano à real atuação da mídia em prol
de uma Democracia nessa conjuntura é mais que evidente.
Além disso, surge a tormentosa questão da Liberdade de Expressão que
invariavelmente conduz àquela bifurcação entre dois extremos: a
ilimitação dessa liberdade e seus efeitos destrutivos para a Democracia e
a limitação exagerada, o controle milimétrico ou domínio que mata a
referida liberdade e, juntamente com ela, a Democracia.
O episódio referente ao pasquim francês “
Charlie Hebdo”
em que cartunistas e funcionários foram massacrados por terroristas
muçulmanos em represália a charges consideradas desrespeitosas às
crenças islâmicas é extremamente paradigmático. É paradigmático em
vários aspectos. Releva abordar alguns deles:
Um primeiro viés é a questão da força midiática que um acontecimento
pode adquirir, tornando-se uma verdadeira febre, mas também, como toda
febre, passageira, sempre que não mate o doente. Um pasquim sem qualquer
representatividade considerável, do dia para a noite se transforma em
um símbolo e em uma causa global. Suas tiragens sobem de alguns milhares
de exemplares para milhões, mesmo assim esgotando-se logo na primeira
parte da manhã do lançamento. É a força da mídia que, como já dito
anteriormente, pode ser uma arma para a Democracia ou sua destruição. Ao
mesmo tempo essa força midiática demonstra uma sua fraqueza inerente à
fluidez do mundo contemporâneo. Da mesma forma que o episódio ganhou o
mundo, repentinamente desaparece sem deixar vestígios e certamente suas
tiragens não seguirão com milhões de exemplares por um tempo largo.
Usando uma imagem, a mídia é hoje como um prato largo e raso, é marcada
por uma dimensão de propagação enorme, mas extremamente superficial.
Também é exemplar quanto à ignorância e à absoluta impossibilidade de
compreensão das ações terroristas onde pessoas são mortas e outras fazem
questão de se matar em nome das mais diversas crenças de natureza
religiosa, ideológica, política etc. A absurdidade dessas atuações não
merece sequer maiores comentários. Trata-se daquilo que é notório.
O que resta é mesmo a discussão acerca da amplitude e adequação da
Liberdade de Expressão na mídia. Retomar a questão dos limites da
liberdade que são a ela inerentes ao ponto de que, ao serem removidos,
simplesmente se causa a derrocada da própria liberdade, seja ela de
expressão ou outra qualquer.
Mais uma vez o caso “Charlie Hebdo” é exemplar porque demonstrou como a
mídia tem o poder de apresentar um fato sob um único ângulo, criando
uma polarização entre bem e mal de viés maniqueísta e erigindo vítimas
“inocentes”, quando a inocência é algo muito raro de se encontrar na
humanidade ao longo da história e, consequentemente, na
contemporaneidade.
Neste ponto é preciso frisar e deixar muito, muito claro que não se
está afirmando (mesmo porque seria o absurdo dos absurdos) que há entre
cartunistas e terroristas uma relação vitimaria recíproca. Não.
Terroristas assassinos não passam disso. Terroristas assassinos e nada
mais. Não são vítimas de coisa alguma, a não ser de sua própria
consciência deturpada e enlouquecida. Certamente sejam vítimas de uma
doutrinação fanática, mas mesmo neste ponto há sempre uma escolha
inicial e continuada pela qual as pessoas devem responder. É exatamente
contra a irresponsabilidade em todas as suas vertentes que este texto se
levanta com maior vigor, como se poderá facilmente perceber.
O ponto fulcral a respeito da divulgação unilateral do acontecimento em
destaque não está em afirmar que os atos terroristas e o homicídio
possam, de alguma forma, ser compreensíveis, justificáveis ou mesmo
resultado de uma
vítima provocadora – categoria conhecida nos
estudos vitimodogmáticos da vitimologia. Conforme esclarece Oliveira, a
vitimodogmática se dedica no momento atual à perquirição da atuação
contributiva da vítima para o evento criminoso. Assim também pesquisa as
consequências que a contribuição vitimal deve ter quando do
estabelecimento da pena ao infrator, o que pode variar de uma absoluta
isenção até uma pequena atenuação.
[2]
A “vítima provocadora”, segundo a reconhecida classificação de Benjamin
Mendelsohn, é também conhecida como “voluntária ou imprudente” porque
“colabora com os fins pretendidos ou alcançados pelo delinquente”.
[3]
Por óbvio a reação terrorista assassina não guarda de forma alguma
proporção com eventual ofensa sentida devido às charges do pasquim.
Sequer imaginar que possa haver a eventualidade de uma espécie de
atenuação, por mínima que seja, para a punição de atos que tais (acaso
os terroristas estivessem vivos) é totalmente indefensável. Não se trata
disso de forma alguma.
Quanto se fala na unilateralidade e no maniqueísmo da divulgação
midiática do episódio e de sua recepção acrítica pela maioria das
pessoas, não se está fazendo referência ao caso pretendendo uma relação
entre as duas condutas (dos terroristas e dos cartunistas). Na verdade,
estas devem ser analisadas separadamente. Quanto aos terroristas
sicários, como já mencionado, a condenação de seus atos deve ser
veemente e irredutível. No entanto, isso não tem o condão de tornar a
atitude dos cartunistas e do pasquim algo aceitável e moralmente
irrepreensível como uma manifestação da alardeada Liberdade de Expressão
sem limites. Como já visto, essa liberdade sem limites, seja a de
expressão ou qualquer outra, corresponde à negação da própria liberdade
e, consequentemente, dos ideais democráticos. A ocorrência do ataque é
um exemplo trágico de como a exacerbação de uma liberdade pode, ainda
que de forma totalmente injustificável, gerar uma reação exacerbada,
tresloucada, insana mesmo de outro lado. Não seria melhor, prevenir do
que fazer protestos ulteriores com uma fila de cadáveres às costas?
Acreditar num mundo em que as pessoas vão dar a outra face é de um
fanatismo religioso alienante inacreditável por parte exatamente de
pessoas que se dizem totalmente avessas a essa espécie de influência
fideísta.
Como bem destaca Schuon:
“Com efeito, oferecer a face esquerda àquele que feriu a face direita,
não é coisa que possa ser posta em prática por uma coletividade social
em vista de seu equilíbrio, e só tem sentido a título de atitude
espiritual, somente o espiritual põe-se resolutamente além do
encadeamento lógico das reações individuais”. [4]
Aqui é possível novamente constatar como a Democracia pode ser também
tão utópica quanto outros regimes que são marcados por um totalitarismo
em busca de um ideal a ser imposto. Não passa de puerilidade pretender
crer que numa convivência de homens haverá uma tolerância ilimitada.
Crer nisso é o primeiro passo para, como em qualquer utopia encantadora
de espíritos juvenis, projetar um “Paraíso Terrestre” e erigir um
“Inferno”.
Para perceber isso nem é preciso levar a tese doidivanas da Liberdade
de Expressão ilimitada ao seu paroxismo. Mesmo assim vale a pena expor a
situação numa argumentação “ad absurdum”.
Sabe-se que a Liberdade de Expressão não se reduz ao falar e escrever.
Também a compõe a produção artística em suas mais variadas espécies que
não se resume à literatura, às artes cênicas e ao jornalismo, mas passa
pela pintura, pela escultura, pela fotografia etc. Também pode a
Liberdade de Expressão ser manifestada por meio de ações e omissões
corporais como, por exemplo, uma greve de fome, um protesto em que as
pessoas caminham pelas ruas com cartazes ou atitudes físicas. Ora, se
uma pessoa defende a liberdade absoluta, irrestrita, ilimitada de
expressão, então deveria estar pronta para admitir que os terroristas
estavam, ao matarem as pessoas cruelmente, apenas exercendo seu direito
ilimitado de expressão! – lembremos que estamos numa argumentação “ad
absurdum”. Isso soa e é medonho, mas é uma consequência do pensamento
pueril e irresponsável de todo aquele que advoga uma Liberdade de
Expressão absoluta. Aqui se pode usar bem apropriadamente, já que houve
um choque entre charges e uma dada
religião,
a passagem bíblica em que Jesus pede ao Pai que perdoe seus algozes
porque “eles não sabem o que fazem” (Lucas 23.34). Realmente quem
defende a tese de uma Liberdade de Expressão ou outra qualquer ilimitada
não sabe o que faz. Não passa de um infante de tenra idade brincando
com um punhal.
O episódio “Charlie Hebdo” mostra bem cristalinamente que os
terroristas eram e são todos loucos, mas esses sujeitos que se acham
engraçados são uns inconseqüentes e canalhas da pior espécie que se
escoram numa suposta liberdade absoluta de expressão a fim de manter uma
pose revolucionária e iconoclasta através da qual podem lucrar
financeiramente e ganhar prestígio em certos meios. Não se sabe sequer
se realmente creem em seus supostos ideais, assim como também não se
sabe se os fanáticos religiosos têm realmente fé, já que não deixam a
questão de punir os incrédulos ou de perdoá-los à divindade que veneram.
Não há pena de morte por ser canalha, carreirista, caçador de
prestígio e oportunista e abusar de um direito, ofendendo gratuitamente a
crença alheia (ao menos na
França),
por isso os terroristas são facínoras. No entanto, essa espécie de
"beatificação" desse pessoal do pasquim que ocorreu após a morte também
não procede. O brocardo latino que nos ensina que “mors omnia solvit” (a
morte dissolve tudo) tem seu limite. Nem os cartunistas se tornaram
santos após a morte, nem os terroristas podem ser desculpados só porque
morreram. Suas memórias devem corresponder às respectivas perversidades
de suas existências. É claro que numa classificação os terroristas vão
muito além na perversidade, mas isso não elimina a perversão dos
cartunistas. Além do mais, é visível que os responsáveis pelo “Charlie
Hebdo”, se já exploravam esse campo religioso com ofensas para
capitalizar; agora os que sobraram estão ganhando horrores em cima da
morte dos colegas irresponsáveis, o que é de uma imoralidade enojante.
Principalmente quando o fazem sob o manto de uma suposta defesa do ideal
da Liberdade de Expressão e da não – violência. É triste ver o mundo
dividido em grandes contingentes de imbecis puros e imbecis assassinos.
Matar é errado. Ser canalha e ofensivo é também errado. Se eu xingar
alguém de um palavrão isso não é emanação da "liberdade de expressão"
nem aqui, nem na China, nem na França, nem na Revolução Francesa. É
injúria. Nenhum direito é ilimitado ou absoluto. A questão é apenas e
simplesmente essa. Se eu achar que o nudismo é adequado eu não posso
incomodar as demais pessoas andando pelado pela rua como exercício do
meu suposto "direito de expressão". Há exercício de direito e Abuso de
Direito, essas são categorias jurídicas, inclusive para quem se mete a
palpitar sobre o que desconhece. Além do mais, antes de falar na
Revolução Francesa como a grande precursora de direitos fundamentais é
bom lembrar todos os guilhotinados, dentre eles os seus próprios
idealizadores num momento posterior. Sem ideologias, sem modismos, sem
politicamente correto:
terrorismo
é abominável, homicídio idem, mas também é abominável, não punível com
morte, mas com desprezo moral, o desrespeito pelas pessoas. Há muitas
formas de fazer humor, há muitas formas de fazer inclusive crítica sobre
religião e até pregar ateísmo, não há necessidade alguma dessa apelação
horrorosa e pornográfica característica do pasquim “Charlie Hebdo”.
Um crente, seja ele muçulmano, católico, protestante ou o que for tem
para si as divindades como parte de seu ser mais profundo e uma ligação
não somente mística, mas afetiva também como as relações entre pais e
filhos. Quem defende esse tipo de liberdade de expressão deveria então
concordar em enviar uma foto do próprio pai ou da própria mãe com uma
autorização registrada em cartório para que o “Charlie Hebdo” ou
qualquer outro folheto similar, as adulterasse e apresentasse numa
publicação ou na internet, por exemplo, numa cena algo similar àquela de
uma das publicações que mostra Deus Pai, Jesus cristo e o Espírito
Santo em um ato homossexual. Digo claramente uma coisa: se a pessoa
disser que concordaria com isso em nome da "liberdade de expressão" só
há duas hipóteses: 1) Está mentindo e não tem caráter algum; 2) Está
dizendo a verdade e não tem caráter algum.
Também qualquer um que tenha a desfaçatez de defender terroristas que
matam pessoas por aí afora a torto e a direito sofre de demência e não
merece nem mesmo discussão. O que fica um pouco obscurecido é essa
questão da liberdade de expressão e seus limites. É estritamente sobre
esse aspecto que se deve chamar a atenção. Aliás, os terroristas com
seus atos tresloucados têm a "capacidade" (sic) exatamente de colocar um
véu sobre a intolerância, a falta de respeito, o abuso do direito de
expressão ínsitos a essas espécies de publicação. Transformam canalhas
ofensores e intolerantes "de caneta e tinta" em mártires de sangue
vitimados por metralhadoras. Esse é o "dom" (sic) do terrorista
assassino em sua "inteligência privilegiada" (sic).
Sobre os terroristas é preciso
denunciar
que há realmente, por incrível que possa parecer, pessoas empenhadas em
“justificar” (sic) seus atos. São os defensores doentes e cegos do
chamado “multiculturalismo”. Como bem demonstra Garschagen, não é
possível “relativisar” o atentado terrorista. Este e outros atos
similares não constituem “uma reação compreensível diante do histórico
de ações cometidas contra os países muçulmanos pelos governos de países
ocidentais”.
[5]
Não fosse somente pela morte e lesão a inocentes, bastaria o fato de
que nada do que ocorre entre oriente e ocidente é unilateral. No seio
das próprias comunidades, nações e países ofendidos há pessoas,
políticos, governantes etc. que são tão ou mais responsáveis por
qualquer coisa que se descreva como opressão ou exploração. Bem destaca o
já citado Garschagen, usando o ensinamento de Darlymple, que “na
imaginação empobrecida dos multiculturalistas, todos os que não
pertencem, por nascimento, à cultura predominante estão empenhados numa
luta conjunta contra a hegemonia opressiva e ilegítima”.
[6]
Com essa mentalidade os ataques terroristas podem passar por uma
espécie de “guerra ou guerrilha justa”, o que é, para dizer o menos, um
disparatado absurdo, ou, para dizer o correto, usando um neologismo, uma
“ideolorréia” fedegosa e insuportável.
A verdade é que esse assunto relativo ao caso “Charlie Hebdo” enoja de
ambos os lados e, como já visto, é paradigmático da derrocada interna da
Democracia, ocasionada pela exacerbação de seus próprios ideais. Não é
possível aderir de forma acrítica a uma postura de quem pensa que o
"Direito de livre expressão" consiste em socar o ar revolucionariamente e
gritar "liberdade de expressão ilimitada"! É bem verdade que em nosso
país, além de Pelé quando comemorava gols, há muita gente socando o ar e
pensando que isso pode criar um "mundo melhor" (obviamente gente com
sérias limitações mentais, embora ocupando cargos importantes). Não
obstante, não podemos nos deixar contaminar por "palavras de ordem" e
chavões irrefletidos. Enfim, liberdade de expressão, como já dito e
repetido e como todo e qualquer direito individual ou coletivo, não é
absoluta, tem restrições. Aliás, qualquer liberdade absoluta implica
obviamente no cerceamento da liberdade alheia. Uma das primeiras lições
que qualquer jejuno em Direito ou em Filosofia aprende é que a liberdade
somente é viável mediante mecanismos para sua própria restrição e
controle. É um paradoxo sim, mas há muitos paradoxos e complexidades na
convivência humana harmônica. Tudo isso apenas para dizer que a questão
da liberdade de expressão é muito, muito mais complexa do que um
conceito chapado e ilimitado, consistente numa espécie de "grito de
guerra revolucionário" protegido de qualquer visão crítica, debate,
questionamento ou limitação. Ademais, já de cara, tal capa "protetiva"
(sic) tornaria o conceito de "liberdade de expressão" autofágico no
exato momento em que ele mesmo seria afastado de qualquer discussão.
Para comprovar isso bem rapidamente qualquer pessoa interessada pode e
deve ler o que já se escreveu sobre o assunto. Perceberá que a produção a
respeito e as questões polêmicas sobre o alcance e o limite da
liberdade de expressão na seara jurídica, filosófica, sociológica,
cultural, artística etc. é simplesmente inabarcável no período de uma
vida humana. Claramente, portanto, não se trata de
sair
por aí gritando "liberdade de expressão"! Como a bibliografia é
inabarcável, apenas vou indicar alguns livros essenciais para que se
tenha uma noção básica do assunto e se perceba a sua complexidade:
1)Liberdade de Expressão - Dimensões Constitucionais da Esfera Pública
no Sistema Social, de Jónatas E. M. Machado, Editora Coimbra (essa obra
do catedrático português, Jónatas Machado tem simplesmente 1.196
páginas! Eu não errei na digitação, são mesmo 1.196 páginas.). Creio que
um gritinho revolucionário não daria material para isso. 2)A Ironia da
Liberdade de Expressão, do autor anglo - saxão, Owen Fiss; 3)Liberdade
de Expressão e Discurso do Ódio, da autora brasileira Samantha Meyer
Pflug Ribeiro; 4)Aeropagitica - Discurso sobre a liberdade de expressão,
Clássico de John Milton, e 5) o muito bem lembrado por Fontes em seu
texto de extrema qualidade e sensatez,
[7]
“Cartas Sobre Tolerância”, de John Locke. Se a pessoa tiver a
curiosidade de passar os olhos somente nestes livros já perceberá a
vergonha em que consiste sair por aí dando soquinhos no ar e gritando
"liberdade de expressão" como se isso fosse um conceito simples, chapado
e infenso a limites e discussões as mais variadas nos mais diversos
campos do saber humano.
[8]
Mas, será que o campo do humor não seria dotado de uma maior
flexibilidade sob o pretexto de que tudo que é ali dito, escrito,
desenhado etc. é feito com o intuito meramente jocoso?
É claro que não, sob pena de criar uma válvula de escape para o abuso
de direito no que tange a ofender pessoas e grupos impunemente, alegando
que é apenas uma “brincadeirinha”. Lidar com humor é trabalho sério.
Quando alguém tem a impressão pessoal de que não há possibilidade de
ofensa quando se está no campo do suposto humor, deve ser convidado a
viver de acordo com ela. Afinal, uma dada visão filosófica ou política
defendida por alguém só pode ter alguma validade se tal pessoa ou grupo é
capaz de viver de acordo com seus próprios preceitos. Do contrário
trata-se apenas de palavras da boca para fora, ou de regras boas para os
outros, mas não para mim ou para o meu grupo. Quando um indivíduo
fizer uma piada bem ofensiva, inclusive com conotações sexuais bem
grosseiras com sua mulher ou namorada na sua frente sem qualquer
respeito, ria simplesmente, com sua mãe, com seu pai ou seu filho
doente, ria adoidado, especialmente se ele o fizer por anos e anos a
fio, vá rindo. Acho que até mesmo seus familiares o desprezarão, sua
mulher pedirá o divórcio porque estaria casada com um “banana”, um
“frouxo”, um pusilâmine, sua namorada terminaria o namoro pelo mesmo
motivo acima. Percebe? Apenas se trata de lidar com a realidade do
mundo da vida e não com ideias vagas e flutuantes. Uma filosofia, um
pensamento somente tem validade se a pessoa ou grupo que o expressa é
capaz de com ele viver. Mas, sinto dizer que no caso de ofensas tão
brutais como as do “Charlie Hebdo”, se a pessoa for capaz de viver da
forma que apregoa, não haverá outra coisa para lhe ser conferida a não
ser um desprezo muito grande. Talvez, pelo fato de algumas pessoas não
terem crenças, pensem que é diferente no que tange à religião, mas não
é. O problema nesse caso é uma falta de empatia e uma insensibilidade e
incapacidade de se colocar no lugar do outro. Cada um sabe seus limites,
as coisas que lhe são importantes, aquilo que é capaz de suportar e não
é possível julgar os outros pela nossa medida. Há limites e são limites
humanos para tudo, inclusive o humor de bom e de mau gosto. Não penso
que o tema da religião ou qualquer outro deva ser alijado ou proibido em
charges, piadas etc. Mas, há limites para tudo. A charge do “Charlie
Hebdo” é tão repulsiva que não é sequer engraçada, é apenas pornográfica
e sem qualquer sentido.
Como bem expõe Antier, trazendo à baila a doutrina de Spinoza:
“Mas há risos e risos. Em sua Éthique, Spinoza denuncia o riso que se
transforma em deboche, que menospreza, que ridiculariza. Opostamente ,
ele exalta o riso alegre que explode da pessoa feliz, e que é ‘uma pura
alegria’, uma virtude”. [9]
Como já disse anteriormente, mas agora retomando a questão da
coerência entre ideias e vida prática, permita a alguém postar uma
imagem semelhante àquela do “Charlie Hebdo”, onde se retrata a trindade
cristã em atos homossexuais recíprocos, manipulando fotos de familiares
seus, talvez com você no lugar do Cristo e o pênis de um ancestral seu
falecido introduzido no seu ânus, na sua frente seu pai sendo sodomizado
por você. O que acharia disso? Engraçado? A intenção seria apenas
humorística? Ora, mas é religião e você é ateu, então essas figuras não
são importantes "para você". Mas, a questão não é você ou eu; é o
crente. Para ele essas figuras não são abstrações ou superstições são
algo sagrado e muito, muito relevante em sua vida, muitas vezes e para
muitas pessoas a única coisa relevante. Essa charge horrorosa é apenas
um exemplo. O fato de que você leitor, eu ou seja lá quem for não tenha
alguma fé nada, absolutamente nada tem a ver com a permissividade quanto
ao desrespeito grave da religião alheia. Quando se fala em intolerância
somente se pensa no lado do religioso fanático, mas há o fanatismo, o
dogmatismo ateu também que se expressa nessas formas de desrespeito
graves em manifestações supostamente "artísticas" (sic), “humorísticas”
(sic) e às vezes também em agressões. A intolerância geralmente tem duas
faces. Isso é preciso compreender. Não se trata aqui propriamente ou
exclusivamente de religião, de certo ou errado em termos dogmáticos
desta ou daquela orientação, mas de viabilização de uma convivência
humana pacífica. Também não é possível em época de eleições marcar
comícios de dois partidos opostos no mesmo lugar e na mesma hora. É
pedir violência. A liberdade política também tem limites óbvios, o mesmo
se podendo afirmar com relação à religiosa, ao culto, à expressão etc.
São questões muito complexas que não podem ser resolvidas com frases
feitas oriundas do pensamento raso e rasteiro do “politicamente
correto”.