quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Morte do mandante antes do ajuizamento de ação extingue poderes outorgados ao mandatário

 Em sessão ordinária por videoconferência, a Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais decidiu, por unanimidade, dar provimento ao recurso da União, firmando a seguinte tese: "a morte do mandante antes do ajuizamento da ação judicial extingue automaticamente os poderes outorgados ao mandatário, não havendo que se cogitar de boa-fé ou de conhecimento do óbito pelo advogado, ocasionando a extinção do processo sem resolução de mérito e sem possibilidade de habilitação de sucessores" (Tema 258).

O Pedido de Interpretação de Uniformização de Lei foi interposto pela Advocacia-Geral da União em face de decisão proferida pela Turma Recursal da Seção Judiciária de Rondônia de que a morte do constituinte não extinguiria o mandato outorgado a seu advogado, enquanto este último não soubesse do evento e tivesse agido de boa-fé na defesa dos interesses do cliente.

Segundo a União, a decisão estaria em divergência com entendimento do Superior Tribunal de Justiça, que sustenta a extinção automática do mandato judicial com o óbito do outorgante, entendendo pela não aplicação das regras de boa-fé e validade dos atos praticados pelo mandatário nas ações judiciais, uma vez que o interesse do terceiro não seria convergente com o do mandante falecido.

Em suas razões de decidir, o relator do processo na TNU, juiz federal Atanair Nasser Ribeiro Lopes, iniciou seu voto pontuando que a questão já foi pacificada no âmbito do STJ, não comportando mais delongas sobre o tema, independentemente do posicionamento pessoal de julgadores das instâncias ordinárias.

“Em inúmeros precedentes, a Corte Superior fixou o entendimento no sentido de que a morte da parte mandante antes do ajuizamento da ação judicial, extingue o mandato e torna nulos e ineficazes os atos posteriores praticados pelo advogado mandatário, ainda que esteja de boa-fé ou não saiba do óbito ocorrido, como bem ponderado no paradigma citado pela recorrente”, declarou o magistrado.

“De tão consolidada, a jurisprudência repercutiu inclusive no âmbito tributário, compreendendo-se que a execução fiscal não pode ser movida em face de pessoa já falecida antes do ajuizamento, sendo incabível o redirecionamento do executivo nesta condição, muito embora não se trate, na hipótese, sobre extinção de mandato”, completou.

Ao final de sua apresentação, o juiz federal observou que acórdão impugnado diverge literalmente da jurisprudência dominante no STJ, motivo pelo qual o relator votou no sentido  de dar provimento ao recurso da União, a fim de reformar o acórdão impugnado e restabelecer a sentença de extinção sem resolução do mérito de primeiro grau, condenando a parte autora ao pagamento das custas e dos honorários sucumbenciais fixados em 10% sobre o valor corrigido da causa, suspensa a exigibilidade no caso de deferimento da gratuidade de justiça. Com informações da assessoria de imprensa do Conselho da Justiça Federal.

0014899-76.2008.4.01.4100/RO

Revista Consultor Jurídico, 26 de outubro de 2020, 19h37

https://www.conjur.com.br/2020-out-26/morte-mandante-antes-acao-extingue-poderes-mandatario

Procuradores da Paraíba querem processar professor por críticas à "lava jato"

 A Associação Paraibana do Ministério Público (APMP) convocou procuradores e promotores de Justiça do estado para uma assembleia virtual em que será decidido se a entidade processará Agassiz Filho, advogado professor de Direito Constitucional da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). 

Professor Agassiz Filho criticou "operação calvário" e poderá ser processado por associação do MP
Reprodução

A reunião foi chamada depois que Filho criticou a "lava jato" em uma peça de campanha de Ricardo Coutinho (PSB), candidato a prefeito de João Pessoa e alvo do Ministério Público na "operação calvário". 

"A diretoria da Associação Paraibana do Ministério Público [convoca] todos os seus associados titulares em dia com as obrigações estatutárias para uma Assembleia Geral Extraordinária, a ser realizada no dia 6 de novembro de 2020, de forma remota [...] para fins de votação para autorização de ação coletiva de indenização da APMP em face das postagens do advogado Agassiz Almeida Filho", diz a instituição. 

Na postagem agora contestada pelo MP, Filho diz que "o papel do Ministério Público não é acusar de forma leviana, sem provas, e utilizando a imprensa como instrumento para convencer a opinião pública", o postulante à prefeitura de João Pessoa. 

O advogado e professor da UEPB, que é crítico contumaz da "lava jato", comentou o caso em entrevista concedida à Revista Fórum. Ele afirmou que a reação do MP seu deu tão somente porque os seus membros não aceitam críticas. 

"O que está sendo perseguido é um conjunto de ideias lastreado na Constituição e na doutrina jurídica, aspectos que a 'operação calvário' tem desconhecido desde o princípio. Alguns membros da 'calvário' estão fora de controle", disse. 

O jurista e professor Lenio Streck tratou do tema em sua coluna na ConJur. No texto, que foi publicado nesta segunda-feira (26/10), Streck afirma que a convocatória é inédita. 

"Pelo andar da carruagem, os críticos dos métodos da "lava jato" e da força-tarefa do MP na "lava jato" devem ficar atentos. O próximo a ser processado deverá ser o ministro Gilmar, depois JJ. Gomes Canotilho, Luigi Ferrajoli, Kakay, eu mesmo... E a lista é grande", ironizou.

Ainda de acordo com ele, "em vez de o Ministério Público (parte dele, sem generalizar, por óbvio — afinal conheço bem a instituição e sei separar o joio do trigo) cuidar de sua missão constitucional — que é bela, fruto de muita luta, inclusive minha —, fica preocupado em processar professores por 'crime de hermenêutica'".

Revista Consultor Jurídico, 26 de outubro de 2020, 20h23

https://www.conjur.com.br/2020-out-26/procuradores-pb-podem-processar-professor-criticas-lava-jato

Como se aplica o direito de arrependimento na compra de produtos e serviços

 Por  e 

Na modernidade e na praticidade dos dias atuais, inúmeras compras são efetuadas através da internet ou via contato telefônico, em que muitas vezes os produtos são vendidos a preços mais convidativos, bem como o meio de compras por esses canais são imbuídos de praticidade e rapidez para boa parte dos consumidores, que, muitas vezes em um só contato, conseguem comprar os mais variados produtos. Mas e se o consumidor adquirir algum produto ou serviço por telefone ou internet e, quando for usar, perceber que não gostou ou que não tenha sido adequado às suas necessidades, ele tem a possibilidade de troca ou devolução, recebendo de volta a quantia paga?

A resposta é sim, conhecida como direito de arrependimento, previsto no Código de Defesa do Consumidor, que possibilita a devolução do produto caso o comprador não entenda ser do seu agrado e, o mais importante, sem ter de apresentar qualquer justificativa. Ou seja, o referido direito de arrependimento ou prazo de reflexão é a possibilidade do consumidor desistir da compra, devolver o bem e pegar seu dinheiro de volta sem explicar o motivo.

Essa disposição encontra amparo no artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor que assim estabelece:

"O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de sete dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou em domicílio.
Parágrafo único. Se o consumidor exercitar o direito de arrependimento previsto neste artigo, os valores eventualmente pagos, a qualquer título, durante o prazo de reflexão, serão devolvidos, de imediato, monetariamente atualizados".

À luz do referido artigo, vê se que a parte consumidora tem o direito de arrependimento sempre que a compra do produto ou serviço ocorrer fora do estabelecimento comercial, no prazo de sete dias contados do recebimento para devolver o produto e reaver os valores pagos. Mister salientar que o referido prazo de contagem dos sete dias se inicia no dia posterior ao do recebimento do produto ou da contratação do serviço, sendo dias corridos, ou seja, a contagem não exclui os sábados, domingos ou feriados. Somente existirá a possibilidade de prorrogação desse prazo caso o estabelecimento não tenha expediente no sétimo e último dia, ocasião em que se prorrogará para o próximo dia de funcionamento.

A Lei do Consumidor não estabelece que, para operar a desistência nos casos de compra de um produto, o mesmo esteja com a embalagem lacrada, porém muitos estabelecimentos não adotam essa medida, ocasionando uma infração à letra da lei. Assim, em amparo com o CDC, o direito do arrependimento se dá sobre o produto em sua forma propriamente dita, e não sobre a embalagem deste.

Destarte, alguns questionamentos e dúvidas aparecem em certas ocasiões, como quando se adquire uma colônia, cosméticos e alguns produtos de uso pessoal que necessitem de prova antes do uso, por exemplo. E nesses casos, existiria a possibilidade do consumidor de devolver os produtos a fragrância ou textura não lhe agrade? A princípio, podemos dizer que sim, eis que não existe exceção no Código de Defesa do Consumidor, sendo que lhe assistiria esse direito.

Porém, nesses casos, os fornecedores devem se adequar no envio desses produtos, a fim de postergar maiores problemáticas a ambas as partes, eis que a área de comercialização de certos produtos é bem delicado (como por exemplo o envio de pequenas amostras ou provadores), antes que a parte consumidora viole a embalagem e/ou lacre do produto.

E sobre a possibilidade do direito de arrependimento nas compras em lojas físicas presenciais?
No que se refere às compras realizadas em estabelecimentos físicos, tem-se que é a própria parte consumidora quem se dirige à loja e celebra a compra. Desse modo, presume-se que houve a reflexão antes de comprar e teve contato direto com o produto.

Desta feita, não existe previsão legal para o direito de arrependimento em compras realizadas em lojas físicas presenciais.

Importante ressaltar que o consumidor, além de ser detentor de direitos, também possui obrigações frente a outra parte contratual, ou seja, o consumidor não pode por mera liberalidade desistir da compra efetuada frente à loja física, porque simplesmente assim o quis, tendo de assumir a obrigação frente à empresa contratada.

Diferentemente, se acaso ocorrer algum descumprimento pela parte contratada, seja no prazo para entrega, divergência de produto e etc., o consumidor será amparado e terá direito ao cancelamento da compra e o recebimento do valor pago.

Importante destacar que todo produto possui um prazo de garantia legal obrigatório independente da garantia dada pelo fabricante, sendo 30 dias para reclamar de vício ou defeito de produto não durável e 90 dias para reclamar de vício ou defeito de produto durável.

A devolução do produto, com a consequente troca ou reembolso de valores pagos, somente será possível por motivos de vícios de qualidade e defeito, sem a possibilidade de reparo, conforme previsão no artigo 18, do CDC, vejamos: 

"Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com a indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas.
§ 1°. Não sendo o vício sanado no prazo máximo de trinta dias, pode o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha:
I. a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso;
II. a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos;
III. o abatimento proporcional do preço".

Porém, a devolução de produtos em lojas físicas depende da política do estabelecimento sobre o assunto, pois não existe previsão no ordenamento jurídico que determine que a devolução seja realizada. Alguns estabelecimentos, porém, visando ao bom relacionamento com o cliente, abrem a possibilidade para a negociação da desistência de compra, mas, como mencionado, não há respaldo legal que obrigue que isso ocorra, portanto, não há direito ao arrependimento.

E se o consumidor adquire um produto pela internet com a possibilidade de retirar na loja física?
Importante salientar que, conforme mencionado acima, o direito de arrependimento é válido nas compras feitas fora do estabelecimento comercial.

Nesse diapasão, mesmo que o cliente opte por retirar o produto na loja física (o que pode ser equiparado a retirar em uma agência dos Correios ou transportadora, por exemplo), terá, sim, o direito de se arrepender, pois o que define que tenha esse direito é a modalidade de como a compra foi realizada, e não como a sua entrega se deu.


Marlon Fernando Yokada Fernandes é advogado, especialista em Direito Processual Penal e Didática do Ensino Superior, coordenador executivo do Procon de Pedra Preta (MT) e presidente do Conselho Municipal de Defesa do Consumidor (Condecon).

 é advogada, especialista em Direito e Processo do Trabalho, com capacitação para ensino no magistério superior, representante da OAB-MT e representante no Conselho de Defesa do Consumidor (Condecon) na Comarca de Pedra Preta (MT).

Revista Consultor Jurídico, 26 de outubro de 2020, 20h38

https://www.conjur.com.br/2020-out-26/fernandes-anjos-aplicabilidade-direito-arrependimento-consumidor-compras-produtos-servicos

Princípio do prestígio aos familiares privilegiados e o dano moral reflexo

 Por 

1) Introdução
Começamos por saudar este notável espaço de difusão do Direito Civil: esta riquíssima coluna, coordenada pela Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo, sob a batuta do livre-docente Otávio Luiz Rodriguez Junior.

Neste artigo, tratamos do princípio do prestígio aos familiares privilegiados e, com base nele, apontamos quem pode reivindicar indenização no caso de dano moral reflexo ou por ricochete.

Identificar princípios ou subprincípios que guiam o legislador é útil não apenas para a compreensão do ordenamento, mas também para orientar a jurisprudência, a doutrina e o próprio legislador a preservarem uma coerência lógica ao darem soluções a situações novas.

2) Princípio do prestígio aos familiares privilegiados (cônjuge, descendente e ascendente)
Há inegável privilégio dado pelo ordenamento jurídico ao cônjuge, ao descendente e ao ascendente em relação aos demais familiares. Há uma presunção de que aqueles familiares privilegiados são os mais próximos e que, presumidamente, não mediriam esforços para o bem-estar da pessoa. O apreço afetivo de um cônjuge, de um pai ou de um filho é, em regra, muito maior do que o dos demais parentes. É evidente que há exceções, mas o ordenamento se ampara no padrão do homem médio ("the man on the Clapham bus" [1]).

A consequência desse privilégio é que o ordenamento costuma separar esses familiares privilegiados dos demais em várias situações, a exemplo das seguintes posições jurídicas outorgadas àqueles:

1) A condição de herdeiro necessário — que dá prerrogativas sucessórias, como o direito à legítima — abrange apenas os familiares privilegiados, conforme artigos 1.789 e 1.845, CC;

2) Os familiares privilegiados são dispensados de dar garantia na imissão na posse de bens do ausente e de reter metade dos frutos desses bens, conforme artigos 30 e 33, CC;

3) Os familiares privilegiados possuem legitimidade para a proteção dos direitos da personalidade do falecido nas hipóteses do artigo 20 do CC, conforme o seu parágrafo único;

4) A revogação da doação por ingratidão pode decorrer de alguma das ofensas previstas no artigo 557 do CC a algum dos familiares privilegiados do doador, conforme artigo 558, CC;

5) Não há sub-rogação para a seguradora no seguro de dano se o causador do sinistro tiver sido algum dos familiares privilegiados, salvo dolo, consoante artigo 786, § 1º, CC;

6) Familiares privilegiados são dispensados de declarar interesse na vida do segurado, salvo prova em contrário, à luz do artigo 790, parágrafo único, CC;

7) Os familiares privilegiados devem ser prioritariamente os curadores, nos termos do artigo 25 do CC e do artigo 1.731, CC;

8) No caso de herança jacente, os familiares privilegiados podem reivindicar a herança até cinco anos após a declaração de vacância, ao contrário do que sucede com os parentes colaterais, tudo na dicção do artigo 1.822 do CC.

O companheiro, embora seja mencionado em poucas situações das hipóteses acima, deve também ser considerado como abrangido juntamente com o cônjuge, salvo situações em que a informalidade da união estável e a proteção do terceiro de boa-fé justifique a distinção. O motivo é que, no sistema brasileiro, a união estável deve ser equiparada, no que couber, ao casamento. Por exemplo, a anulabilidade do negócio jurídico por falta de consentimento do companheiro não pode acontecer se a união estável era desconhecida direta ou indiretamente do terceiro contratante, conforme leitura extensiva do artigo 1.647 do CC, que só menciona o cônjuge. A própria condição de herdeiro necessário para o companheiro é objeto de controvérsias.

Entendemos que o privilégio dado pelo ordenamento aos familiares privilegiados é um princípio, porque é uma linha normativa adotada pelo legislador que deve orientar as atividades de interpretação e de integração normativas.

Como todo princípio, é claro que ele pode ser excepcionado.

De um lado, entre os familiares não privilegiados (os parentes colaterais), não se pode negar que os irmãos recebem, em algumas situações, um tratamento especial ao lado dos familiares privilegiados, como: 1) na presunção de serem interpostas pessoas na disposição testamentária que simuladamente beneficia pessoa não legitimada a suceder, conforme artigo 1.802, parágrafo único, CC; 2) na falta de vocação sucessória por ser irmão de quem redigiu, a rogo o testamento, de acordo com o artigo 1.801, I, CC; 3) na delimitação dos obrigados à prestação de alimentos, à luz do artigo 1.697, CC; 4) na formação de vínculo de parentesco por afinidade, consoante artigo 1.595, CC; e 5) na legitimidade de propor a ação de divórcio em nome de incapacidade da pessoa, conforme parágrafo único do artigo 1.582, CC.

De outro lado, os colaterais de terceiro grau (tios e sobrinhos) são reconhecidos como detentores de uma proximidade afetiva e biológica mais suave, de maneira que, em algumas hipóteses, o legislador estabelece restrições à sua atuação em determinadas situações jurídicas que exigem neutralidade ou em que haja risco genéticos à prole. É o caso, por exemplo, da inaptidão desses parentes colaterais de terceiro grau em: 1) ser testemunhas (artigo 228, III, CC); 2) casar se não tiver havido exame médico atestando falta de riscos genéticos à prole (artigo 1.521, IV, do CC e artigos 1º ao 3º do Decreto-Lei nº 3.200/1941 [2]).

Além disso, por causa dessa proximidade suave, o legislador, por vezes, ainda que com contenção, deposita certa confiança nos colaterais de terceiro grau ao, por exemplo, incluí-los como os últimos a serem nomeados tutores legítimos (artigo 1.731, II, CC).

Os colaterais de quarto grau (primos e sobrinhos-netos) são os parentes mais distantes afetiva e biologicamente, de maneira que, em relação a eles, o legislador praticamente os trata como um desconhecido. Apesar de reconhecê-los no último lugar da ordem de vocação hereditária (artigo 1.839, CC) e de lhes conferir legitimidade para proteção de direitos da personalidade do falecido [3] (artigo 12, parágrafo único, CC), o legislador demonstra indiferença em relação a esses colaterais de quarto grau. Eles sequer são considerados como inaptos a serem testemunhas, pois o legislador não enxerga neles qualquer presunção de suspeição (artigo 228, III, CC). Não lhes proíbe de casar nem lhes impõe o dever de ser tutor ou curador.

Por fim, é preciso realçar que, a depender do caso concreto, é evidente que o juiz pode flexibilizar essa linha de presunções de proximidade afetiva adotado pelo legislador. Há hipóteses de primos mais próximos mais afetivamente do que irmãos ou de que pais. Em casos como esse, o legislador, a doutrina ou o profissional do Direito poderão eventualmente estender a esses parentes alguns dos privilégios ou das restrições relativos aos familiares privilegiados.

3) Legitimados a pleitear dano moral reflexo e o problema do valor
O direito à indenização é da vítima, que pode ser direta ou indireta.

Vítima direta é quem sofreu diretamente a conduta lesiva e sofreu o dano.

Já vítima indireta é aquela que, embora não tenha sido diretamente atingida pela conduta, sofre, por reflexo (por ricochete), um dano causado à vítima direta. O dano reflexo, indireto ou por ricochete é o dano causado a uma vítima indireta.

Todas as espécies de danos indenizáveis (material, moral, estético etc.) podem ser danos reflexos, a depender do caso concreto.

Os casos mais comuns são os de dano moral reflexo sofridos por familiares em razão da morte da vítima direta. Exemplo: o filho sofre dano moral em razão do assassinato do seu pai.

Outro caso comum é o dano material reflexo (na modalidade de lucros cessantes) sofrido pelo dependente econômico de alguém que faleceu por conduta culposa de outro. Exemplo: filho menor pode pedir pensão alimentícia indenizativa para suprir a perda do sustento financeiro que o pai assassinado lhe provia de forma direta ou indireta (como no caso da morte de um genitor que, com base no Direito de Família, pagava alimentos mensais ao filho que havia ficado com a guarda do outro genitor).

Um grande problema que vem sendo enfrentado pela jurisprudência ao lidar com o dano moral reflexo é a delimitação dos legitimados a pleitear indenização. Não nos ocupamos aqui tanto do dano material reflexo, porque, neste, há um rastro patrimonial que, por si só, já restringe as vítimas indiretas. A imprecisão concentra-se no dano moral reflexo, pois inúmeras pessoas podem alegar que indiretamente teriam sofrido lesão moral por terem um vínculo de amizade ou de admiração com a vítima direta.

Para enfrentar essa questão, temos que o princípio do prestígio aos familiares privilegiados é um norte para impedir extravagâncias nessa lista de vítimas indiretas. O STJ tem caminhado nesse sentido.

Explicamos.

A cadeia de vítimas indiretas pode chegar ao infinito. Por exemplo, com a morte de alguém, poderiam reivindicar dano moral reflexo não apenas os parentes mais próximos do falecido (filhos, ascendentes, cônjuge), mas também parentes distantes, amigos e até mesmo conhecidos.

Diante da omissão da lei, o STJ aplica, por analogia, a ordem de vocação hereditária prevista no artigo 1.829 do CC, com flexibilizações a serem identificadas no caso concreto, para limitar essa rede infinita de vítimas indiretas. Essa solução coaduna com o princípio do prestígio aos familiares privilegiados.

Assim, no caso de morte de alguém, poderão pleitear indenização por dano moral reflexo, em primeiro lugar, os herdeiros da primeira classe prevista no inciso I do artigo 1.829 do CC (descendentes e cônjuge) e também os ascendentes e os irmãos.

Em relação ao cônjuge, é irrelevante o regime de bens, pois o foco aí é a reparação de um dano extrapatrimonial.

Quanto aos ascendentes, embora estes não componham a primeira classe da ordem de vocação hereditária, eles, em regra, sofrerão dano moral reflexo pela perda do filho em igual intensidade dos descendentes e do cônjuge, independentemente da idade do filho. Mãe é mãe, pai é pai, diz a sabedoria popular.

É preciso, no entanto, o juiz analisar o caso concreto para identificar quais pessoas realmente teriam sofrido o dano reflexo, de modo que até mesmo um sobrinho poderia reconhecido como titular da indenização por ricochete a depender do caso concreto. Há diferentes arranjos familiares. No STJ, já houve casos em que sobrinhos foram tidos como dignos do receber a indenização (STJ, REsp 239.009/RJ, 4ª Turma, Rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ 04/09/2000).

Igualmente, os irmãos devem presumidamente ser considerados como atingidos por reflexo diante do vínculo afetivo existente com a vítima (STJ, REsp 1734536/RS, 4ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 24/09/2019).

A presunção de vínculo afetivo decorre das máximas da experiência e — é claro — poderiam ser afastadas mediante provas contrárias hábeis a afastar a caracterização de dano moral reflexo. Seria absurdo um irmão comprovadamente distante ou inimigo afetivamente da vítima pleitear indenização por dano moral afetivo.

Ademais, para evitar que o responsável seja exposto a um inferno de severidade [4] com indenizações elevadíssimas diante da multidão de vítimas indiretas, o arbitramento da indenização reflexa deve ser feito em um valor único a ser repartido entre as vítimas indiretas que forem reconhecidas como legítimas a pleitear a indenização.

Essa repartição da indenização pode ser feita a depender do grau de ligação afetiva com a vítima indireta, de modo que não necessariamente as vítimas indiretas receberão valores iguais.

Punir o agente a indenizar ampla e irrestritamente todas as vítimas indiretas seria um ônus muito excessivo e desproporcional, contrariando, por analogia, o parágrafo único do artigo 944 do CC.

Por isso, é razoável o entendimento do STJ em limitar a quantidade de vítimas indiretas indenizáveis com base na ordem de vocação hereditária do artigo 1.829 do CC com flexibilizações dadas pelo caso concreto e em restringir o valor total de indenização a ser repartido entre as vítimas indiretas indenizáveis.

Nesse sentido, incluir não familiares como vítimas indiretas indenizáveis seria, em regra, nocivo, pois iria reduzir a fatia do valor total de indenização que seria outorgado aos familiares próximos da vítima. Foi nesse contexto que o STJ já rejeitou a pretensão de um ex-noivo pedir a indenização por dano moral reflexo em razão da morte da vítima direta, especialmente em razão de os pais já terem obtido essa indenização em uma ação autônoma.

O STJ segue o entendimento acima (STJ, REsp 1734536/RS, 4ª Turma, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 24/09/2019; REsp 1076160/AM, 4ª Turma, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 21/06/2012; REsp 1095762/SP, 4ª Turma, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 11/03/2013; AgRg no Ag 1.413.281/RJ, 3ª Turma, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 19/03/2012).

4) Conclusão
O princípio do prestígio aos familiares privilegiados é uma diretriz do ordenamento jurídico brasileiro e é útil a guiar a doutrina, a jurisprudência e o legislador em oferecer soluções para novas situações, a exemplo do debate acerca da limitação dos legitimados a pleitear indenização por dano moral reflexo.

Conviria que o legislador estabelecesse parâmetros para essa limitação dos legitimados, mas, enquanto isso, o STJ tem suprido bem essa lacuna em consonância com o princípio do prestígio aos familiares privilegiados.

* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

 

[1] Essa expressão inglesa se reporta ao homem comum, como lembra Ronald Coase (2016, p. 4). Clapham é um bairro muito popular de Londres, de modo que a referência a um homem em um ônibus nesse local reporta-se a uma situação comum.

[2] Enunciado nº 98 das Jornadas de Direito Civil: “O inc. IV do art. 1.521 do novo Código Civil deve ser interpretado à luz do Decreto-lei n. 3.200/41, no que se refere à possibilidade de casamento entre colaterais de 3º grau”.

[3] Recorda-se que, para alguns direitos da personalidade, a legitimidade se restringe aos familiares privilegiados, nos termos do art. 20, parágrafo único, do CC.

[4] Enfer de sévérité, expressão da jurista francesa Geneviève Viney, citada pelo Ministro Paulo de Tarso Sanseverino (2010, p. 84).

 é advogado, parecerista, professor de Direito Civil, Notarial e de Registros Públicos na Universidade de Brasília (UnB) e em outras instituições, consultor legislativo do Senado Federal em Direito Civil, ex-advogado da União e ex-assessor de ministro STJ.

Revista Consultor Jurídico, 26 de outubro de 2020, 10h00

https://www.conjur.com.br/2020-out-26/direito-civil-atual-principio-prestigio-aos-familiares-privilegidos-dano-moral-reflexo

Usufruto vidual não pode ser reconhecido quando casal se separou com meação

 O usufruto vidual, previsão que dá ao cônjuge vivo o direito de usufruir dos bens do falecido quando o regime não é a comunhão universal, não pode ser reconhecido se o casal tiver feito a separação judicial de corpos com meação de bens. 

STJ disse que mulher contemplada com meação não tem direito a usufruto vidual
Reprodução

O entendimento é da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que manteve decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo. Para a corte, não é possível beneficiar novamente uma mulher que já foi contemplada com a divisão de bens no momento da separação. 

O ministro Marco Buzzi, relator do recurso, disse que o instituto do usufruto vidual tem por objetivo salvaguardar o mínimo necessário ao cônjuge não beneficiado pela herança. 

"No caso dos autos, em razão da meação efetivamente atribuída à esposa, é incontroverso que a recorrente foi aquinhoada com significativa parcela do patrimônio do de cujus, fração esta que lhe garante meios suficientes de subsistência, tornando desnecessário, para não dizer injusto e penoso aos herdeiros, atribuir a seu favor usufruto vidual sobre a parcela dos bens objeto da herança", afirmou o ministro. 

De acordo com ele, o Código Civil de 2002 não abarcou o instituto nos mesmos moldes do código anterior. Porém, explica, a normativa estendeu o direito real de habitação a todos os regimes de bens, elevando o cônjuge ao patamar de herdeiro necessário. 

Buzzi também afirmou que o CC/1916 prescreveu como condição para o reconhecimento do usufruto vidual que o regime de bens não fosse o da comunhão universal, dando a ideia de que aquele que foi contemplado pela meação não faz jus ao usufruto. 

REsp 1.280.102

Revista Consultor Jurídico, 23 de outubro de 2020, 11h11

https://www.conjur.com.br/2020-out-23/usufruto-vidual-nao-reconhecido-quando-separacao-meacao

Manifestação de um dos cônjuges é suficiente para decretação de divórcio

 23 de outubro de 2020, 15h59

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A manifestação de um dos cônjuges é suficiente para a decretação antecipada do divórcio. A medida não causa prejuízos ao resultado útil do processo e não gera risco de prejuízo patrimonial. 

TJ-SP manteve decisão que decretou divórcio

O entendimento é da 2ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo. O colegiado manteve decisão de primeiro grau que decretou divórcio após pedido unilateral do marido. O julgamento ocorreu em 23/9. 

A agravante ajuizou recurso no TJ-SP argumentando que a decretação antecipada, feita antes da partilha de bens, poderia causar prejuízo ao resultado útil do processo. A mulher disse temer que, sem a necessidade do aval em transações financeiras, o ex-marido pudesse realizar manobras que resultassem em depreciação patrimonial. 

O desembargador Álvaro Passos, relator do caso no TJ, afirmou ser cabível a decretação antecipada por decisão parcial do mérito, conforme preceitua o Código de Processo Civil. Também destacou que, segundo a Emenda Constitucional 66/10, o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, bastando para isso a manifestação de vontade de uma das partes. 

Os magistrados também consideraram que há meios próprios, que não a manutenção do casamento, para garantir a proteção patrimonial. A corte se valeu integralmente da decisão de primeira instância para manter o divórcio. 

A advogada Daniela Fernanda de Carvalho, do Instituto Brasileiro de Direito da Família (IBDFAM), atuou no caso defendendo o homem. Ela comemorou a decisão. "Servirá para reforçar a característica do divórcio como um direito potestativo incondicionado, sem impor qualquer condição àquele que deseja o rompimento legal e definitivo do vínculo do casamento", diz. 

Ainda de acordo com ela, o entendimento confirmado pelo TJ-SP mostra que o Judiciário amadureceu no que diz respeito à decretação do divórcio por liminar. A medida é uma possibilidade desde 2010, quando foi promulgada a EC 66/10, concebida pela IBDFAM em parceria com o então deputado federal Sérgio Barradas Carneiro. 

"Apesar de, desde 2010, a EC 66/10 autorizar o divórcio independentemente de qualquer condição, bastando a manifestação da vontade de um dos cônjuges, o Poder Judiciário ainda mantinha uma postura conservadora, tanto que as decisões parciais de mérito ou em caráter liminar são recentes nos tribunais", diz Carvalho. 

2190994-53.2020.8.26.0000

 é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 23 de outubro de 2020, 15h59

https://www.conjur.com.br/2020-out-23/manifestacao-unilateral-suficiente-decretar-divorcio

Cobrar de modo ameaçador cliente que não tem dívida gera danos morais

 Cobrar fatura já paga, assim como se dirigir ao cliente de modo descortês e ameaçador, gera o dever de indenizar. O entendimento é Turma Recursal de São Luís (MA).

Operadora ligou e enviou mensagens  cobrando fatura já paga pelo cliente
    Reprodução

No caso concreto, um homem recebeu ligações da Claro, que cobrou valores já quitados. Posteriormente, foram enviadas ao autor mensagens afirmando que ele era devedor e deveria efetuar o pagamento.

A juíza Joelma Souza Santos, do Juizado Especial Cível e Criminal do Maiobão, fixou indenização por danos morais no valor de R$ 4 mil. A quantia foi mantida em sede recursal. 

"Entendo que a forma como a cobrança foi realizada e o seu conteúdo foi inapropriado, pois uma empresa como a requerida não pode se utilizar de cobrança apócrifa (número e telefone sem identificação) frente a seus clientes, ainda mais depois do mesmo realizar o pagamento", afirmou o juízo originário ao proferia sentença. 

Ao manter a decisão, a juíza relatora Andrea Cysne Frota Maia, da Turma Recursal, fez destaques semelhantes. De acordo com ela, "a responsabilidade da recorrente reside no fato não só de ter promovido cobranças indevidas ao cliente, mas também por ter se dirigido a ele de forma descortês". 

0801485-03.2017.8.10.0050

Revista Consultor Jurídico, 23 de outubro de 2020, 18h51

15 questões conceituais do Direito Ambiental brasileiro

 Por 

1 A expressão meio ambiente não é a mais adequada tecnicamente, posto que meio e ambiente são sinônimos. Com efeito, enquanto meio significa "lugar onde se vive, com suas características e condicionamentos geofísicos; ambiente", ambiente é "aquilo que cerca ou envolve os seres vivos ou as coisas"[1]. Por isso se utiliza em Portugal e na Itália apenas a palavra 'ambiente', à semelhança do que acontece nas línguas francesas, com milieu, alemã, com unwelt, e inglesa, com environment[2]. A despeito disso, a terminologia se consagrou definitivamente ao ser positivada primeiramente pela Lei 6.938/81 e, depois, pela Constituição da República de 1988, que deu à expressão o sentido mais aberto possível.

2 O caput do artigo 225 da Constituição Federal dispõe sobre o direito ao meio ambiente "ecologicamente" equilibrado. Trata-de de uma redundância, pois não pode existir meio ambiente equilibrado que não seja meio ambiente ecologicamente equilibrado.

3 É sabido que a Carta de 1988 foi apelidada de "Constituição Verde" tendo em vista as várias referências diretas ou indiretas ao tema meio ambiente ou ecologia ao longo do seu texto. Contudo, essa não foi a primeira Lei Fundamental brasileira a fazer menção ao assunto, já que o artigo 172 da Emenda Constitucional n. 1/69, que alterou a Constituição de 1967, utilizou a expressão "ecológico" ao determinar que "A lei regulará, mediante prévio levantamento ecológico, o aproveitamento agrícola das terras sujeitas a intempéries e calamidades". "O mau uso da terra impedirá o proprietário de receber incentivos e auxílios do Governo." Infelizmente, esse dispositivo não teve maiores desdobramentos práticos, a despeito de prenunciar, de algum modo, a dimensão que a questão ambiental assumiria nas décadas seguintes.

4 Com efeito, existem inúmeras referências à temática ambiental no Texto Constitucional, havendo inclusive um capítulo inteiro sobre a questão (que é o Capítulo VI do Título VIII, onde se encontra o artigo 225 e seus parágrafos e incisos). Todavia, é perfeitamente possível afirmar que a essência do direito ao meio ambiente equilibrado está no caput desse dispositivo, o qual determina que "Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações". Trata-se da norma-matriz do Direito Ambiental, a qual deverá fundamentar a interpretação e aplicação de todas as demais regras constitucionais e infraconstitucionais sobre o assunto. Com efeito, tamanha é sua importância que esse dispositivo é apontado como uma espécie de "mãe" de todos os direitos ambientais consagrados na Constituição da República[3].

5 Apesar de configurar o meio ambiente como direito fundamental ao dispor no caput do artigo 225 que se cuida de um valor essencial à sadia qualidade de vida, a Constituição não estabeleceu o conteúdo do conceito de meio ambiente, deixando essa tarefa a cargo da doutrina, da jurisprudência e da legislação infraconstitucional. O preenchimento desse conteúdo é essencial porque implica na delimitação do próprio objeto das normas constitucionais que versam sobre a matéria, bem como do Direito Ambiental brasileiro de uma forma geral. E óbvio que a opção do legislador constituinte originário por uma conceituação em aberto não foi aleatória, pois objetivava fazer com que a atualização de tal conteúdo ocorresse sem que a Carta Magna tivesse de sofrer emendas, seguindo o natural processo de mutação constitucional.

6 O meio ambiente equilibrado não é apenas um direito, mas também um dever de toda instituição e de qualquer cidadão. É que o caput do art. 225 da Constituição estabelece que cabe "ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações".

7 O caput do artigo 225 da Constituição Federal dispõe que o meio ambiente é bem de uso comum do povo. Ocorre que pelo artigo 99 do Código Civil os bens de uso comum do povo são aqueles utilizados livremente pela população, independentemente da chancela do Poder Público, a exemplo dos rios, mares, estradas, ruas e praças. Ocorre que o meio ambiente e os seus recursos naturais podem ser encontrados tanto em propriedades privadas quanto públicas, de forma que o legislador constituinte originário não fez uso da melhor técnica legislativa. De toda forma, a interpretação doutrinária predominante é que se trata de um bem de interesse difuso, que pode se revestir de diversas formas de dominialidade.

8 A Lei 7.735/89 criou o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – Ibama, autarquia federal ligada ao Ministério do Meio Ambiente responsável pela execução da Política Nacional do Meio Ambiente em âmbito federal. O interessante é que o nome da instituição contém uma redundância e uma incongruência: o conceito de meio ambiente já inclui o de recursos naturais renováveis, e também não faz sentido só falar em recursos naturais renováveis deixando os não renováveis de fora.

9 O inciso XVI do artigo 3o da Lei 12.305/2010 (Lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos) conceitua resíduos sólidos como o “material, substância, objeto ou bem descartado resultante de atividades humanas em sociedade, a cuja destinação final se procede, se propõe proceder ou se está obrigado a proceder, nos estados sólido ou semissólido, bem como gases contidos em recipientes e líquidos cujas particularidades tornem inviável o seu lançamento na rede pública de esgotos ou em corpos d’água, ou exijam para isso soluções técnica ou economicamente inviáveis em face da melhor tecnologia disponível”. Isso implica dizer que o resíduo sólido pode ser gasoso, líquido, semisólido ou sólido.

10 No Direito Minerário é comum se dizer que o subsolo é da União e que o solo é do proprietário da área, que é chamado de superficiário. Mas não é bem assim: o minério é da União esteja ele no subsolo, aflorando no solo ou mesmo sob o solo. O inciso IX do artigo 20 da Constituição Federal dispõe que são bens da União "os recursos minerais, inclusive os do subsolo". No mesmo sentido é o inciso I do artigo 3 do Código de Minas, o qual regula "os direitos sobre as massas individualizadas de substâncias minerais ou fósseis, encontradas na superfície ou no interior da terra formando os recursos minerais do País".

11 No Direito Ambiental recuperar e restaurar não são sinônimos, uma vez que dizem respeito à obrigações distintas. De acordo com a Lei nº 9.985/2000, recuperar é a "restituição de um ecossistema ou de uma população silvestre degradada a uma condição não degradada, que pode ser diferente de sua condição original", ao passo que restaurar é a “restituição de um ecossistema ou de uma população silvestre degradada o mais próximo possível da sua condição original" (artigo 2o, XIII e XIV). Logo, quando o § 2º do artigo 225 da Carta Maior exige a recuperação da área degradada pela mineração, o que se busca na verdade é fazer com que o lugar volte a possuir características ambientais compatíveis com a sua função social, posto que  na maioria dos casos o retorno ao status quo ante é de difícil ou mesmo impossível implementação, tendo em vista a natureza extrativa da atividade. Essa obrigatoriedade de procurar o retorno ao status quo ante é um equívoco, pois não há  tal exigência, pois é a partir das peculiaridades do caso concreto que se definirão as medidas a serem tomadas, consoante dispõe o artigo 3o do Decreto 97.632/89.

12 Atualmente é praticamente uma unanimidade na doutrina e na jurisprudência a divisão do conceito jurídico de meio ambiente, para fins meramente didáticos, em meio ambiente natural, artificial, do trabalho e cultural. Entretanto, a defesa do patrimônio histórico, cultural e artístico do país já estava presente em todas as Constituições Federais desde 1934. Dessa forma, embora hoje faça parte do Direito Ambiental brasileiro, a proteção do patrimônio cultural começou a se dar muito antes da afirmação da própria discussão ambiental. Isso significa que o Direito Ambiental se apropriou e ressignificou temas que já se faziam presentes no ordenamento jurídico nacional.

13 A doutrina e a jurisprudência entendem majoritariamente que a Constituição Federal adotou o paradigma antropocêntrico ao estabelecer no caput do artigo 225 o direito de todos ao meio ambiente equilibrado, já que o ordenamento jurídico é construído pelos seres humanos com o intuito de disciplinar a vida em sociedade. Não obstante isso, o inciso VII do § 1º do dispositivo citado veda a crueldade animal em qualquer hipótese, independentemente de existir risco à saúde humana ou ao meio ambiente como um todo ou não. Cuida-se, portanto, de um dispositivo biocêntrico em meio a uma legislação predominantemente antropocêntrica.

14 O § 4º do artigo 225 da Lei Maior dispõe que "A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais". É interessante observar que três biomas brasileiros não foram incluídos, que são a caatinga, o cerrado e o pampa, ao passo que a Serra do Mar, que não é bioma, foi inserida.

15 Possivelmente, nenhuma área do Direito tem tanta sigla quanto o Direito Ambiental. Seguem alguns exemplos AAAS, AAE, AAI, ADA, Abema, ANA, Anamma, Anatel, ANM, Aneel, APA, APP, ASV, Arie, Canie, CDB, CGEN, Coema, Comuna, CNEA, CNEN, CNRH, Conaglor, Conama, FMPM, FNMA, Flona, EIA/Rima, EIV, ESEC, ETE, ETM, EVA, EVQ, FCA, FCP, Funai, Ibama, ICMBio, Iphan, LI, LO, LP, LPI, Lpper, Ppro, LPS, MMA, Oema, OGM, OJN, Omuna, Parna, PBA, PCA, PCH, PCPV, PNMA, PNRH, PNRS, Pnud, Pnuma, POPs, PRA, PRAD, Proconve, Promot, Pronacor, Pronar, Pronea, PSA, RAP, RAS, RCA, Rebio, Rexex, RL, RPPN, Revis, RVA, Sinaflor, Sindec, Singreh, Sisnama, Sisnima, Snnuc, Sopep, SRH, TAC, TC, TCFA, TR, ZA, ZEE, ZEIS… Bom parar por aqui porque a lista é realmente enorme.


[1] FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI: O Dicionário da Língua Portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

[2] FREITAS, Vladimir Passos de. A Constituição Federal e a efetividade das normas ambientais. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001.

[3] BENJAMIN, Antônio Herman. Constitucionalização do ambiente e ecologização da constituição brasileira. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (coords). Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 104.

 é advogado, professor da UFPB e da UFPE e doutor em Direito da Cidade pela UERJ. Autor de "Licenciamento ambiental: aspectos teóricos e práticos" (7. ed. Fórum, 2019).

Revista Consultor Jurídico, 24 de outubro de 2020, 14h24

https://www.conjur.com.br/2020-out-24/ambiente-juridico-15-questoes-conceituais-direito-ambiental-brasileiro

Aplicativo de transporte terá que indenizar usuário ofendido por motorista

 De acordo com os artigos 6º, VI e VIII e 14 "caput" do Código de Defesa do Consumidor e suas prerrogativas, dentre elas a inversão do ônus probatório, a plena reparação dos danos e a responsabilidade civil objetiva é da empresa prestadora de serviços.

A pretensão inicial é indenizatória de ordem moral, no pressuposto de que o autor foi moralmente ofendido pela ré
Pixabay

Com esse entendimento, a juíza do 2º Juizado Especial Cível de Brasília, condenou o aplicativo de transporte 99 Tecnologia Ltda. a pagar indenização a usuário que foi ofendido por um motorista que presta serviços à plataforma.

Segundo os autos, antes da corrida começar, o usuário mandou uma mensagem para o condutor sobre a demora da chegada do veículo, e o motorista o ofendeu moralmente, com palavras de baixo calão.

O autor mostrou as mensagens que foram trocadas por meio do aplicativo da ré, as quais evidenciam as ofensas proferidas, na visão da magistrada. A ré, por outro lado, não apresentou contraprova suficiente de afastar os argumentos o autor.

"Nesse contexto, todos os participantes da cadeia de fornecimento do serviço respondem, solidariamente, pela reparação de danos causados ao consumidor. Assim, a ré é parte legítima para responder ao pleito autoral, visto que intermediou o serviço de transporte de passageiros, cujo motorista parceiro é considerado empreendedor individual", explicou.

No entendimento da magistrada, "a conduta do motorista parceiro da ré extrapolou os limites legais, ferindo a dignidade e a integridade moral do autor, a merecer reparação". Levando em consideração a capacidade econômica das partes, natureza, intensidade e repercussão do dano, o valor da indenização a ser paga pelo autor, a título de danos morais, foi fixada em R$ 2 mil.

Clique aqui para ler a decisão
0716944-21.2020.8.07.0016

Revista Consultor Jurídico, 24 de outubro de 2020, 14h39

O abandono afetivo do idoso gera dever de indenizar por danos morais

 Por 

O Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003), mais precisamente em seu artigo 3º, determina como direito da pessoa idosa a manutenção dos vínculos afetivos com a família e a comunidade. Estabelece ainda como obrigações da família, da sociedade e do poder público proporcionar e assegurar ao idoso efetividade dos direitos.

O idoso, assim como a criança e o adolescente, necessita de maior defesa de seus direitos, sob um robusto amparo legal, visando à dignidade, tão ventilada na Constituição Federal e no Estatuto da Pessoa Idosa, bem como à sua qualidade de vida.

Quando se menciona a qualidade de vida, ou mesmo o direito à vida digna do idoso, o fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana está intrínseco. Não apenas pelo estatuto constituir um microssistema reconhecedor das necessidades especiais dos mais velhos, mas por tratar-se de um conjunto de normas definidoras de direitos e garantias fundamentais de aplicação imediata, conforme dicção constitucional [1].

Dito isso, o estatuto também veda qualquer tipo de negligência, discriminação, violência, crueldade e opressão (artigo 4 º EI), fazendo gerar responsabilidade de pessoas físicas e jurídicas que não forem observadas na proteção do idoso [2]. Leia-se dicção do artigo 5º do Estatuto do Idoso:

"Artigo 5o — A inobservância das normas de prevenção importará em responsabilidade à pessoa física ou jurídica nos termos da lei" (Lei 10.741/2003).

Muito embora não se queira tomar por verdade, infelizmente a sociedade acaba constrangendo os idosos, tornando-os socialmente desconsiderados e em inexplicável estado de inferioridade. E pior, "não é incomum depararem com parentes próximos buscando interditá-los com receio de dilapidarem seus pertences e suas riquezas materiais, já reivindicada pelos futuros herdeiros vocacionados em lei, com suas intangíveis legítimas" [3] (MADALENO, 2017).

Mas o ponto alto deste estudo é o abandono afetivo dos idosos.

Já se ouviu dizer que "você colhe o que planta", ou seja, se ao longo da vida você deu amor e afeto aos seus, você receberá na velhice e não precisará mendigar carinho. Todavia, essa verdade não é absoluta, idosos estão em asilos com a maior queixa da ingratidão por parte daqueles a quem deram a vida.

Os asilos dão abrigo e cuidam dos idosos, mas cuidar não é o mesmo que amar. O amor, visto como um gerador de bem-estar, é responsabilidade da família, e não da comunidade, da sociedade ou do poder público. O dever de cuidado e zelo psicológico para com os idosos é da família. Quanto a isso, o Estatuto do Idoso, assim como a Carta Magna, deixa expresso esse dever de cuidado, respeito e afeto:

"Artigo 98 — Abandonar o idoso em hospitais, casas de saúde, entidades de longa permanência, ou congêneres, ou não prover suas necessidades básicas, quando obrigado por lei ou mandado. Pena: detenção de seis meses a três anos e multa" (Lei 10.741/2003).

"Artigo 229 — Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.
Artigo 230 — A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.

§1º. Os programas de amparo aos idosos serão executados preferencialmente em seus lares" (Constituição Federal/88).

É sabido que ninguém é obrigado a amar o outro, por mais frio que pareça ser, porém, é, sim, dever daquele a quem é inerente a responsabilidade de zelo e amparo, ainda que só financeiramente.

Gize-se, outrossim, aquele, ao não procurar saber notícias suas, demonstra desprezo e desafeto para com o idoso. E, diante disso, o desinteresse importa, sim, em dever de indenizar.

Nesse diapasão, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, V e X [4], prevê que o dano moral decorrente da violação da vida privada, da honra, e da imagem das pessoas deverá ser indenizado, bem como os artigos 186 e 927, ambos do Código Civil, assim estabelecem [5].

Acerca do tema de indenização por abandono afetivo, encontra-se na jurisprudência catarinense acerca do abandono da criança [6], que deve ser lido em interpretação estendida ao idoso, pois também merece guarida nesse sentido, assim, mutatis mutandis:

"Convivência do pai com a filha evidenciada. Dano moral não verificado. A reparação via indenização por abandono afetivo, muito embora juridicamente possível, depende de considerável respaldo probatório e de circunstâncias extraordinárias que justifiquem a indenização e que não representem simplesmente a indenização pelo amor não recebido. O dano por abandono afetivo é juridicamente viável, mas excepcional" [7].

Não somente esse é o entendimento jurisprudencial, mas já restou ajuizada ação civil pública pelo Ministério Público no Tribunal de Justiça de Santa Catarina para medida de proteção de idoso por abandono afetivo e material, leia-se:

"Civil pública ajuizada pelo ministério público de Santa Catarina. Medida de proteção em favor de idoso. Abandonos afetivo e material comprovados. Necessidade de colocação do idoso em instituição acolhedora para pessoas com idade avançada. Responsabilidade solidária dos entes públicos e familiares. Dever constitucional de prestar assistência ao idoso referente à manutenção da sua dignidade e bem-estar. Manutenção da sentença. Recursos desprovidos. Incumbe à familia e aos entes públicos a responsabilidade solidária de empreender esforços que efetivem o dever fundamental de proteção à dignidade e o bem-estar dos idosos que se encontram em situação de risco, por abandono material e afetivo, com fundamento na Constituição Federal e ao Estatuto do Idoso (Lei Federal nº 10.741/03)" (TJSC, Apelação / Remessa Necessária nº 0900012-05.2014.8.24.0050, de Pomerode, relator Jaime Ramos, 3ª Câmara de Direito Público, j. 10-12-2019).

De fato, ninguém é obrigado a amar e a manter-se atrelado a outra pessoa contra a vontade, mas vir a prejudicar direito de outrem gera o dever de indenizar, até mesmo porque o direito de um acaba quando começa o direito do outro. Por fim, conclui-se que é dever da família promover o bem-estar psicológico e, em razão desse abandono, deve aquele que cometeu o ato ilícito compensar por danos morais o idoso.

 


[1] "Artigo 5º — § 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata" (CF/88).

[2] [2] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias - 10ª ed.rev.,atual.e ampl., - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 654/655.

[3] MADALENO, Rolf. Direito de Família - 7ª ed.rev.,atual. e ampl. - Rio de Janeiro: Forense. 2017, p. 1240.

[4] "Artigo 5º — V. É assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou imagem.
Artigo 5º — X. São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito à indenização pelo dano moral decorrente de sua violação"
.

[5] "Artigo 186 — Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Artigo 927 — Aquele que, por ato ilícito (artigos 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo"
.

[6] "[...] Ademais, a possibilidade de compensação por danos morais, em razão do abandono psicológico exige a demonstração do ilícito civil, cujas especificidades ultrapassem, sobremaneira, o mero dissabor" (AgInt no Agravo em Recurso Especial nº 492.243/SP, rel. Minº Marco Buzzi, j. 5-6-2018, grifo nosso) (TJSC, Apelação Cível nº 0000014-80.2013.8.24.0067, de São Miguel do Oeste, rel. Des. Stanley da Silva Braga, Sexta Câmara de Direito Civil, j. 18-06-2019).

[7] (TJSC, Ac nº 2014.078525-9, Rel. Des. Gilberto Gomes de Oliveira, j. 11/02/2016

 é advogada de Direito de Família e Sucessões, advogada associada do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), pós-graduada em Direito Público pela Universidade Regional de Blumenau (SC) e em Direito de Família e Sucessões pela Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP).

Revista Consultor Jurídico, 24 de outubro de 2020, 17h25

https://www.conjur.com.br/2020-out-24/francine-schmitt-abandono-afetivo-idoso

Prefeitura que apoia festa religiosa não fere laicidade do estado, diz TJ-RS

 Por 

Município que apoia evento artístico de interesse da coletividade, embora com apelo religioso, não viola a laicidade do estado. Afinal, o inciso I do artigo 19 da Constituição proíbe união, estados e municípios de estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencionando-os ou mantendo relações de dependência ou aliança.

Vista aérea de Imbé, no litoral norte do RS
MP-RS

Com este entendimento, a 21ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul confirmou sentença que julgou improcedente ação civil pública (ACP) ajuizada pela Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (Atea) contra o município de Imbé, no litoral norte gaúcho.

A ação visava a impedir que a municipalidade prestasse qualquer subvenção ao "Acampamento de Verão com Jesus", ocorrido nos dias 15, 16 e 17 de fevereiro de 2019, sob pena de pagar multa diária.

O acórdão, com entendimento unânime, foi lavrado na sessão telepresencial do dia 8 de outubro.

Sentença improcedente
Na primeira instância da Justiça gaúcha, a 3ª Vara Cível da comarca de Tramandaí julgou improcedentes os pedidos vertidos na ACP, por não verificar afronta ao princípio da laicidade, que prega a desagregação da religião e seus valores sobre os atos governamentais.

Apesar de a parte ré ter auxiliado no apoio, organização e financiamento do evento religioso, o juízo entendeu que não houve violação do artigo 19 da Constituição.

A juíza Milene Koerig Gessinger disse que não se pode confundir apoio à realização de evento de interesse público com a conduta vedada no dispositivo constitucional, ainda mais quando os autos não trazem nenhum elemento que aponte para o uso indevido do dinheiro público.

Esforço para atrair turistas
Em complemento à fundamentação da sentença, o relator da apelação no TJ-RS, desembargador Armínio José Abreu Lima da Rosa, destacou que a contratação de dois cantores de música gospel de renome nacional mostra que a intenção do Município de Imbé era atrair turistas na alta temporada de verão. E este acesso de público, como se sabe, fomenta a atividade hoteleira, restaurantes e o comércio em geral.

"Basta a leitura da programação do evento 'Acampamento de Verão com Jesus' para ser possível verificar que, embora presente a temática religiosa, se trata de festividade com evidente cunho turístico, cultural, artístico e recreativo, com a realização de diversas atividades, como teatro e mateada [consumo de chimarrão, hábito típico do gaúcho], além da realização de diversos shows musicais"’, anotou no voto.

Colaboração de interesse público
Ao término da leitura do seu voto, o desembargador-relator citou o desfecho da ACP 0328463-07.2019.8.19.0001 no Supremo Tribunal Federal, também manejada pela Atea, contra a apresentação da cantora Anaylle Sullivan e do padre Marco Làzaro no Réveillon 2020 do Rio de Janeiro.

Para o ministro Dias Toffoli, "é fato público e notório que foram contratados para se apresentarem no evento diversos profissionais, de variadas expressões artísticas e culturais apreciadas no país, não se admitindo que a categorização em determinado estilo musical seja usada como fator de discriminação para fins de exclusão de participação em espetáculo que se pretende plural". Assim, ele deferiu a tutela de urgência para suspender os efeitos da decisão cautelar obtida pela Atea junto à Justiça fluminense.

"‘Em suma, um Estado Laico não nega a existência de diversas religiões, sem professar nenhuma delas, nem obsta a verificação de eventuais relações pontuais com qualquer uma, visando à colaboração de interesse público, tal como ocorreu na hipótese em apreço [caso de Imbé], situação ressalvada no artigo 19, I, in fine, Constituição Federal"’, complementou o desembargador Armínio.

Clique aqui para ler a sentença
Clique aqui para ler o acórdão
Clique aqui para ler a decisão do ministro Dias Toffoli
9000242-52.2019.8.21.0073 (Comarca de Tramandaí)

 é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio Grande do Sul.

Revista Consultor Jurídico, 25 de outubro de 2020, 13h42

https://www.conjur.com.br/2020-out-25/apoio-festa-religiosa-nao-afronta-laicidade-estado