sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

A filiação havida na constância do casamento

Vê-se que a noção da família matrimonializada deixou de ser o centro da sociedade, como regra, tendo a lei respaldado também outras formas de convivência, sem que, para tanto, houvesse de discriminar as demais entidades familiares. Tal premissa se legitima com a consagração da União Estável como forma de constituição familiar, avessa ao casamento, ainda que com características ligadas a esta, por seus meios de regime dotais.[71]
Ademais, há presente em nosso sistema civil formas de reconhecimento da paternidade que legitimam-na ao ponto do estabelecimento de presunções, levando em consideração, nas palavras de Paulo Lôbo[72] “a natural dificuldade em se atribuir a paternidade ou maternidade a alguém, ou então, de óbices fundados em preconceitos históricos decorrentes da hegemonia da família patriarcal e matrimonializada”.
Sem adentrar, com maiores detalhes, na correspondência legal necessária da norma de legitimação da presunção de paternidade e maternidade quando da existência de vínculo matrimonial, coloquemos as regras postas no artigo 1.596 do Código Civil Brasileiro[73], tais sejam:
Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:
I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal;
II  - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento;
III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;
IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;
V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.
Maria Berenice Dias assenta a filiação havida na constância do casamento, ou seja, aquela decorrente da presunção legal de correspondência de filho por consequência do estabelecimento de um vínculo matrimonial deste para com a genitora do filho,à uma “ficção jurídica”, quando dispõe que “pai será sempre o marido da mãe”.
Seria uma correspondência direta ao princípio do pater is est quem nuptiae, algo como “pai é quem assim demonstram as justas núpcias”, adentrado diretamente e com reiteração na legislação civil de 1916.[74]
Silvio de Salvo Venosa coloca que a disposição no Código Civil Brasileiro de 1916 era:
[...] fundamentada no que usualmente ocorre, possuía um embasamento cultural e social, em prol da estabilidade da família, uma vez que impedia que se atribuísse a prole adulterina à mulher casada. A maternidade comprova-se pelo parto (arts. 241 e 242 do Código Penal). Daí a regra tradicional mantida pelo novo Código no sentido de que “não basta a confissão materna para excluir a paternidade”. [75]
Caio Mario da Silva Pereira[76] cita que, em complemento com o aduzido por Venosa, houve uma priorização da lei civil, ainda que haja disposição de entes familiares diversos, além dos compostos, por base, pelo casamento, àqueles vínculos formados por este último.
Não se podendo provar diretamente a paternidade, toda a civilização ocidental assenta a ideia de filiação num “jogo de presunções”, a seu turno fundadas numa probabilidade: o casamento pressupõe as relações sexuais dos cônjuges e fidelidade da mulher; o filho que é concebido durante o matrimonio tem por pai o marido de sua mãe. E, em consequência, “presume-se filho o concebido na constância do casamento dos pais”. Esta regra já vinha proclamada no Direito Romano: pater is est quem iustae nuptiae demonstrant. Embora todos os autores proclamem o caráter relativo desta presunção (iuris tantum), deve-se acentuar, contudo, que a prova contrária é limitada. [77]
Fica clara a intenção do legislador, quando manteve a forma de se presumir a filiação havida no casamento, a buscar a manutenção deste, preservando-o de possíveis acontecimentos que o fizessem cessar. Seria absurda, ao entendimento dos mais conservadores viventes em uma sociedade, a ideia de que um homem ou mesmo mulher, que contraia núpcias com alguém, mas que tenha filhos de outra pessoa que não aquela a que oficialmente está ligada por laços matrimoniais.[78]
Uma dicotomia se faz presente, quando tratamos da presunção pater is est, se levarmos em consideração a indisposição desta forma de reconhecimento de filho para a União Estável. Paulo Nader[79] entende que mesmo nada dispondo a norma positiva acerca da possibilidade de presunção de paternidade na União Estável, havendo esta a ser uma das entidades familiares protegidas constitucionalmente, de forma expressa, por intermédio do art. 226, cabível a incidência deste instituto, porquanto a aplicação do principio da igualdade das espécies de família.
Para Rolf Madaleno[80], aplicar-se-á, analogicamente, as regras de presunção filiativa também à União Estável, ao ponto que deverá ser visto, sempre, o bem estar do nascente e que, diante da negatória de paternidade, faz-se simples a sua desconstituição, pois, “notadamente, nos dias atuais, a ciência conferiu ao homem a possibilidade de impugnar a filiação a ele imposta por presunção “
De forma absolutamente injustificada a lei não estende a presunção de paternidade à União Estável. Tal leva boa parte da doutrina a afirmar que a presunção pater est só existe no casamento. Talvez por isso não é imposto o dever de fidelidade aos conviventes, somente o dever de lealdade (CC 1.724). A diferenciação é de todo desarrazoada. Se a presunção é de relacionamento sexual durante o casamento, esta mesma presunção existe na União Estável. Cabe um exemplo. Falecendo o genitor durante a gravidez ou antes de ter logrado registrar o filho, este terá de intentar ação investigatória de paternidade. A ação será proposta pelo filho representado pela mãe e no polo passivo vai figurar sua mãe, na condição de representante do espólio. A saída é nomear um curador ao autor, mas a solução é admitir a presunção da filiação. Assim, ainda que a referência legal seja à “constância do casamento”, a presunção de filiação, paternidade ou maternidade aplica-se à União Estável. [81]
Já Guilherme Calmon Nogueira da Gama[82] é mais cauteloso, vez que coloca os institutos do Casamento e da União Estável em igualdade de condições, conforme tutelamento pelo Estado à todas as entidades familiares, coadunado pelo art. 226, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil, mas lembra que se tratam de diferentes espécies e com tratamento diferenciado legitimado pela própria Carta Magna.
[...] no âmbito das relações internas entre os cônjuges, comparativamente, ao âmbito das relações internas entre os companheiros, haverá importantes diferenças – inclusive quanto à procriação, sob determinados aspectos-, do contrário, não haveria sentido na própria previsão constitucional contida no §3º do art. 226, a respeito de a lei dever facilitar a conversão do companheirismo em casamento [...]
De forma ainda mais enfática, Ana Elizabeth Lapa Wanderley Cavalcanti[83] dispõe a impossibilidade de presunções de paternidade na União Estável, se colocando na corrente legalista do tema, aduzindo a alta referibilidade da lei no que tange exclusivamente às relações matrimoniais, imputando, como alternativa, a Ação de investigação de paternidade para determinação do estado filiativo. 
Quanto às duas primeiras regras de presunção paternal, tem-se uma regra positivada, objetiva, que limita a maiores discussões. Ademais, conforme referido por Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald[84], há correspondência direta, pelos prazos trazidos pelos incisos I e II do artigo 1.597, do período mínimo e máximo de uma gestação viável, realçando que a contagem do primeiro inicia-se com o princípio da convivência conjugal, e não da celebração do casamento.
É, inclusive, a disposição legislativa de corresponder não a celebração do casamento, mas ao período convivencial do casal, que legitimaria, além do disposto no artigo 226 da Constituição da República Federativa do Brasil, a aplicação da presunção de paternidade aos filhos havidos na constância da União Estável. Neste sentido, inclusive, é o julgado do Superior Tribunal de Justiça[85]:
RECURSOS ESPECIAIS. AÇÃO DE ANULAÇÃO DE ATOS JURIDICOS TRANSLATIVOS DE PROPRIEDADE EM CONDOMINIO. LEGITIMIDADE "AD CAUSAM" ATIVA DE FILHOS NÃO RECONHECIDOS DE CONDOMINO JA FALECIDO. A REGRA "PATER EST..." APLICA-SE TAMBEM AOS FILHOS NASCIDOS DE COMPANHEIRA; CASADA ECLESIASTICAMENTE COM O EXTINTO, SUPOSTA UNIÃO ESTAVEL E PROLONGADA. [...] (grifei)
Da mesma maneira, é o julgado do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina[86], aos termos:
TJSC. Da filiação. Reconhecimento de paternidade post mortem. Casal que vivia em União Estável. Filho nascido 134 dias após o falecimento do companheiro. Presunção de filiação. Art. 226, §3º da CRFB/88. Entidade familiar. Aplicação do art. 1.597 do CC/2002. Desnecessidade de ajuizamento de ação de investigação de paternidade. Sob a ótica do artigo 226, § 3º, da Constituição Federal, deve-se aplicar à União Estável o disposto no artigo 1.597 do Código Civil. Assim, se o infante nasceu 134 após o rompimento da união, pela morte do companheiro, a paternidade deve ser presumida, e é dispensada a necessidade de propositura de ação para investigação de filiação.
Por conseguinte, coloca-se uma inovação legislativa, se compararmos com ao que se dispunha na legislação Civil de 1916: a existência das espécies homóloga a heteróloga de filiação, acompanhadas de suas possibilidades presuntivas ao estabelecimento da paternidade. Há de se diferenciar a inseminação artificial homóloga da heteróloga, para fins de compreensão do artigo 1.597, incisos III e IV, do Código Civil Brasileiro. Enquanto a primeira diz respeito ao fornecimento de material genético próprio do marido para fecundação do óvulo da esposa, o último refere-se à utilização de sêmen de terceiro. Vislumbra-se, no derradeiro caso, conforme preceituação legislativa, a necessidade de expressa autorização do marido para que assim se proceda.[87]
Há, no caso da fecundação por intermédio de inseminação artificial heteróloga, uma correspondência direta da paternidade socioafetiva, ainda que na sua mais íntima base formativa. Segundo preconiza Maria Helena Diniz[88]:
A presunção do art. 1.597, V, visa a instaurar a vontade procracional no marido, como meio de impedi-lo de desconhecer a paternidade do filho voluntariamente assumido ao autorizar a inseminação heteróloga de sua mulher. A paternidade, então, apesar de não ter componente genético, terá fundamento moral, privilegiando-se a relação socioafetiva. Seria torpe, imoral, injusta e antijurídica a permissão para o marido que, conscientemente e voluntariamente, tendo consentido com a inseminação artificial com esperma de terceiro, negasse, posteriormente, a paternidade. Como admitir àquele que deu o nome à criança, tratando-a, perante a sociedade, como filha, venha a negar sua filiação, ferindo sua dignidade como ser humano? Justa não seria a permissão da propositura de ação, com o escopo de desconstituir o registro de nascimento pelo pai que reconheceu aquele filho, mesmo sabendo da inexistência do vínculo biológico, desde que esteja evidenciada a situação de paternidade socioafetiva. (grifei)
Não obstante a existência de presunções legais de filiação, caberá, à sua discordância, conforme retrogradamente explicitado, a imputação da Ação Negatória de Paternidade.
Via-se, na legislação civil anterior, que as possibilidades de se negar a paternidade eram restritas, vez que estas estavam vinculadas a disposições objetivas, além de conter prazo específico para apresentação desta impugnação.[89]
O novo Código, em sentido exatamente diverso ao adotado na anterior codificação, afasta por inteiro qualquer restrição à negatória de paternidade pelo marido [...]. Sendo nova, merece a norma cuidadosa leitura e estudo para sua adequada interpretação, considerando que, se de um lado era extremamente rigoroso o legislador anterior, permitir agora, livremente e em qualquer circunstância, a rejeição do pai presumido ao filho, pode consagrar idênticas injustiças.[90]
Ainda que sejam reconhecidamente subjetivos os motivos que levam ao consagrado pai a negar a paternidade do filho gerado na constância do casamento, há casos na lei em que se dispõe, diretamente, ao ilide da controvérsia. É o caso, por exemplo, daquele que prova sua impotência à época da concepção. Para Maria Berenice Dias, no entanto, esta assertiva é desarrazoada, por não se poder falar, ao mundo moderno, em impotência ou mesmo infertilidade. Em princípio, não se entrando na seara da filiação afetiva, o que se necessita, para fins de vínculo genético de filiação, é um simples exame de DNA, “ainda que não mereça ser sacralizado”. Assim, se torna mais simples a realização deste a se discutir se o indivíduo era impotente/estéril à época da concepção do filho gerado.[91]
No que concerne a legitimidade para proposição da referida Ação, o atual Código Civil retirou a noção privativa de que a ação negatória caberia somente ao marido da genitora, constante quando da aplicação da anterior legislação, e acrescentou que os herdeiros do impugnante prosseguirão na ação após a morte deste. [92]
Quanto ao prazo para se propor a Negatória de Paternidade, necessária se faz a brilhante sintetização arrolada por Arnaldo Wald[93]:
O prazo decadencial para propor a ação negatória de paternidade já vinha sendo desconsiderado, principalmente após o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, cujo art. 27 prescreve que “o reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais e seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça”. Atento à evolução da jurisprudência, da doutrina e da legislação a respeito, a ação negatória de paternidade, com a superveniência do Código Civil de 2002, passou a ser imprescritível (art. 1.601).
Desta forma, coloca-se, pormenorizadamente, a filiação havida na constância do casamento, suas formas de presunção e negação, antevendo aquela posta fora da matrimonialidade, conforme ver-se-á por conseguinte.

BARCELOS, Daniel Gilson. A formação do estado filiativo na socioafetividade e o direito sucessório por sua decorrência . Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3498, 28jan.2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/23563>. Acesso em: 1 fev. 2013.

A formação do estado de filiação e o reconhecimento de filho

Depois de uma disposição geral acerca da filiação, tendo por conta seu desenvolvimento histórico e de concepção ao Direito Civil-Constitucional, necessária se faz a tratativa conceitual de seu moderno instituto.
Silvio Rodrigues[64] coloca a filiação como sendo “a relação de parentesco consanguíneo, em primeiro grau e em linha reta, que liga uma pessoa àquelas que a geraram, ou a receberam como se tivesse gerado”. Esta assertiva, bem a rigor, correlacionada com o disposto por outros autores, no que tange à expressão de necessidade de consanguinidade para estabelecimento do estado filiativo, é um tanto quanto equivocada, vez que restringe o estabelecimento doutras espécies, tal como veremos por oportuno.
Maria Berenice Dias[65] cita a importância de que, após o nascimento de determinado indivíduo, este se coloque na posição de determinada família, vez que se torna impossível a sobrevivência do ser humano, por princípio, autonomamente. Por um longo período de tempo, este deverá ser guiado por pessoas capazes de lhe dar afeto e base estrutural para o pleno desenvolvimento de suas capacidades intelectuais e metafísicas.
A nova metodologia jurídica adotada com a Constituinte de 1988 abarcou o sentido de proteção do indivíduo, trazendo-o para a concepção de formar um sujeito de direito. É neste sentido que Maria Berenice Dias[66] coloca a família, reafirmando a conotação social da lei, concluindo que:
Todas essas mudanças refletem-se na identificação dos vínculos de parentalidade, levando ao surgimento de novos conceitos e de uma nova linguagem que melhor retrata a realidade atual: a filiação social, filiação socioafetiva, estado de filho afetivo etc. Ditas expressões nada mais significam que a consagração, também no campo da parentalidade, do novo elemento estruturante do direito das famílias. Tal como aconteceu com a entidade familiar, a filiação começou a ser identificada pela presença do vínculo afetivo paterno-filial
É com esta premissa adotada, que Paulo Lôbo aduz, conceitualmente, a noção de filho, dando encaixe em situações outras que não a restringem.
Filiação é o conceito relacional; é a relação de parentesco que se estabelece entre duas pessoas, uma das quais nascida da outra, ou adotada, ou vinculada mediante a posse de estado de filiação ou por concepção derivada de inseminação artificial heteróloga. Quando a relação é considerada em face do pai, chama-se paternidade, quando em face da mãe, maternidade. Filiação procede do latim filiatio, que significa procedência, laço de parentesco dos filhos com os pais, dependência, enlace.[67]
Nesta mesma seara interpretativa é que Maria Helena Diniz[68]se coaduna. Assim como Paulo Lôbo, a douta jurista confirma a presença doutras espécies de filiação, e cientifica a proteção jurídica, mediante disposição constitucional, ainda que intrínseca, da espécie socioafetiva.
Importante salientar que, por conseguinte, trataremos, em capítulo específico, da filiação socioafetiva, tema central deste trabalho monográfico. A citação desta espécie de filiação se faz imperiosa ao tempo, vez que a noção de filiação, com a nova constituinte, reiterando a já explicitada desvinculação do texto constitucional civil para com as regras do Direito Canônico, fez com que a origem do filho seja irrelevante para o Direito, bastando, para a compatibilização da relação jurídica entre o intitulado pai (lato senso) e o instituído filho, a relação prática e convivencial deste para com aquele.
Há a coadunação do explicitado às palavras de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald[69].
Assim, sob o ponto de vista técnico-jurídico, a filiação é a relação de parentesco estabelecida entre pessoas que estão no primeiro grau, em linha reta entre uma pessoa e aqueles que a geraram ou que a acolheram e criaram, com base no afeto e na solidariedade, almejando o desenvolvimento da personalidade e a realização pessoal. Remete-se, pois, ao conteúdo do vínculo jurídico entre as pessoas envolvidas (pai/mãe e filho), trazendo a reboque atribuições e deveres variados.
Se torna evidente e necessária a aplicação do disposto quando do consagrado princípio da igualdade entre os filhos, independente de sua origem de parentalidade, conforme colocação do artigo 1.596 do Código Civil Pátrio, reiterando a regra do artigo 227, §6º da Constituição da República Federativa do Brasil.
Conforme preconiza Maria Helena Diniz[70], a classificação de filhos pode ser feita somente como consequência de sua didática sem que, para tanto, isto signifique uma diferenciação de tratamento. Desta maneira, serão tratados os filhos tidos matrimoniais e não matrimoniais, por conseguinte e, consequentemente, aqueles havidos por adoção, cada um em seu específico tópico.

BARCELOS, Daniel Gilson. A formação do estado filiativo na socioafetividade e o direito sucessório por sua decorrência . Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3498, 28jan.2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/23563>. Acesso em: 1 fev. 2013.

A principiologia constitucional aplicada à filiação

A noção de filiação dentro do contexto amplo da família sofreu, ao longo dos séculos, uma gradativa modificação, a ponto de o legislador colocar, cada vez mais, a subjetividade na sua formação tendo por conta os anseios sociais trazidos com a relativização constante de conceitos restritos de tal instituto.[37]
Com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o Direito aproximou-se das relações sociais, deixando de se fazer constante seu caráter meramente político, abordando também direitos individuais e de cunho social, afirmando a formação de uma “nova e fecunda teoria constitucional”.[38]
Uma questão que devemos ter bastante clara na análise da Constituição Federal de 1988, no que se refere à família, é que ela apenas reconheceu a aevolução que já estava latente na sociedade brasileira. Não foi a partir dela que a mudança na família brasileira ocorreu. Constitucionalizaram-se valores que estavam impregnados e disseminados no seio da sociedade. Dos fatos e valores caminhou-se para as normas, tardiamente, é verdade. O texto constitucional de 1988 contemplou e abrigou uma evolução fática anterior da família e do Direito de Família que estava represado na doutrina e na jurisprudência. A Constituição de 1988, estimulada pela emenda Nelson Carneiro, mostrou que esses novos valores já conhecidos na sociedade não iriam causar trauma algum à nação. Albergou-se no plano constitucional o que já se tinha desenvolvido no plano sociológico da família.[39]
Paulo Bonavides[40] nos coloca a formação da constitucionalização dos princípios em duas fases: a programática e a não programática, que tem concepção objetiva. “Nesta última, a normatividade constitucional dos princípios ocupa um espaço onde releva de imediato a sua dimensão objetiva e concretizadora, a positividade de sua aplicação direta e imediata.”
Explica ainda que há uma espécie de peregrinação normativa da efetiva aplicação de princípios, que tiveram por origem na formação nos Códigos, acabando nas Constituições, tendo por fundamento a sua correspondência àqueles gerais de Direito. [41]
Assim, havendo a aplicada Constituição de estabelecer normas gerais de Direito que tutelem conceitos amplos de origem/respaldo social, tais como os de família, se coloca a aplicação prática dos princípios, constituindo “proposições genéricas que servem de substrato para a organização de um ordenamento jurídico”[42].
Os princípios são normas jurídicas que se distinguem das regras não só porque tem alto grau de generalidade, mas também por serem mandatos de otimização. Possuem um colorido axiológico mais acentuado que as regras, desvelando mais nitidamente os valores jurídicos e políticos que condensam. Devem ter conteúdo de validade universal. Consagram valores generalizantes e servem para balizar todas as regras, as quais não podem afrontar as diretrizes contidas nos princípios. [43]
À prática da feitura do texto constitucional, aduz Caio Mário da Silva Pereira que:
No âmbito do debate que envolve a constitucionalização do Direito Civil, mencione-se ainda o §1º do art. 5º do Texto Constitucional, que declara que as normas definidoras dos direitos e das garantias fundamentais têm aplicação imediata. Considero, no entanto, que não obstante preceito tão enfaticamente estabelecido, ainda assim, algumas daquelas normas exigem a elaboração de instrumentos adequados à sua fiel efetivação.[44]
Segundo o mesmo autor, os institutos citados são condicionados,em alguns casos, a mecanismos outros além dos princípios jurídicos constitucionais, dizendo respeito à seara processual,compondo a subjetividade do Direito.
[...] o direito subjetivo como faculdade de querer, porém dirigida a determinado fim. O poder abstrato é incompleto, desfigurado. Corporifica-se no instante em que o elemento volitivo encontra uma finalidade prática de atuação. Esta finalidade é o interesse de agir. [45]
Tendo grande relevância a aplicação dos princípios à norma infraconstitucional posta, não deixando de perceber a própria normatização social dentro da Carta Maior, a juridicidade prática principiológicafaz com que o trabalho do intérprete do caso concreto leve em conta não só a feitura seca do texto legislativo, mas que se atenha, também, a valores e interesses abarcados nesta premissa.[46]
Daí a necessidade de revisitar os institutos de direito das famílias, adequando suas estruturas e conteúdo à legislação constitucional, funcionalizando-os para que se prestem à afirmação dos valores mais significativos da ordem jurídica. Assim, cabe trazer alguns dos princípios norteadores do direito das famílias, ainda que não se pretenda delimitar números nem esgotar seu elenco. [47]
Dentro dessa principiologia familiar, destaca-se a presença de uma que serve de base para todas as outras, tal seja, a dignidade da pessoa humana. Sendo esta objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, conforme preconiza o artigo 1º, III, da referida legislação, a preservação da dignidade humana atua em todas as vertentes do sistema normativo-jurídico, havendo de ser observado tanto nas relações públicas quanto nas privadas.[48]
Assim, as relações jurídicas privadas familiares devem sempre se orientar pela proteção da vida e da integridade biopsíquica dos membros da família, consubstanciada no respeito e asseguramento dos seus direitos de personalidade.[49]
Falar de Dignidade da Pessoa Humana é falar do “mais universal de todos os princípios”. Nos dizeres de Maria Berenice Dias[50]é um macroprincípio do qual se irradiam todos os demais: liberdade, autonomia privada, cidadania, igualdade e solidariedade, uma coleção de princípios éticos.
A Constituição Federal de 1988 ao fixar a dignidade da pessoa humana como princípio central do Estado, jurisdicizando o valor humanista, disciplinou a matéria ao longo do texto através de um conjunto de princípios, subprincípios e regras, que procuram concretizá-lo evidenciando os efeitos que deste devem ser extraídos. [51]
Carlos Roberto Gonçalves classifica o Direito de Família como “o mais humano de todos os ramos do Direito”. A assertiva se dá pela correspondência da “evolução do conhecimento científico, dos movimentos políticos e sociais do século XX e o fenômeno da globalização” que “provocaram mudanças profundas na estrutura da família e nos ordenamentos jurídicos de todo o mundo.”[52]
Enfatiza Rodrigo da Cunha Pereira:
Todas essas mudanças trouxeram novos ideais, provocaram um ‘declínio do patriarquismo’ e lançaram bases de sustentação e compreensão dos Direitos Humanos, a partir da noção da dignidade da pessoa humana, hoje insculpida em quase todas as constituições democráticas. [53]
A crise instada ao instituto familiar inexiste, segundo Maria Helena Diniz, e dá a impressão de efetividade pelas maçantes transformações a que se passa, tendo por conta a ‘despatriarcalização’ do ordenamento jurídico-familiar.[54]A dignidade da pessoa humana como base para a formação da atual República denota e reitera o viés social a que nos submetemos à moderna constituinte.
Dentro da premeditação social da norma, adentremos num dos pilares da presente nuance fática da filiação dentro do ordenamento: a da igualdade entre os filhos, independentemente da sua origem de parentalidade.
Dispõe o art. 227, § 6º da Constituição da República Federativa do Brasil: que “os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”[55]
Até o advento da aplicada Codificação Civil, datada do ano de 2002, havia a inaplicação expressa do disposto quando da classificação filiativa, porquanto o que colocava-se em evidência quando da existência do artigo 358 do Código Civil de 1916[56], que aduz a impossibilidade de reconhecimento dos filhos incestuosos e adulterinos.
A partir dessas ideias vale afirmar que todo e qualquer filho gozará dos mesmos direitos e proteção, seja em nível patrimonial, seja mesmo na esfera pessoal. Com isso, todos os dispositivos legais que, de algum modo, direta ou indiretamente, determine tratamento discriminatório entre os filhos terão de ser repelido do sistema jurídico. [57]
Com a promulgação do Código Civil de 2002, viu-se a reiteração do disposto constitucionalmente na legislação infra. Tal disposição encontra guarida aos artigos 1.596 a 1.629, dos capítulos que tratam da filiação, do reconhecimento dos filhos e da adoção.[58]
Por fim, não menos importante, reitera-se o conteúdo do princípio da solidariedade familiar, com expressão ratificada pelos artigos 3º, I e 229, da Constituição da República Federativa do Brasil, dando por conta a “superação do individualismo jurídico e busca a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a qual se origina nos vínculos de afetividade que marcam as relações familiares, abrangendo os conceitos de fraternidade e reciprocidade”.[59]
Indica a solidariedade como um vínculo de sentimentos que concorrem para a realização do indivíduo e o desenvolvimento de sua personalidade. No núcleo familiar, evidenciam-se os deveres de mútua assistência entre os cônjuges, de proteção da criança e do adolescente (A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança inclui a solidariedade entre os seus princípios, presente também no Estatuto da Criança e do Adolescente em seu artigo 4º) e amparo aos idosos, previstos nos artigos 226 a 230 da Constituição Federal.[60]
O princípio da solidariedade familiar encontra respaldo noutro princípio constitucional, tal seja o da solidariedade social. Há dois aspectos a que devem ser vislumbrados: o externo, quando desemboca no Poder Público o ônus de garantir a aplicabilidade de seu preceito e o interno, que diz respeito à constrição de políticas de atendimento por parte da sociedade civil diante da disposição pelo Estado de medidas que atendam às necessidades familiares dos “menos abastados e dos marginalizados”.[61]
Logicamente, a solidariedade familiar é construída sob valores traçados pelos ascendentes em favor dos descendentes. E, estes, por seu turno, acabarão por trilhar caminho parecido aquele que lhes foi ensinado. Muito embora o parâmetro de solidariedade interna sofra uma oscilação de uma entidade familiar para outra em virtude dos padrões culturais vigentes e da procedência de cada entidade, há um mínimo a ser preservado: os direitos personalíssimos de cada integrante da família, sua subsistência e a concessão de auxílio para que se possa ter a oportunidade de se atingir o nível de desenvolvimento esperado pelo interessado. Enfim, a assistência material e imaterial entre os membros da entidade familiar devem sempre se fazer presentes nas relações jurídicas existentes. [62]
A aplicação do princípio retro torna evidente a existência intrínseca doutro, tal seja, o da afetividade.
Mesmo que a Constituição tenha enlaçado o afeto no âmbito de sua proteção, a palavra afeto não está no texto constitucional. Ao serem reconhecidas como entidade familiar merecedora da tutela jurídica as uniões estáveis, que se constituem sem o selo do casamento, tal significa que o afeto, que une e enlaça duas pessoas, adquiriu reconhecimento e inserção no sistema jurídico. Houve a constitucionalização de um modelo de família eudemonista e igualitário, com maior espaço para o afeto e a realização individual.[63]
Imperiosa se faz a citação da existência doutros princípios constitucionais aplicáveis ao Direito de Família, que aparecem na doutrina de acordo com a corrente adotada pelo doutrinador a que se pese. Ademais, procurou-se abordar, no presente trabalho monográfico, aqueles que têm ligação direta com o Direito Filiativo, e que contribuem diretamente para a construção lógica da seara argumentativa deste.
Assim, conclui-se que havendo a igualdade entre filhos, destacando o sentido social da aplicada Constituição, subsiste a obrigação posterior em compatibilizar o cuidado destes para com os que lhe educaram o que, por sua vez, deve ser respaldado na afetividade, no sentido de buscar o elo maior que os une, o estado de filiação, tal como veremos com criteriosa especificidade no capítulo seguinte, quando trataremos das espécies existentes em nosso ordenamento jurídico.

BARCELOS, Daniel Gilson. A formação do estado filiativo na socioafetividade e o direito sucessório por sua decorrência . Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3498, 28jan.2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/23563>. Acesso em: 1 fev. 2013.

Historicidade da filiação

Com a justificativa de preservação do que se tinha por núcleo familiar, o legislador infraconstitucional colocava os filhos numa situação que correspondia, literalmente, à discriminação de seu tratamento, tendo por conta sua origem de concepção. À teoria se tinha o sentido de resguardar a família tradicional, o que, em outrora, correspondia ao aceitável na sociedade; na prática, o que se via, era uma tratativa de preservação não da entidade familiar, mas de seu patrimônio, vez que, em se tratando filhos que tenham por origem à diversa da que se habitualmente julgava por moralmente aceito, renegava-se sua legitimidade e, por condição, estes eram colocados a parte dos direitos que os concebidos tradicionalmente.[1]
A premissa acima aduzida corresponde ao que tínhamos na legislação anterior: a filiação, assim como todo o Direito de Família, tinha como preocupação a preservação do patrimônio familiar, não com o sujeito, protagonista da relação jurídica.
Atualmente, a família brasileira tem como extensões àquelas existentes quando da vivência das sociedades romana e germânicas e, ainda, influência direta da Igreja que, com seu Direito Canônico, alcançou e alcança as relações familiares no que tange à compatibilização de direitos, ainda nos dias atuais, mesmo diante daratificação da condição laica do Estado.[2]
Arnaldo Wald[3], quando trata da percepção patriarcal do Direito primitivo brasileiro, que, historicamente, se coloca contemporâneo à nossa vivência, tendo por conta a recente história democrática e desvinculação à Portugal, datada do século passado, aduz que:
O conceito de família independia assim da consanguinidade. O pater famílias exercia a sua autoridade sobre todos os seus descendentes não emancipados, sobre a sua esposa e sobre as mulheres casadas com manuscom seus descendentes
(...)

HISTORICIDADE DA FILIAÇÃO E SUAS NUANCES DENTRO DO DIREITO DE FAMÍLIA

Dentro da determinação do desenvolvimento familiar há uma espécie de paleontologia social, tendo por conta que sua conceituação, ou a tratativa desta, se dá, aos diversos autores estudioso do assunto, de forma determinada ou mesmo por intermédio de suposições, diante da sua subjetividade evidente em, mesmo nas mais antigas civilizações, corresponder à tendência do estabelecimento de espécies diversas além daquela posta por regra na sociedade.[4]
A impossibilidade de ter uma certeza biológica de ligação, nas mais antigas civilizações, fez com que as sociedades primitivas colocassem a filiação com uma nuance não necessariamente consanguínea.
Historicamente, assinalo a sua presença nos países da civilização mediterrânea, mais precisamente enfocando o Direito Romano, cujos padrões, na descrição de Fustel de Coulanges e Rudolf Von Jhering, procuram assentar a sua tipologia, com base nos princípios da religião doméstica. Filho não era aquele ligado ao pai por laços de consaguinidade (cognatio), porém, o que era apresentado ante o altar doméstico, ao qual se transmitia o culto dos dii lares, de que seria continuador do culto (agnatio).[5]
A conotação afetiva das relações de casamento, que, por regra, anteveem a concepção de linhagem, não era posta por condição nas antigas civilizações. Como exemplo de tal realidade, cite-se a correspondência do casamento de viúvas, sem filhos, com o parente mais próximo do marido; o filho, caso existisse, era considerado filho do suplente de seu pai, ou seja, vê-se aqui, uma relativização do registro, ainda que tácito, ante a modificação da situação paterna do filho.[6]
O casamento era assim obrigatório. Não tinha por fim o prazer; o seu objeto principal não estava na união de dois seres mutuamente simpatizantes um com o outro e querendo associarem-se para a felicidade e para as canseiras da vida. O efeito do casamento, à face das religiões e das leis, estaria na união de dois seres no mesmo culto doméstico, fazendo deles nascer um terceiro, apto para continuador desse culto. [7]
A base da família na Antiguidade era a crença nos mortos e a noção de imortalidade que a conceituação de linhagem trazia com o estabelecimento da paternidade. Ao se ter um filho, acreditava-se que a imortalidade da figura individual seria uma constante, tendo por significado maior a perpetuação da felicidade familiar, que, em sendo um conceito subjetivo, deve ser vislumbrado ao modelo de família adotado no período retro. Mantendo-se a espécie, mantinha-se o culto o que, por sua vez, trazia a noção da desnecessidade do vínculo genético para o estabelecimento do enlace paterno.[8]
Para se aprofundar conscientemente na instituição da família, há de se conscientizar que sofreu no curso da história sensível alteração estrutural, partindo de que num certo momento compreendia todas as pessoas agrupadas em torno de um chefe comum. Assim se entendia em Roma, onde abrangia todo um conglomerado de pessoas, incluídos os servos (famuli, donde a palavra família) e não apenas o que em linguagem moderna representa as pessoas ligadas pelo parentesco, no sentido estrito de cultores das homenagens aos antepassados (penates), descrita com exatidão por Fustel de Coulanges.[9]
Via-se no Direito Romano a figura do pater famílias queexercia sobre os filhos um direito de vida e de morte, tendo por conta a assertiva da subordinação que eles tinham para com a figura paterna. Na mesma premissa estava a mulher, quando colocada, hierarquicamente, abaixo do marido, tendo que se submeter às vontades daquele que era designado chefe de família.[10]
Carlos Roberto Gonçalves explica que:
Com o tempo, a severidade das regras foi atenuada, conhecendo os romanos o casamento sinemanu, sendo que as necessidades militares estimularam a criação de patrimônio independente para os filhos. Com o Imperador Constantino, a partir do século IV, instala-se no Direito Romano a concepção cristã de família, na qual predominam as preocupações de ordem cristã da família, na qual predominam as preocupações de ordem moral. Aos poucos foi então a família romana evoluindo no sentido de se restringir progressivamente a autoridade do pater, dando-se maior autonomia à mulher e aos filhos, passando estes a administrar os pecúlios castrenses (vencimentos militares).[11]
NoDireito Canônico, o matrimônio era visto de forma sacralizada, com características indissolúveis. A noção de que Deus uniria e o Homem seria incapaz de separar denotava e externava o viés psicológico a que a religião se utilizava para motivar os que, objetivamente e sem opções, a seguiam. Tinha-se, à época, uma mistura entre o Estado, que não era laico, e a Igreja, que se colocava na sociedade como norteadora jurídica.[12]
Na Idade Média, as relações familiares, pela influência direta da Igreja Católica no mundo conhecido, eram correspondidas regraticamente pelo Direito Canônico. Não só nas relações formativas de Direito de Família é que podemos citar a correspondência do Direito Canônico nas relações jurídicas gerais dos Estados, mas também nas que envolviam o patrimônio deste. Cite-se também a crescente importância das regras de origem germânica neste diapasão.[13]
Foi gradual e progressiva a construção de família que se aproxima a que conhecemos, ao ponto de se tornar um dos mais (se não o mais) importantes institutos sociais.
Pode-se notar, tal como leciona Nadaud, que “pouco a pouco a família romana e a família medieval se unem na noção de vida conjugal – o casamento como consortium vitae – e filiação, sendo de importância máxima o elo que os une. É assim que altera-se a forma dessa família, mudança paralela às profundas mutações da sociedade: a família tende a ser cada vez mais concebida como o centro da estrutura da sociedade, e, desta forma, o lugar onde se exerce o poder”.[14]
A noção de família, dentro das relações jurídicas sofreu (e sofre), ao longo dos séculos, mutações tanto estruturais quando preceituais, sendo esta última ensejadora da primeira. A retirada do conceito da “indissolubilidade do casamento” dentre as características daquele posto oficialmente na sociedade corresponde à evolução das relações humanas, principalmente no que diz respeito à evolução do próprio ser humano.
Podemos dizer que a família brasileira, como hoje é conceituada, sofreu influência da família romana, da família canônica e da família germânica. É notório que o nosso Direito de Família foi fortemente influenciado pelo direito canônico, como consequência, principalmente da colonização lusa. As Ordenações Filipinas foram a principal fonte e traziam a forte influência do aludido direito, que atingiu o direito pátrio. No que tange aos impedimentos matrimoniais, por exemplo, o Código Civil de 1916 seguiu a linha do direito canônico, preferindo mencionar as condições de invalidade.[15]
Tem-se certo que na ordenação civil brasileira de 1916 o direito de reconhecimento da filiação, e suas consequências jurídicas, já estava presente, ainda que com algumas restrições.
Mas foi somente com o advento da atual Carta Magna que se viu adentrar em nosso sistema jurídico-normativo princípios familiares de Direito que, além de retirar a discriminação entre filhos de diferentes espécies, trouxe à tona questões que subjetivaram o respaldo necessário para que fosse designado o vínculo jurídico-paternal, socializando o Direito de Família.[16]
Desse modo, diante do reconhecimento da inadequação do tratamento legal a respeito do tema envolvendo o estabelecimento e os efeitos da filiação, o direito brasileiro promoveu, paulatinamente no curso do século XX, mudanças, a princípio parciais e pontuais, até o advento da Constituição de 1988, que estabeleceu a plena igualdade dos filhos, independentemente do tipo de vínculo existente entre seus pais e da origem de parentalidade.[17]
De forma primeira, quando levamos em consideração a base familiar adentrada nas relações de filiação, viu-se o estabelecimento do patriarcado e da discriminação entre as diferentes espécies de filho, sendo considerado legítimo tão-somente aquele que, por presunção legal mediante declaração de vontade do intitulado pai, era colocado como geneticamente ligado a este – na verdade, diante da ausência de possibilidade de comprovação médica de condição, o vínculo genético era legalmente atrelado à realidade registral.[18]
Somente mediante a ascensão da atual Constituição, que modernizou o Direito de Família e reiterou o sentido social da lei, foi que o correspondido pela verdade real às diferentes espécies de filho pôde se ver adentrado na realidade jurídica das famílias, não havendo mais a conotação da ilegitimidade, seja qual for.[19]
Também foi gradual e vagarosa a evolução dos direitos dos filhos ditos ilegítimos (expressão hoje proibida em documentos oficiais). Como todos sabem, no sistema anterior à CF de 1988, os filhos se classificavam em legítimos, legitimados e ilegítimos. Estes, por sua vez, se desdobravam em naturais e espúrios. Os últimos, em adulterinos e incestuosos. Esta classificação foi derrubada desde 1988, pois é total a igualdade jurídica entre os filhos. Se hoje uma classificação dos filhos é admitida, para fins didáticos, apenas se pode falar em filhos matrimoniais e extramatrimoniais; mesmo esta dicotomia, bem a rigor, é falha, pois o filho extramatrimonial é um suposto filho, até ser reconhecido, voluntária ou judicialmente, e, quando o for, será absolutamente igual aos demais.[20]
Assim, com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, viu-se a legitimação daquilo que em anos se teve por evolução, diante da imensa modificação da base familiar, tendo por conta a implicação nos filhos da pluralidade de espécies de família existentes no atual sistema jurídico. O Direito se viu adaptado à realidade fática das famílias, contribuindo para que fosse, a legislação retro, denominada “cidadã”, tal como veremos no tópico seguinte.

BARCELOS, Daniel Gilson. A formação do estado filiativo na socioafetividade e o direito sucessório por sua decorrência . Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3498, 28jan.2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/23563>. Acesso em: 1 fev. 2013.

A QUESTÃO DA RESERVA DE VAGAS, NOS CONCURSOS PÚBLICOS, AOS PORTADORES DE NECESSIDADES ESPECIAIS

O ordenamento jurídico pátrio prevê reserva de vagas aos portadores de necessidades especiais nos concursos públicos para ingresso nos órgãos da Administração Pública Direta e Indireta. Tal percentual, nos concursos públicos, deve ser reservado aos portadores de necessidades especiais, o que é garantido pela Constituição Federal, especificamente no Art. 37, VIII, que assim preleciona: “a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão”.
 A Lei n. 8.112/90, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais, em seu Art. 5º, § 2º, diz que esse percentual será de até 20%, senão vejamos a redação do citado dispositivo legal: “Às pessoas portadoras de deficiência é assegurado o direito de se inscrever em concurso público para provimento de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que são portadoras; para tais pessoas serão reservadas até 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas no concurso”.
 Ocorre que, em concursos realizados hodiernamente, os órgãos da União, bem como das autarquias e fundações públicas, vêm reservando percentual superior ao acima citado (20%), o que vem a levantar controvérsia no mundo jurídico, por ferirem princípios constitucionais, bem como prejudicarem os candidatos não portadores de necessidades especiais que muitas vezes são preteridos em face de tal entendimento.
Não obstante o Estado deva adotar medidas para atender a parcelas menos privilegiadas da população (as chamadas “ações afirmativas”) - como, no caso, os portadores de necessidades especiais, justamente pelo fato de estes últimos encontrarem maiores dificuldades para conseguir vagas no concorrido mercado de trabalho – é notório o fato de que em alguns casos a reserva de vagas vem sendo feita de forma desproporcional.
 Nesses casos, não está a Administração Pública igualando os desiguais na medida de suas desigualdades, conforme mandam os princípios constitucionais da igualdade, proporcionalidade e razoabilidade, muito pelo contrário.
 Atentos a tal situação, nossos Tribunais vêm aplicando entendimentos diversos sobre o tema, causando controvérsia no mundo jurídico.
 Dada a importância do tema, na obra Direito Administrativo Descomplicado, os ilustres autores Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo assim discorrem sobre o tema:
Outra situação que pode causar alguma perplexidade, já enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal, ocorre quando temos um concurso público em cujo edital estejam previstas muito poucas vagas, uma ou duas vagas, por exemplo.
Em casos que tais, pode o edital deixar de reservar vaga para deficientes?
Antes de respondermos à indagação acima formulada, é necessário registrar que existe uma lei federal genérica (não é uma lei que trate especificamente de matéria administrativa) que "dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, sua integração social (....) e dá outras providências". Trata-se da Lei 7.853/1989. Embora essa lei não fale absolutamente nada sobre reserva de vagas para deficientes em concursos públicos, o Decreto 3.298/1999, a pretexto de "regulamentá-la", criou uma regra, de forma autônoma, reservando um mínimo de cinco por cento das vagas dos concursos públicos em geral para deficientes (Art. 37). O mesmo artigo do Decreto 3.298/1999 determina, ainda, que, se a aplicação desse percentual de cinco por cento resultar em número fracionado, "este deverá ser elevado até o primeiro número inteiro subseqüente".
Ora, se essa regra, criada pelo decreto, de elevar o resultado fracionado ao primeiro número inteiro subseqüente for aplicada sempre, em um concurso com uma única vaga, seria ela reservada para deficientes, não haveria nenhuma vaga não-reservada! Atento a esse fato, e à regra constante da Lei 8.112/1990, que fixa em vinte por cento o limite máximo de vagas a serem reservadas, o Supremo Tribunal Federal, em um caso concreto de um concurso público cujo edital previa ao todo duas vagas, decidiu que nenhuma precisaria ser reservada para deficientes...
Segundo a Corte Suprema, a reserva de uma vaga para deficientes, nesse caso, ultrapassaria o limite máximo legal de vinte por cento. Não seria possível, assim, obedecer à regra, criada pelo Decreto na 3.298/1999, de aplicar o percentual mínimo de cinco por cento sobre as duas vagas existentes e elevar o resultado fracionado ao primeiro número inteiro subseqüente, porque isso resultaria na reserva de uma vaga, o que, no caso concreto, significaria reservar cinqüenta por cento do total de vagas previstas no edital. Assim, entendeu o Tribunal Maior que deve prevalecer a interpretação do texto constitucional que preserve "a premissa de que a regra geral é o tratamento igualitário (CF, Art.. 37, II), consubstanciando exceção a separação de vagas para um determinado segmento"...
Com base nesse entendimento, o STF considerou válido o edital de concurso para o preenchimento de duas vagas que não reservou nenhuma para deficientes. Entendeu a Corte Suprema que reservar uma vaga, ou seja, cinqüenta por cento das vagas existentes, implicaria majoração indevida dos percentuais legalmente estabelecidos (MS 26310/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 20.09.2007. Grifos nossos)[4]
 Observa-se, pois, que o Decreto n. 3.298/1999, visando a regulamentar a problemática da reserva de vagas aos portadores de deficiência física, acabou por trazer dispositivo flagrantemente desproporcional, pois prevê em seu Art. 37, § 2º, que, nos casos em que, ao se aplicar o percentual de 5% sobre o número de vagas, eventuais números fracionários devem ser arredondados para o primeiro número inteiro subsequente. A desproporcionalidade de tal norma mostra-se mais patente quando se depara com situações em que há apenas uma vaga. Ora, se esse instituto for aplicado tal qual está redigido, chegar-se-ia ao despropósito de reservar a única vaga a portadores de necessidades especiais, o que de forma alguma pode ser admitido, por distorcer completamente a política pública de inclusão social.
 É certo que, caso se desconsiderasse qualquer número fracionário, para que fosse reservada ao menos uma vaga para deficientes físicos o concurso deveria oferecer no mínimo 20 vagas. Entretanto, não é esse o entendimento que aqui se defende. O entendimento que se mostra mais consentâneo com o princípio da proporcionalidade é o de que, ao se aplicar o percentual previsto no edital sobre o número de vagas oferecidas, somente os números fracionários iguais ou superiores a 0,5 (zero vírgula cinco) deverão ser arredondados para o primeiro número inteiro subsequente; os números inferiores ao citado valor, dessa forma, deverão ser desconsiderados.
 Importante trazer à baila o voto do Min. Gilson Dipp no RMS 18669/RJ:
Assim sendo, seguir a orientação da Corte de origem, de que apenas com a nomeação de 10 (dez) candidatos pode um deficiente ocupar uma vaga, é ignorar a norma contida nos dispositivos acima transcritos, bem como o princípio da relativização da isonomia, chegando à absurda conclusão de que para assegurar 01 (uma) vaga ao candidato deficiente, levando em conta o percentual de 5%, o concurso teria, necessariamente, que oferecer pelo menos 20 (vinte) vagas. Não é esse o escopo protetivo nas normas aplicáveis ao caso.
Isto significa dizer que o impetrante, primeiro colocado entre os deficientes físicos, deve ocupar uma das vagas ofertadas ao cargo de Analista Judiciário – especialidade Odontologia, para que seja efetivada a vontade insculpida no Art. 37, § 2º do Decreto nº 3.298/99. Entenda-se que não se pode considerar que as primeiras vagas se destinam a candidatos não-deficientes e apenas as eventuais ou últimas a candidatos deficientes. Ao contrário, o que deve ser feito é a nomeação alternada de um e outro, até que seja alcançado o percentual limítrofe de vagas oferecidas pelo Edital a esses últimos[5]
 Verifica-se, pelos argumentos expostos, que a regra contida no citado decreto deve ser tomada com reservas, de modo a preservar os princípios constitucionais da igualdade, razoabilidade e proporcionalidade. Vejamos um importante julgado que expressa o entendimento aqui defendido:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. CANDIDATO DEFICIENTE. RESERVA DE VAGAS. PERCENTUAL QUE RESULTA EM NÚMERO FRACIONADO. ARREDONDAMENTO. CRITÉRIO. DENEGAÇÃO DA SEGURANÇA PELO TRIBUNAL. CESSAÇÃO DA EFICÁCIA DA MEDIDA LIMINAR. PERDA DE OBJETO DA APELAÇÃO QUE VISA EXCLUSIVAMENTE À REVOGAÇÃO DA MEDIDA LIMINAR.
1. A fração inferior a 0,5 (cinco décimos) que resultar da aplicação do percentual de vagas reservadas aos portadores de deficiência deve ser desconsiderada. Precedente.
2. A fração igual ou superior 0,5 (cinco décimos) que resultar da aplicação do percentual de vagas reservadas aos portadores de deficiência deve ser arredondada para 1 (um) inteiro. Precedente.
3. O percentual de vagas reservadas aos candidatos deficientes deve incidir sobre o total de cargos efetivamente providos, e não especificamente sobre o número de vagas disponibilizadas em cada convocação.
4. Havendo reserva de 5% das vagas para portadores de deficiência, não é ilegítima a nomeação de apenas um deficiente entre os dezessete candidatos já nomeados pela Administração.
5. A confirmação da sentença denegatória da segurança implica automática cessação da eficácia da medida liminar concedida pelo Juízo a quo, tornando prejudicada a apelação que visa exclusivamente à sua revogação.
6. Apelação da impetrante não provida. Apelação da União prejudicada.[6]
Entendimento idêntico foi adotado no julgamento de Mandado de Segurança impetrado perante a Justiça Federal, in verbis:
CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL - DEFICIENTE FÍSICO. RESERVA DE VAGA EM CONCURSO PÚBLICO: PERCENTUAL IGUAL OU SUPERIOR A 0,5 EM FACE DO REDUZIDO NÚMERO DE VAGAS OFERECIDO - ARREDONDAMENTO PARA UM INTEIRO - CONVOCAÇÃO PARA COMPROVAÇÃO DA DEFICIÊNCIA E, COMPROVADA, CONSEQÜENTE NOMEAÇÃO.
1. A Constituição Federal (Art. 37, inciso VIII) garantiu a reserva de percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência, reservando à lei a definição do percentual e dos critérios de admissão.
2. Explicitada no edital do certame a observância à reserva legal de percentual de 5% da vagas para deficientes físicos, a existência de vagas disponíveis, cujo percentual aplicado signifique número de vagas para deficientes igual ou superior a 0,5 deve, em nome da interpretação finalística da norma constitucional, ser aplicada em ordem a arredondar para um inteiro o número de vaga destinada a deficientes.
3. A só informação da deficiência quando da inscrição no concurso é suficiente para que, aprovado o candidato, ele seja convocado para comprovar a sua deficiência e a sua aptidão para o exercício do cargo, mesmo em face da sua deficiência, observada a sua compatibilidade com a natureza das atribuições e atividades do cargo a que aspira.
4. Segurança concedida [7].
 É oportuno mencionar, ainda, outro julgado em que tal entendimento também foi aplicado:
ADMINISTRATIVO. CONCURSO PARA PROVIMENTO DE CARGOS DO QUADRO DE PESSOAL DO TRF/1ª REGIÃO E SEÇÕES JUDICIÁRIAS. DEFICIENTE FÍSICO.
APROVAÇÃO E CLASSIFICAÇÃO EM 21º LUGAR. INSUFICIÊNCIA DE VAGAS PARA GARANTIR A NOMEAÇÃO DE DEFICIENTES FÍSICOS. SEGURANÇA DENEGADA.
1. O item 9 do Edital de Concurso nº 13/96-TRF/1ª Região assegurou às pessoas portadoras de deficiência o direito de participar do certame, para as categorias funcionais cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que são portadoras, reservando aos deficientes 5% (cinco por cento) das vagas para cada categoria. Na aplicação desse percentual, utilizar-se-á arredondamento para o número inteiro imediatamente inferior, em frações menores de cinco décimos e para a imediatamente superior, em frações maiores ou iguais a cinco décimos.
2. O item 9.6 do mencionado Edital estabeleceu que os candidatos deficientes e habilitados que excederem do número de vagas a eles reservadas serão convocados, para efeito de ingresso, obedecendo-se à ordem de classificação geral.
3. Concorrendo para a Subseção Judiciária de Ilhéus, o impetrante foi aprovado e classificado em 21º lugar.
4. Naquela subseção judiciária foi oferecida apenas uma vaga, surgindo mais duas vagas posteriormente, sendo nomeados os três primeiros candidatos aprovados, obedecendo-se à ordem de classificação.
5. Tendo em conta o número de vagas surgidas até então, não se atingiu a quantidade mínima a ser reservada para os deficientes aprovados naquela localidade, razão pela qual não há qualquer abuso ou ilegalidade a serem reparados via mandado de segurança.
6. Segurança denegada[8].
 É certo que a Corte Suprema Brasileira, no Recurso Extraordinário nº 227.299, esboçou entendimento que se coaduna com a literalidade do Decreto Federal n. 3.298 de 20/12/1999, ao entender que mesmo nos casos em que haja número fracionário, qualquer que seja este dever-se-á reservar vagas a deficientes físicos. É oportuna a menção ao teor do voto do Ministro Ilmar Galvão, relator do citado Recurso Extraordinário:
A Lei federal nº 7.853/89 estabeleceu normas gerais sobre o exercício de direitos individuais e sociais por pessoas portadoras de deficiências, determinando, na alínea d do inciso III do seu artigo 2º, que ao Poder Público cabe adotar legislação específica que discipline a reserva de mercado de trabalho em benefício dos deficientes nas entidades da Administração Pública.
 No âmbito federal, a Lei nº 8.112/90, no § 2º do artigo 5º, dispõe que serão reservadas, para pessoas portadoras de deficiência, até 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas em concursos públicos.
Mais recentemente, o Decreto nº 3.298, de 20/12/99, regulamentando a Lei nº 7.853/89, veio disciplinar, na Administração federal, esse direito, assegurando um mínimo de 5% (cinco por cento) das vagas para portadores de deficiência e explicitando, no Art. 37, § 2º, que, no caso do percentual resultar em número fracionado, este deverá ser elevado até o primeiro número inteiro subseqüente.
A Administração Pública municipal de Divinópolis, por meio da Lei Complementar nº 09/92, estabeleceu uma reserva de 5% das vagas oferecidas nos concursos públicos aos portadores de deficiência, sem regular, entretanto, a situação dos resultados fracionados.
De ter-se, em face da obrigatoriedade da reserva de vagas para portadores de deficiências, que a fração, a exemplo do disposto no Decreto nº 3.298/99, seja elevada ao primeiro número inteiro subseqüente, no caso 01 (um), como medida necessária a emprestar-se eficácia ao texto constitucional, que, caso contrário, sofreria ofensa.
Registre-se, por fim, que o artigo 37, inc. VIII, da Carta Magna assegura aos portadores de deficiências percentual de cargos e empregos públicos na Administração, sendo, dessa forma, o número total de cargos e empregos o dado a ser considerado quando da abertura de concursos públicos, para a reserva de vagas a deficientes físicos.
Ante o exposto, meu voto conhece do recurso e lhe dá provimento[9].
 Tal posicionamento, entretanto, foi revisto pela Suprema Corte no Mandado de Segurança 26310/DF, merecendo menção o brilhante voto do Exmo. Ministro Marco Aurélio, in verbis:
Reconheço a existência de precedente deste Plenário agasalhando a tese sustentada pelo impetrante. No Recurso Extraordinário nº 227.229-1/MG, relatado pelo Ministro Ilmar Galvão, a Corte defrontou-se com situação concreta em que, oferecidas oito vagas, a percentagem de cinco por cento prevista na legislação local como própria à reserva de vagas aos portadores de deficiência desaguou em quatro décimos. Prevaleceu a óptica da necessidade de sempre conferir-se concretude ao inciso VIII do Art. 37 da Constituição Federal. Presente esteve, conforme o voto do relator que se encontra às fls. 32 e 33, o disposto no Decreto nº 3.298/99, que regulamentou a Lei nº 7.853/89. O tema, porém, merece reflexão, reexaminando-se o entendimento que acabou por prevalecer, até mesmo com meu voto.
A regra é a feitura de concurso público, concorrendo os candidatos em igualdade de situação – inciso II do Art. 37 da Carta da República. O inciso VIII do mesmo artigo preceitua que ‘a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão’. A Lei nº 7.853/89 versou a percentagem mínima de cinco por cento e a Lei nº 8.112/90 veio a estabelecer o máximo de vinte por cento de vagas reservadas aos candidatos portadores de deficiência física.
Ora, considerando o total de vagas no caso – duas -, não se tem, aplicada a percentagem mínima de cinco ou máxima de vinte por cento, como definir vaga reservada a teor do aludido inciso VIII. Entender-se que um décimo de vaga ou mesmo quatro décimos, resultantes da aplicação de cinco ou vinte por cento, respectivamente, sobre duas vagas, dão ensejo à reserva de uma delas implica verdadeira igualização, olvidando-se que a regra é a não distinção entre candidatos,sendo exceção a participação restrita, consideradas vagas reservadas. Essa conclusão levaria os candidatos em geral a concorrerem a uma das vagas e os deficientes, à outra, majorando-se os percentuais mínimo, de cinco por cento, e máximo, de vinte por cento, para cinqüenta por cento. O enfoque não é harmônico com o princípio da razoabilidade.
Há de se conferir ao texto constitucional interpretação a preservar a premissa de que a regra geral é o tratamento igualitário, consubstanciando exceção a separação de vagas para um certo segmento. A eficácia do que versado no Art. 37, VIII, da Constituição Federal, pressupõe campo propício a ter-se, com a incidência do percentual concernente à reserva para portadores de deficiência sobre cargos e empregos públicos previstos em lei, resultado a desaguar em certo número de vagas, e isso não ocorre quando existentes apenas duas. Daí concluir pela improcedência do inconformismo retratado na inicial, razão pela qual indefiro a ordem[10]. (grifos nossos).
 Assim ficou disposta a ementa do citado julgado:
CONCURSO PÚBLICO - CANDIDATOS - TRATAMENTO IGUALITÁRIO. A regra é a participação dos candidatos, no concurso público, em igualdade de condições. CONCURSO PÚBLICO - RESERVA DE VAGAS - PORTADOR DE DEFICIÊNCIA DISCIPLINA E VIABILIDADE. Por encerrar exceção, a reserva de vagas para portadores de deficiência faz-se nos limites da lei e na medida da viabilidade consideradas as existentes, afastada a possibilidade de, mediante arredondamento, majorarem-se as percentagens mínima e máxima previstas.
 Poder-se-ia defender, contudo, a tese de que a Constituição, na verdade, exige que sejam reservadas aos portadores de necessidades especiais as vagas de cargos e empregos públicos, e não as vagas a serem disponibilizadas em concursos públicos. Por essa linha de entendimento, ao se realizar um determinado concurso público, a Administração Pública deveria realizar um levantamento do número de servidores portadores de deficiência física e não portadores de deficiência física que ocupam determinado cargo e, então, divulgar as vagas de modo a adequar o percentual de vagas a cada um desses grupos. Assim, caso em um órgão as 10 vagas de certo cargo estejam preenchidas por não-portadores de necessidades especiais e no concurso almeja-se disponibilizar outras 10 vagas, bem como o percentual a ser reservado é de 10%, dever-se-ia reservar 02 vagas para portadores de necessidades especiais. Isso porque esse número de vagas (duas) corresponde a vinte por cento do total de vagas do cargo em questão (vinte), e não do total de vagas daquele concurso que será realizado (dez).
 Esse, inclusive, foi o entendimento manifestado pelo Ministro Cezar Peluso, no Mandado de Segurança nº 25.074, no qual ele concluiu:
 “o que assegura a Constituição é que os portadores de deficiência têm direito de ocupar determinado número de cargos e empregos públicos, considerados em cada quadro funcional, segundo percentagem que lhes reserve a lei, o que só pode apurar-se no confronto do total de cargos e dos empregos, e não, é óbvio, perante o número aleatório de vagas que se ponham em cada concurso”[11].
Mas a adoção desse entendimento encontra obstáculos, tendo em vista que o Decreto 3.298/99, ao dispor sobre a reserva de vagas aos portadores de deficiência, prevê o mínimo de 5% (cinco por cento) das vagas nos concursos públicos, ou seja, não prevê que esse percentual de 5% (cinco por cento) deve ser aplicado sobre o total de vagas de cargos e empregos públicos. Vale trazer à colação a redação dos citados dispositivos que comprovam o acima dito:
Art. 37. Fica assegurado à pessoa portadora de deficiência o direito de se inscrever em concurso público, em igualdade de condições com os demais candidatos, para provimento de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que é portador.
§ 1º O candidato portador de deficiência, em razão da necessária igualdade de condições, concorrerá a todas as vagas, sendo reservado no mínimo o percentual de cinco por cento em face da classificação obtida.
 Ora, não se pode extrair uma porcentagem de cargos de forma arbitrária, considerando que o citado decreto dispõe sobre a reserva de vagas em concursos públicos.
 Aliás, é oportuno mencionar que o Estado de Minas Gerais, atento a tal questão, cuidou de regrar, de forma acertada, através da edição da Lei Estadual n. 11.867 de 28 de fevereiro de 1995, os casos em que o percentual de reserva, ao ser aplicado sobre o número de vagas, resulta em número fracionário, e ao fazê-lo acabou por coroar o entendimento aqui defendido, senão vejamos:
"Art. 1º - Fica a Administração Pública direta e indireta do Estado obrigada a reservar 10% (dez por cento) dos cargos ou empregos públicos, em todos os níveis, aos portadores de deficiência.
§ 1º - Sempre que a aplicação do percentual de que trata este artigo resultar em número fracionário, arredondar-se-á a fração igual ou superior a 0,5 (cinco décimos) para o número inteiro subseqüente e a fração inferior a 0,5 (cinco décimos) para o número inteiro anterior."
A legislação mineira acima colacionada mostra-se mais consentânea com os princípios da razoabilidade, proporcionalidade e igualdade, e, por tal razão, deveria ser tida como referência à União. Destarte, o Decreto n. 3.298/99 merece modificação, com vistas a por fim ao debate que ora é travado e que, inclusive, motivou o presente trabalho.
 O Ilmo. Desembargador Wander Marotta, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, vem fazer coro ao entendimento aqui defendido, sendo oportuna a menção de seu voto proferido na Apelação Cível nº 1.0024.08.093524-0/002:
Neste caso, nós temos quatro candidatos e essa análise, em tese, dos dispositivos legais, é feita de forma aparentemente simples, como se expôs . A questão complica-se na aplicação concreta, específica, para um determinado concursos dessas regras e desses percentuais.
Na espécie, nós temos quatro vagas e, assim, se deferimos uma delas para deficiente, nós estaremos reservando a eles 25% das vagas, acima, portanto, da norma geral, que foi editada pela União, na Lei 8112, de 20% .
Mais do que isso, se nós reduzirmos e passarmos, como se estivéssemos analisando um concurso com apenas duas vagas, nós teríamos 0,20%, ao invés de 0,4% teríamos o percentual de 0,2%, e, portanto, o mesmo raciocínio que se aplica a 0,4%, aplicar-se-ia a 0,2% e, num concurso com duas vagas, nós teríamos reservas de 50% das vagas para o deficiente.
E, num concurso em que há uma só vaga, o que é muito comum, basta dizer que as prefeituras fazem, a toda hora, este tipo de concurso com apenas uma vaga para admitir, por exemplo, um médico, um psicólogo, uma assistente social, qual seria o percentual das vagas? Essa vaga teria sempre que ser do deficiente?
O mesmo acontece nos cartórios estaduais, abre-se para eles concurso com apenas uma única vaga, então, nós teríamos 0,10% e, aplicando o mesmo raciocínio, chegaríamos ao resultado de que, no caso de uma vaga, ela deve ser do deficiente. Então, faríamos um concurso apenas para os deficientes? Não aceitaríamos os candidatos não deficientes? Como se vê, este raciocínio da reserva absoluta de vagas pode levar, em casos concretos, ao absurdo e nos sabemos que a interpretação não deve ser feita para levar ao absurdo. Certamente, foi por isso, que o Supremo Tribunal Federal, ultrapassando uma jurisprudência anterior daquela Corte, explicitada num acórdão relatado pelo Ministro Ilmar Galvão, no RE 227229, por coincidência, de Minas Gerais, ultrapassando, repito, este precedente, acabou por decidir, mais recentemente, num acórdão do Mandado de Segurança 263105, do Distrito Federal, relatado pelo Ministro Marco Aurélio, no sentido restritivo de que " por encerrar exceção, a reserva de vagas para portadores de deficiência faz-se nos limites da lei e na medida da viabilidade, consideradas as existentes, afastada a possibilidade de mediante arredondamento, majorarem-se as percentagens mínima e máxima previstas, ou seja, a Suprema Corte abriu a possibilidade de aplicação dos percentuais que a lei admite. No caso, temos a lei de Minas Gerais admitindo um percentual de 10%, é possível aplicação do percentual de 10% desde que não haja ultrapassagem do limite mínimo ou do limite máximo do concurso.
Por estas razões é que, embora compreendendo os fundamentos daqueles que tem entendimento em contrário, no sentido de que deve prevalecer a ação afirmativa posta na intenção da Constituição Federal, é que peço vênia ao eminente Des. Relator para divergir da conclusão alcançada por S. Exa., tendo em vista que, no caso concreto, a adoção deste entendimento implicaria em reserva de vagas de 25%, ultrapassando em muito e colocando em condição de desigualdade, que a Lei e a Constituição não querem, deficientes e não deficientes.
Peço vênia, portanto, para dar provimento ao recurso de apelação, a fim de declarar a inexistência da reserva de vagas para deficientes, neste específico concurso, embora haja a previsão editalícia, e determinar a nomeação da Apelante[12].
 Vale lembrar que tal entendimento foi acompanhado pelo Ilmo. Desembargador André Leite Praça, valendo trazer à baila um trecho de seu voto:
Ademais, a aplicação do Decreto Federal que determina o arredondamento para o número inteiro subseqüente, poderia gerar a preterição do candidato não portador de deficiência, melhor colocado em relação ao candidato deficiente, quando o concurso oferecer apenas uma vaga, o que não se pode admitir.

ZICA, Bruno Junio Bicalho. A reserva de vagas aos portadores de necessidades especiais à luz da Constituição Federal e da Lei nº 8.112/90. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3501, 31 jan. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/23592>. Acesso em: 1 fev. 2013.

DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE

Os princípios constitucionais exercem papel fundamental em um ordenamento jurídico, tendo em vista que agem como ponto de referência ao julgador, no momento da interpretação das regras constitucionais e infraconstitucionais.
 O princípio em questão guarda estreita relação com os demais princípios presentes em nosso ordenamento, tais como o princípio da isonomia e o princípio da legalidade. Antes de se discorrer de forma mais aprofundada sobre o princípio da proporcionalidade, é oportuno discorrer-se sobre sua origem e evolução ao longo da história, seu fundamento e natureza, e sua concepção atual.

3.1 ORIGEM E EVOLUÇÃO DO PRINCÍPIO AO LONGO DA HISTÓRIA

 A origem e aceitação do princípio da proporcionalidade estão estreitamente relacionados ao crescimento dos direitos e garantias individuais, constatado a partir do surgimento do Estado de Direito Europeu.
 A origem do princípio em questão pode ser relacionada aos séculos XII e XVIII, época em que na Inglaterra ganhavam força teorias jusnaturalistas, que defendiam que o homem possui direitos inerentes a sua natureza, direitos esses até mesmo anteriores ao surgimento do Estado, e, que, por tal razão, merecem estrita observância. Pode-se apontar como marco histórico desse contexto a elaboração da Magna Carta Inglesa, de 1215, a qual previa que "O homem livre não deve ser punido por um delito menor, senão na medida desse delito, e por um grave delito ele deve ser punido de acordo com a gravidade do delito", conforme ensina GUERRA FILHO (2000).
Posteriormente, no Século XVIII, momentos históricos importantes marcaram a ascensão dos direitos fundamentais, como a declaração Bill of Rights, da Virgínia (EUA) em 1776, que foi tomada como modelo para a elaboração de várias outras declarações estaduais.
Em momento posterior (1789), com fundamento nos ideais jusnaturalistas, foi elaborada na França a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, marco importante da Revolução Francesa.
 Ainda nessa época, o italiano Beccaria invocou a aplicação da proporcionalidade da pena em casos de condenações pelo cometimento de delitos.
 É certo que, em um primeiro momento, os conceitos de proporcionalidade estavam mais associados ao Direito Penal, entretanto, no século XIX, tal princípio começa a exercer influência sobre o Direito Administrativo. A constitucionalização do mesmo, porém, somente veio ao fim da Segunda Guerra Mundial, na Alemanha. Visando proteger os direitos fundamentais, a Corte Constitucional alemã, receosa dos possíveis abusos do legislador, trouxe o princípio da proporcionalidade ao âmbito do Direito Constitucional.
 Nas lições de STEINMETZ (2001), “rapidamente, essa nova leitura do princípio da proporcionalidade cruzará a fronteira tedesca, sendo incorporada pela jurisprudência constitucional de inúmeros países e pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos”.
 Assim, com a influência do direito germânico, outros países da Europa passaram a conceber o princípio da proporcionalidade em âmbito constitucional.
 Nos Estados Unidos, o princípio em questão foi acolhido sob o nome de princípio da razoabilidade.
 No Brasil, o princípio da proporcionalidade mostra-se mais tímido, valendo ressaltar que não se encontra disposto explicitamente na atual Constituição, e, por longa data não mereceu atenção dos doutrinadores. Não obstante tal fato, ressalta o professor GUERRA FILHO (2001) que o princípio da proporcionalidade, até o presente momento, não atingiu os âmbitos dos Direitos Constitucional e Administrativo, mas deixa claro que o presente momento mostra-se propício para tal tarefa.

3.2   FUNDAMENTO E NATUREZA DO PRINCÍPIO

 Indubitavelmente, o princípio da proporcionalidade representa uma dimensão concretizadora da supremacia do interesse da coletividade sobre o interesse do próprio Estado. Isso significa dizer que o Estado está sujeito a um limite jurídico ao editar determinada norma.
 A respeito do tema, o professor PAULO BONAVIDES (2002) que, por sua vez, afirma:
Em nosso ordenamento constitucional não deve a proporcionalidade permanecer encoberta. Em se tratando de princípio vivo, elástico, prestante, protege ele o cidadão contra os excessos do Estado e serve de escudo à defesa dos direitos e liberdades constitucionais. De tal sorte que urge, quanto antes, extraí-lo da doutrina, da reflexão, dos próprios fundamentos da Constituição, em ordem a introduzi-lo, com todo o vigor no uso jurisprudencial.
 Pode-se observar, dessa forma, que o princípio da proporcionalidade ganha status constitucional, salvaguardando o cidadão contra eventuais excessos do Estado.
 Importante ressaltar que o conteúdo jurídico-material do princípio em questão tem como raiz a ideia de que a Constituição possui supremacia hierárquico-normativa em um ordenamento jurídico. E, considerando que a proporcionalidade é um princípio implícito em um Estado de Direito, tal instituto acaba por ganhar status de garantia fundamental que busca concretizar os valores consagrados na Constituição. Representa, sem dúvida, um reconhecimento do postulado de que o Direito não se encerra na lei.
 Sobreleva notar que em qualquer ordenamento jurídico há necessidade de se adotarem balizadores de conflitos entre outros direitos também vivos e presentes. Em outras palavras, qualquer Estado de Direito necessita de ferramentas que permitam um balanceamento de direitos, pois são inevitáveis.os conflitos entre estes nas diversas situações concretas que se apresentam.
 GUERRA FILHO (2000) assim discorre quanto a esse ponto:
(...) a opção do legislador constituinte brasileiro por um Estado Democrático de Direito, com objetivos que na prática se conflitam, bem como pela consagração de um elenco extensíssimo de direitos fundamentais, co-implica na adoção de um princípio regulador dos conflitos na aplicação dos demais e, ao mesmo tempo, voltado para a proteção daqueles direitos.
 Ao expor a doutrina de Karl Larenz, COELHO (1997) esclarece:
(...) utilizado, de ordinário, para aferir a legitimidade das restrições de direitos – muito embora possa aplicar-se, também, para dizer do equilíbrio na concessão de poderes, privilégios ou benefícios –, o princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, em essência, consubstancia uma pauta de natureza axiológica que emana diretamente das ideias de justiça, equidade, bom senso, prudência, moderação, justa medida, proibição de excesso, direito justo e valores afins; precede e condiciona a positivação jurídica, inclusive de âmbito constitucional; e, ainda, enquanto princípio geral do direito, serve de regra de interpretação para todo o ordenamento jurídico (...).
 Indubitavelmente, diante do acima exposto, o princípio da proporcionalidade afigura-se como princípio jurídico regulador dos conflitos entre direitos fundamentais e outros princípios previstos na Constituição Federal.

ZICA, Bruno Junio Bicalho. A reserva de vagas aos portadores de necessidades especiais à luz da Constituição Federal e da Lei nº 8.112/90. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3501, 31 jan. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/23592>. Acesso em: 1 fev. 2013.

DAS AÇÕES AFIRMATIVAS

O país que primeiro adotou as políticas sociais denominadas “ações afirmativas” foram os Estados Unidos da América. Inicialmente, tais ações foram criadas como meios de se extinguir – ou pelo menos atenuar – a marginalização social e econômica do negro na sociedade americana. Em um segundo momento, tais políticas foram estendidas às mulheres, e a outros grupos menos favorecidos, como os índios e os deficientes físicos.
 Essas políticas não só visam o combate às manifestações flagrantes de discriminação, mas também àquelas discriminações de fato, baseadas em fatores culturais, já infiltrados na sociedade.
 A concepção das ações afirmativas representa, acima de tudo, uma mudança de postura do Estado, que sai de uma posição de neutralidade, e se coloca em uma posição mais atuante, positiva, visando a diminuir as desigualdades e, com isso, promover a justiça social.
 Nos últimos anos, vêm surgindo no país diversas iniciativas no ordenamento jurídico brasileiro que podem ser compreendidas como “ações afirmativas”. Tais iniciativas, na grande parte das vezes apresentadas como projetos de lei por algum parlamentar, externam medidas que visam a amenizar uma situação de desigualdade de determinados grupos de pessoas. Exemplo dessas iniciativas é o estabelecimento de cotas reservadas para negros em universidades públicas.
 Trata-se de verdadeiras “medidas compensatórias” que têm por finalidade a preservação do princípio da igualdade.
 A importância do tema em apreço afigura-se patente, em especial na realidade brasileira – maculada pela flagrante desigualdade social. Tal abordagem também se mostra relevante na medida em que traz ao campo das ciências jurídicas ricas discussões envolvendo o Direito Comparado, tendo em vista que o instituto das “ações afirmativas” é originário do Direito Norte-americano, sendo contemplado posteriormente por outros ordenamentos jurídicos. Em seu berço, ganharam o nome de affirmative actions, enquanto na Europa foram batizadas como discrimination positive (discriminação positiva) e action positive (ação positiva).
 Segundo David Araujo e Nunes Júnior [2]:
(...) o constituinte tratou de proteger certos grupos que, a seu entender, mereceriam tratamento diverso. Enfocando-os a partir de uma realidade histórica de marginalização social ou de hipossuficiência decorrente de outros fatores, cuidou de estabelecer medidas de compensação, buscando concretizar, ao menos em parte, uma igualdade de oportunidades com os demais indivíduos, que não sofreram as mesmas espécies de restrições.
 Dentro dessa linha de ações afirmativas, no Brasil, o Governo Federal, através da Medida Provisória nº 213, de 10.09.2004, instituiu o PROUNI – Programa Universidade para Todos, que foi regulamentado pelo Decreto n. 5.493/2005. Tal MP foi objeto das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 3.314 e 3.379, ainda pendentes de julgamento, mas já convertida na Lei n. 11.096/2005, alterada pela Lei n. 11.128/2005.
 O Art. 1º da citada lei prevê que o programa é destinado à concessão de bolsas de estudo integrais e parciais de 50% ou de 25% para estudantes de cursos de graduação e sequenciais de formação específica, em instituições privadas de ensino superior, com ou sem fins lucrativos. No Art. 2º, está disposto que a bolsa é destinada: “I – a estudante que tenha cursado o ensino médio completo em escola da rede pública ou em instituições privadas na condição de bolsista integral; II - a estudante portador de deficiência, nos termos da lei; III - a professor da rede pública de ensino, para os cursos de licenciatura, normal superior e pedagogia, destinados à formação do magistério da educação básica”.
 A reserva de vagas, em concursos públicos, para portadores de deficiência física, também constitui esse conjunto de ações afirmativas adotadas pelo legislador pátrio. Acerca do tema, Mônica de Melo assim discorre:
Desta forma, qualquer concurso público que se destine a preenchimento de vagas para o serviço público federal deverá conter em seu edital a previsão das vagas reservadas para os portadores de deficiência. Note-se que o artigo fala em até 20% (vinte por cento) das vagas, o que possibilita uma reserva menor e o outro requisito legal é que as atribuições a serem desempenhadas sejam compatíveis com a deficiência apresentada. Há entendimentos no sentido de que 10% (dez por cento) das vagas seriam um percentual razoável, à medida que no Brasil haveria 10% de pessoas portadoras de deficiência segundo dados da Organização Mundial de Saúde[3].
 Como já dito acima, medidas como essa buscam preservar o princípio da igualdade, mas não se almeja unicamente a igualdade formal, e sim, precipuamente, a igualdade material.

ZICA, Bruno Junio Bicalho. A reserva de vagas aos portadores de necessidades especiais à luz da Constituição Federal e da Lei nº 8.112/90. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3501, 31 jan. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/23592>. Acesso em: 1 fev. 2013.