Vê-se que a noção da família matrimonializada deixou de ser o centro da
sociedade, como regra, tendo a lei respaldado também outras formas de
convivência, sem que, para tanto, houvesse de discriminar as demais
entidades familiares. Tal premissa se legitima com a consagração da
União Estável como forma de constituição familiar, avessa ao casamento,
ainda que com características ligadas a esta, por seus meios de regime
dotais.[71]
Ademais, há presente em nosso sistema civil formas de reconhecimento da
paternidade que legitimam-na ao ponto do estabelecimento de presunções,
levando em consideração, nas palavras de Paulo Lôbo[72]
“a natural dificuldade em se atribuir a paternidade ou maternidade a
alguém, ou então, de óbices fundados em preconceitos históricos
decorrentes da hegemonia da família patriarcal e matrimonializada”.
Sem adentrar, com maiores detalhes, na correspondência legal necessária
da norma de legitimação da presunção de paternidade e maternidade
quando da existência de vínculo matrimonial, coloquemos as regras postas
no artigo 1.596 do Código Civil Brasileiro[73], tais sejam:
Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:
I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal;
II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento;
III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;
IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;
V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.
Maria Berenice Dias assenta a filiação havida na constância do
casamento, ou seja, aquela decorrente da presunção legal de
correspondência de filho por consequência do estabelecimento de um
vínculo matrimonial deste para com a genitora do filho,à uma “ficção
jurídica”, quando dispõe que “pai será sempre o marido da mãe”.
Seria uma correspondência direta ao princípio do pater is est quem
nuptiae, algo como “pai é quem assim demonstram as justas núpcias”,
adentrado diretamente e com reiteração na legislação civil de 1916.[74]
Silvio de Salvo Venosa coloca que a disposição no Código Civil Brasileiro de 1916 era:
[...] fundamentada no que usualmente ocorre, possuía um embasamento cultural e social, em prol da estabilidade da família, uma vez que impedia que se atribuísse a prole adulterina à mulher casada. A maternidade comprova-se pelo parto (arts. 241 e 242 do Código Penal). Daí a regra tradicional mantida pelo novo Código no sentido de que “não basta a confissão materna para excluir a paternidade”. [75]
Caio Mario da Silva Pereira[76] cita que, em
complemento com o aduzido por Venosa, houve uma priorização da lei
civil, ainda que haja disposição de entes familiares diversos, além dos
compostos, por base, pelo casamento, àqueles vínculos formados por este
último.
Não se podendo provar diretamente a paternidade, toda a civilização
ocidental assenta a ideia de filiação num “jogo de presunções”, a seu
turno fundadas numa probabilidade: o casamento pressupõe as relações
sexuais dos cônjuges e fidelidade da mulher; o filho que é concebido
durante o matrimonio tem por pai o marido de sua mãe. E, em
consequência, “presume-se filho o concebido na constância do casamento
dos pais”. Esta regra já vinha proclamada no Direito Romano: pater is
est quem iustae nuptiae demonstrant. Embora todos os autores proclamem o
caráter relativo desta presunção (iuris tantum), deve-se acentuar,
contudo, que a prova contrária é limitada. [77]
Fica clara a intenção do legislador, quando manteve a forma de se
presumir a filiação havida no casamento, a buscar a manutenção deste,
preservando-o de possíveis acontecimentos que o fizessem cessar. Seria
absurda, ao entendimento dos mais conservadores viventes em uma
sociedade, a ideia de que um homem ou mesmo mulher, que contraia núpcias
com alguém, mas que tenha filhos de outra pessoa que não aquela a que
oficialmente está ligada por laços matrimoniais.[78]
Uma dicotomia se faz presente, quando tratamos da presunção pater is
est, se levarmos em consideração a indisposição desta forma de
reconhecimento de filho para a União Estável. Paulo Nader[79]
entende que mesmo nada dispondo a norma positiva acerca da
possibilidade de presunção de paternidade na União Estável, havendo esta
a ser uma das entidades familiares protegidas constitucionalmente, de
forma expressa, por intermédio do art. 226, cabível a incidência deste
instituto, porquanto a aplicação do principio da igualdade das espécies
de família.
Para Rolf Madaleno[80], aplicar-se-á,
analogicamente, as regras de presunção filiativa também à União Estável,
ao ponto que deverá ser visto, sempre, o bem estar do nascente e que,
diante da negatória de paternidade, faz-se simples a sua
desconstituição, pois, “notadamente, nos dias atuais, a ciência conferiu
ao homem a possibilidade de impugnar a filiação a ele imposta por
presunção “
De forma absolutamente injustificada a lei não estende a presunção de paternidade à União Estável.
Tal leva boa parte da doutrina a afirmar que a presunção pater est só
existe no casamento. Talvez por isso não é imposto o dever de fidelidade
aos conviventes, somente o dever de lealdade (CC 1.724). A
diferenciação é de todo desarrazoada. Se a presunção é de relacionamento
sexual durante o casamento, esta mesma presunção existe na União
Estável. Cabe um exemplo. Falecendo o genitor durante a gravidez ou
antes de ter logrado registrar o filho, este terá de intentar ação investigatória de paternidade.
A ação será proposta pelo filho representado pela mãe e no polo passivo
vai figurar sua mãe, na condição de representante do espólio. A saída é
nomear um curador ao autor, mas a solução é admitir a presunção da
filiação. Assim, ainda que a referência legal seja à “constância do
casamento”, a presunção de filiação, paternidade ou maternidade
aplica-se à União Estável. [81]
Já Guilherme Calmon Nogueira da Gama[82] é mais
cauteloso, vez que coloca os institutos do Casamento e da União Estável
em igualdade de condições, conforme tutelamento pelo Estado à todas as
entidades familiares, coadunado pelo art. 226, caput, da Constituição da
República Federativa do Brasil, mas lembra que se tratam de diferentes
espécies e com tratamento diferenciado legitimado pela própria Carta
Magna.
[...] no âmbito das relações internas entre os cônjuges, comparativamente, ao âmbito das relações internas entre os companheiros, haverá importantes diferenças – inclusive quanto à procriação, sob determinados aspectos-, do contrário, não haveria sentido na própria previsão constitucional contida no §3º do art. 226, a respeito de a lei dever facilitar a conversão do companheirismo em casamento [...]
De forma ainda mais enfática, Ana Elizabeth Lapa Wanderley Cavalcanti[83]
dispõe a impossibilidade de presunções de paternidade na União Estável,
se colocando na corrente legalista do tema, aduzindo a alta
referibilidade da lei no que tange exclusivamente às relações
matrimoniais, imputando, como alternativa, a Ação de investigação de
paternidade para determinação do estado filiativo.
Quanto às duas primeiras regras de presunção paternal, tem-se uma regra
positivada, objetiva, que limita a maiores discussões. Ademais,
conforme referido por Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald[84],
há correspondência direta, pelos prazos trazidos pelos incisos I e II
do artigo 1.597, do período mínimo e máximo de uma gestação viável,
realçando que a contagem do primeiro inicia-se com o princípio da
convivência conjugal, e não da celebração do casamento.
É, inclusive, a disposição legislativa de corresponder não a celebração
do casamento, mas ao período convivencial do casal, que legitimaria,
além do disposto no artigo 226 da Constituição da República Federativa
do Brasil, a aplicação da presunção de paternidade aos filhos havidos na
constância da União Estável. Neste sentido, inclusive, é o julgado do
Superior Tribunal de Justiça[85]:
RECURSOS ESPECIAIS. AÇÃO DE ANULAÇÃO DE ATOS JURIDICOS TRANSLATIVOS DE PROPRIEDADE EM CONDOMINIO. LEGITIMIDADE "AD CAUSAM" ATIVA DE FILHOS NÃO RECONHECIDOS DE CONDOMINO JA FALECIDO. A REGRA "PATER EST..." APLICA-SE TAMBEM AOS FILHOS NASCIDOS DE COMPANHEIRA; CASADA ECLESIASTICAMENTE COM O EXTINTO, SUPOSTA UNIÃO ESTAVEL E PROLONGADA. [...] (grifei)
Da mesma maneira, é o julgado do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina[86], aos termos:
TJSC. Da filiação. Reconhecimento de paternidade post mortem. Casal que vivia em União Estável. Filho nascido 134 dias após o falecimento do companheiro. Presunção de filiação. Art. 226, §3º da CRFB/88. Entidade familiar. Aplicação do art. 1.597 do CC/2002. Desnecessidade de ajuizamento de ação de investigação de paternidade. Sob a ótica do artigo 226, § 3º, da Constituição Federal, deve-se aplicar à União Estável o disposto no artigo 1.597 do Código Civil. Assim, se o infante nasceu 134 após o rompimento da união, pela morte do companheiro, a paternidade deve ser presumida, e é dispensada a necessidade de propositura de ação para investigação de filiação.
Por conseguinte, coloca-se uma inovação legislativa, se compararmos com
ao que se dispunha na legislação Civil de 1916: a existência das
espécies homóloga a heteróloga de filiação, acompanhadas de suas
possibilidades presuntivas ao estabelecimento da paternidade. Há de se
diferenciar a inseminação artificial homóloga da heteróloga, para fins
de compreensão do artigo 1.597, incisos III e IV, do Código Civil
Brasileiro. Enquanto a primeira diz respeito ao fornecimento de material
genético próprio do marido para fecundação do óvulo da esposa, o último
refere-se à utilização de sêmen de terceiro. Vislumbra-se, no
derradeiro caso, conforme preceituação legislativa, a necessidade de
expressa autorização do marido para que assim se proceda.[87]
Há, no caso da fecundação por intermédio de inseminação artificial
heteróloga, uma correspondência direta da paternidade socioafetiva,
ainda que na sua mais íntima base formativa. Segundo preconiza Maria
Helena Diniz[88]:
A presunção do art. 1.597, V, visa a instaurar a vontade procracional no marido, como meio de impedi-lo de desconhecer a paternidade do filho voluntariamente assumido ao autorizar a inseminação heteróloga de sua mulher. A paternidade, então, apesar de não ter componente genético, terá fundamento moral, privilegiando-se a relação socioafetiva. Seria torpe, imoral, injusta e antijurídica a permissão para o marido que, conscientemente e voluntariamente, tendo consentido com a inseminação artificial com esperma de terceiro, negasse, posteriormente, a paternidade. Como admitir àquele que deu o nome à criança, tratando-a, perante a sociedade, como filha, venha a negar sua filiação, ferindo sua dignidade como ser humano? Justa não seria a permissão da propositura de ação, com o escopo de desconstituir o registro de nascimento pelo pai que reconheceu aquele filho, mesmo sabendo da inexistência do vínculo biológico, desde que esteja evidenciada a situação de paternidade socioafetiva. (grifei)
Não obstante a existência de presunções legais de filiação, caberá, à
sua discordância, conforme retrogradamente explicitado, a imputação da
Ação Negatória de Paternidade.
Via-se, na legislação civil anterior, que as possibilidades de se negar
a paternidade eram restritas, vez que estas estavam vinculadas a
disposições objetivas, além de conter prazo específico para apresentação
desta impugnação.[89]
O novo Código, em sentido exatamente diverso ao adotado na anterior
codificação, afasta por inteiro qualquer restrição à negatória de
paternidade pelo marido [...]. Sendo nova, merece a norma cuidadosa
leitura e estudo para sua adequada interpretação, considerando que, se
de um lado era extremamente rigoroso o legislador anterior, permitir
agora, livremente e em qualquer circunstância, a rejeição do pai
presumido ao filho, pode consagrar idênticas injustiças.[90]
Ainda que sejam reconhecidamente subjetivos os motivos que levam ao
consagrado pai a negar a paternidade do filho gerado na constância do
casamento, há casos na lei em que se dispõe, diretamente, ao ilide da
controvérsia. É o caso, por exemplo, daquele que prova sua impotência à
época da concepção. Para Maria Berenice Dias, no entanto, esta assertiva
é desarrazoada, por não se poder falar, ao mundo moderno, em impotência
ou mesmo infertilidade. Em princípio, não se entrando na seara da
filiação afetiva, o que se necessita, para fins de vínculo genético de
filiação, é um simples exame de DNA, “ainda que não mereça ser
sacralizado”. Assim, se torna mais simples a realização deste a se
discutir se o indivíduo era impotente/estéril à época da concepção do
filho gerado.[91]
No que concerne a legitimidade para proposição da referida Ação, o
atual Código Civil retirou a noção privativa de que a ação negatória
caberia somente ao marido da genitora, constante quando da aplicação da
anterior legislação, e acrescentou que os herdeiros do impugnante
prosseguirão na ação após a morte deste. [92]
Quanto ao prazo para se propor a Negatória de Paternidade, necessária se faz a brilhante sintetização arrolada por Arnaldo Wald[93]:
O prazo decadencial para propor a ação negatória de paternidade já vinha sendo desconsiderado, principalmente após o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, cujo art. 27 prescreve que “o reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais e seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça”. Atento à evolução da jurisprudência, da doutrina e da legislação a respeito, a ação negatória de paternidade, com a superveniência do Código Civil de 2002, passou a ser imprescritível (art. 1.601).
Desta forma, coloca-se, pormenorizadamente, a filiação havida na
constância do casamento, suas formas de presunção e negação, antevendo
aquela posta fora da matrimonialidade, conforme ver-se-á por
conseguinte.
BARCELOS, Daniel Gilson.
A formação do estado filiativo na socioafetividade e o direito sucessório por sua decorrência
. Jus Navigandi, Teresina,
ano 18,
n. 3498,
28jan.2013
.
Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/23563>. Acesso em: 1 fev. 2013.
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