Com a justificativa de preservação do que se tinha por núcleo familiar,
o legislador infraconstitucional colocava os filhos numa situação que
correspondia, literalmente, à discriminação de seu tratamento, tendo por
conta sua origem de concepção. À teoria se tinha o sentido de
resguardar a família tradicional, o que, em outrora, correspondia ao
aceitável na sociedade; na prática, o que se via, era uma tratativa de
preservação não da entidade familiar, mas de seu patrimônio, vez que, em
se tratando filhos que tenham por origem à diversa da que se
habitualmente julgava por moralmente aceito, renegava-se sua
legitimidade e, por condição, estes eram colocados a parte dos direitos
que os concebidos tradicionalmente.[1]
A premissa acima aduzida corresponde ao que tínhamos na legislação
anterior: a filiação, assim como todo o Direito de Família, tinha como
preocupação a preservação do patrimônio familiar, não com o sujeito,
protagonista da relação jurídica.
Atualmente, a família brasileira tem como extensões àquelas existentes
quando da vivência das sociedades romana e germânicas e, ainda,
influência direta da Igreja que, com seu Direito Canônico, alcançou e
alcança as relações familiares no que tange à compatibilização de
direitos, ainda nos dias atuais, mesmo diante daratificação da condição
laica do Estado.[2]
O conceito de família independia assim da consanguinidade. O pater
famílias exercia a sua autoridade sobre todos os seus descendentes não
emancipados, sobre a sua esposa e sobre as mulheres casadas com manuscom
seus descendentes
HISTORICIDADE DA FILIAÇÃO E SUAS NUANCES DENTRO DO DIREITO DE FAMÍLIA
Dentro da determinação do desenvolvimento familiar há uma espécie de
paleontologia social, tendo por conta que sua conceituação, ou a
tratativa desta, se dá, aos diversos autores estudioso do assunto, de
forma determinada ou mesmo por intermédio de suposições, diante da sua
subjetividade evidente em, mesmo nas mais antigas civilizações,
corresponder à tendência do estabelecimento de espécies diversas além
daquela posta por regra na sociedade.[4]
A impossibilidade de ter uma certeza biológica de ligação, nas mais
antigas civilizações, fez com que as sociedades primitivas colocassem a
filiação com uma nuance não necessariamente consanguínea.
Historicamente, assinalo a sua presença nos países da civilização
mediterrânea, mais precisamente enfocando o Direito Romano, cujos
padrões, na descrição de Fustel de Coulanges e Rudolf Von Jhering,
procuram assentar a sua tipologia, com base nos princípios da religião
doméstica. Filho não era aquele ligado ao pai por laços de
consaguinidade (cognatio), porém, o que era apresentado ante o altar
doméstico, ao qual se transmitia o culto dos dii lares, de que seria
continuador do culto (agnatio).[5]
A conotação afetiva das relações de casamento, que, por regra, anteveem
a concepção de linhagem, não era posta por condição nas antigas
civilizações. Como exemplo de tal realidade, cite-se a correspondência
do casamento de viúvas, sem filhos, com o parente mais próximo do
marido; o filho, caso existisse, era considerado filho do suplente de
seu pai, ou seja, vê-se aqui, uma relativização do registro, ainda que
tácito, ante a modificação da situação paterna do filho.[6]
O casamento era assim obrigatório. Não tinha por fim o prazer; o seu
objeto principal não estava na união de dois seres mutuamente
simpatizantes um com o outro e querendo associarem-se para a felicidade e
para as canseiras da vida. O efeito do casamento, à face das religiões e
das leis, estaria na união de dois seres no mesmo culto doméstico,
fazendo deles nascer um terceiro, apto para continuador desse culto. [7]
A base da família na Antiguidade era a crença nos mortos e a noção de
imortalidade que a conceituação de linhagem trazia com o estabelecimento
da paternidade. Ao se ter um filho, acreditava-se que a imortalidade da
figura individual seria uma constante, tendo por significado maior a
perpetuação da felicidade familiar, que, em sendo um conceito subjetivo,
deve ser vislumbrado ao modelo de família adotado no período retro.
Mantendo-se a espécie, mantinha-se o culto o que, por sua vez, trazia a
noção da desnecessidade do vínculo genético para o estabelecimento do
enlace paterno.[8]
Para se aprofundar conscientemente na instituição da família, há de se
conscientizar que sofreu no curso da história sensível alteração
estrutural, partindo de que num certo momento compreendia todas as
pessoas agrupadas em torno de um chefe comum. Assim se entendia em Roma,
onde abrangia todo um conglomerado de pessoas, incluídos os servos
(famuli, donde a palavra família) e não apenas o que em linguagem
moderna representa as pessoas ligadas pelo parentesco, no sentido
estrito de cultores das homenagens aos antepassados (penates), descrita
com exatidão por Fustel de Coulanges.[9]
Via-se no Direito Romano a figura do pater famílias queexercia sobre os
filhos um direito de vida e de morte, tendo por conta a assertiva da
subordinação que eles tinham para com a figura paterna. Na mesma
premissa estava a mulher, quando colocada, hierarquicamente, abaixo do
marido, tendo que se submeter às vontades daquele que era designado
chefe de família.[10]
Carlos Roberto Gonçalves explica que:
Com o tempo, a severidade das regras foi atenuada, conhecendo os
romanos o casamento sinemanu, sendo que as necessidades militares
estimularam a criação de patrimônio independente para os filhos. Com o
Imperador Constantino, a partir do século IV, instala-se no Direito
Romano a concepção cristã de família, na qual predominam as preocupações
de ordem cristã da família, na qual predominam as preocupações de ordem
moral. Aos poucos foi então a família romana evoluindo no sentido de se
restringir progressivamente a autoridade do pater, dando-se maior
autonomia à mulher e aos filhos, passando estes a administrar os
pecúlios castrenses (vencimentos militares).[11]
NoDireito Canônico, o matrimônio era visto de forma sacralizada, com
características indissolúveis. A noção de que Deus uniria e o Homem
seria incapaz de separar denotava e externava o viés psicológico a que a
religião se utilizava para motivar os que, objetivamente e sem opções, a
seguiam. Tinha-se, à época, uma mistura entre o Estado, que não era
laico, e a Igreja, que se colocava na sociedade como norteadora
jurídica.[12]
Na Idade Média, as relações familiares, pela influência direta da
Igreja Católica no mundo conhecido, eram correspondidas regraticamente
pelo Direito Canônico. Não só nas relações formativas de Direito de
Família é que podemos citar a correspondência do Direito Canônico nas
relações jurídicas gerais dos Estados, mas também nas que envolviam o
patrimônio deste. Cite-se também a crescente importância das regras de
origem germânica neste diapasão.[13]
Foi gradual e progressiva a construção de família que se aproxima a que
conhecemos, ao ponto de se tornar um dos mais (se não o mais)
importantes institutos sociais.
Pode-se notar, tal como leciona Nadaud, que “pouco a pouco a família
romana e a família medieval se unem na noção de vida conjugal – o
casamento como consortium vitae – e filiação, sendo de importância
máxima o elo que os une. É assim que altera-se a forma dessa família,
mudança paralela às profundas mutações da sociedade: a família tende a
ser cada vez mais concebida como o centro da estrutura da sociedade, e,
desta forma, o lugar onde se exerce o poder”.[14]
A noção de família, dentro das relações jurídicas sofreu (e sofre), ao
longo dos séculos, mutações tanto estruturais quando preceituais, sendo
esta última ensejadora da primeira. A retirada do conceito da
“indissolubilidade do casamento” dentre as características daquele posto
oficialmente na sociedade corresponde à evolução das relações humanas,
principalmente no que diz respeito à evolução do próprio ser humano.
Podemos dizer que a família brasileira, como hoje é conceituada, sofreu
influência da família romana, da família canônica e da família
germânica. É notório que o nosso Direito de Família foi fortemente
influenciado pelo direito canônico, como consequência, principalmente da
colonização lusa. As Ordenações Filipinas foram a principal fonte e
traziam a forte influência do aludido direito, que atingiu o direito
pátrio. No que tange aos impedimentos matrimoniais, por exemplo, o
Código Civil de 1916 seguiu a linha do direito canônico, preferindo
mencionar as condições de invalidade.[15]
Tem-se certo que na ordenação civil brasileira de 1916 o direito de
reconhecimento da filiação, e suas consequências jurídicas, já estava
presente, ainda que com algumas restrições.
Mas foi somente com o advento da atual Carta Magna que se viu adentrar
em nosso sistema jurídico-normativo princípios familiares de Direito
que, além de retirar a discriminação entre filhos de diferentes
espécies, trouxe à tona questões que subjetivaram o respaldo necessário
para que fosse designado o vínculo jurídico-paternal, socializando o
Direito de Família.[16]
Desse modo, diante do reconhecimento da inadequação do tratamento legal
a respeito do tema envolvendo o estabelecimento e os efeitos da
filiação, o direito brasileiro promoveu, paulatinamente no curso do
século XX, mudanças, a princípio parciais e pontuais, até o advento da
Constituição de 1988, que estabeleceu a plena igualdade dos filhos,
independentemente do tipo de vínculo existente entre seus pais e da
origem de parentalidade.[17]
De forma primeira, quando levamos em consideração a base familiar
adentrada nas relações de filiação, viu-se o estabelecimento do
patriarcado e da discriminação entre as diferentes espécies de filho,
sendo considerado legítimo tão-somente aquele que, por presunção legal
mediante declaração de vontade do intitulado pai, era colocado como
geneticamente ligado a este – na verdade, diante da ausência de
possibilidade de comprovação médica de condição, o vínculo genético era
legalmente atrelado à realidade registral.[18]
Somente mediante a ascensão da atual Constituição, que modernizou o
Direito de Família e reiterou o sentido social da lei, foi que o
correspondido pela verdade real às diferentes espécies de filho pôde se
ver adentrado na realidade jurídica das famílias, não havendo mais a
conotação da ilegitimidade, seja qual for.[19]
Também foi gradual e vagarosa a evolução dos direitos dos filhos ditos
ilegítimos (expressão hoje proibida em documentos oficiais). Como todos
sabem, no sistema anterior à CF de 1988, os filhos se classificavam em
legítimos, legitimados e ilegítimos. Estes, por sua vez, se desdobravam
em naturais e espúrios. Os últimos, em adulterinos e incestuosos. Esta
classificação foi derrubada desde 1988, pois é total a igualdade
jurídica entre os filhos. Se hoje uma classificação dos filhos é
admitida, para fins didáticos, apenas se pode falar em filhos
matrimoniais e extramatrimoniais; mesmo esta dicotomia, bem a rigor, é
falha, pois o filho extramatrimonial é um suposto filho, até ser
reconhecido, voluntária ou judicialmente, e, quando o for, será
absolutamente igual aos demais.[20]
Assim, com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988, viu-se a legitimação daquilo que em anos se teve por evolução,
diante da imensa modificação da base familiar, tendo por conta a
implicação nos filhos da pluralidade de espécies de família existentes
no atual sistema jurídico. O Direito se viu adaptado à realidade fática
das famílias, contribuindo para que fosse, a legislação retro,
denominada “cidadã”, tal como veremos no tópico seguinte.
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