sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Historicidade da filiação

Com a justificativa de preservação do que se tinha por núcleo familiar, o legislador infraconstitucional colocava os filhos numa situação que correspondia, literalmente, à discriminação de seu tratamento, tendo por conta sua origem de concepção. À teoria se tinha o sentido de resguardar a família tradicional, o que, em outrora, correspondia ao aceitável na sociedade; na prática, o que se via, era uma tratativa de preservação não da entidade familiar, mas de seu patrimônio, vez que, em se tratando filhos que tenham por origem à diversa da que se habitualmente julgava por moralmente aceito, renegava-se sua legitimidade e, por condição, estes eram colocados a parte dos direitos que os concebidos tradicionalmente.[1]
A premissa acima aduzida corresponde ao que tínhamos na legislação anterior: a filiação, assim como todo o Direito de Família, tinha como preocupação a preservação do patrimônio familiar, não com o sujeito, protagonista da relação jurídica.
Atualmente, a família brasileira tem como extensões àquelas existentes quando da vivência das sociedades romana e germânicas e, ainda, influência direta da Igreja que, com seu Direito Canônico, alcançou e alcança as relações familiares no que tange à compatibilização de direitos, ainda nos dias atuais, mesmo diante daratificação da condição laica do Estado.[2]
Arnaldo Wald[3], quando trata da percepção patriarcal do Direito primitivo brasileiro, que, historicamente, se coloca contemporâneo à nossa vivência, tendo por conta a recente história democrática e desvinculação à Portugal, datada do século passado, aduz que:
O conceito de família independia assim da consanguinidade. O pater famílias exercia a sua autoridade sobre todos os seus descendentes não emancipados, sobre a sua esposa e sobre as mulheres casadas com manuscom seus descendentes
(...)

HISTORICIDADE DA FILIAÇÃO E SUAS NUANCES DENTRO DO DIREITO DE FAMÍLIA

Dentro da determinação do desenvolvimento familiar há uma espécie de paleontologia social, tendo por conta que sua conceituação, ou a tratativa desta, se dá, aos diversos autores estudioso do assunto, de forma determinada ou mesmo por intermédio de suposições, diante da sua subjetividade evidente em, mesmo nas mais antigas civilizações, corresponder à tendência do estabelecimento de espécies diversas além daquela posta por regra na sociedade.[4]
A impossibilidade de ter uma certeza biológica de ligação, nas mais antigas civilizações, fez com que as sociedades primitivas colocassem a filiação com uma nuance não necessariamente consanguínea.
Historicamente, assinalo a sua presença nos países da civilização mediterrânea, mais precisamente enfocando o Direito Romano, cujos padrões, na descrição de Fustel de Coulanges e Rudolf Von Jhering, procuram assentar a sua tipologia, com base nos princípios da religião doméstica. Filho não era aquele ligado ao pai por laços de consaguinidade (cognatio), porém, o que era apresentado ante o altar doméstico, ao qual se transmitia o culto dos dii lares, de que seria continuador do culto (agnatio).[5]
A conotação afetiva das relações de casamento, que, por regra, anteveem a concepção de linhagem, não era posta por condição nas antigas civilizações. Como exemplo de tal realidade, cite-se a correspondência do casamento de viúvas, sem filhos, com o parente mais próximo do marido; o filho, caso existisse, era considerado filho do suplente de seu pai, ou seja, vê-se aqui, uma relativização do registro, ainda que tácito, ante a modificação da situação paterna do filho.[6]
O casamento era assim obrigatório. Não tinha por fim o prazer; o seu objeto principal não estava na união de dois seres mutuamente simpatizantes um com o outro e querendo associarem-se para a felicidade e para as canseiras da vida. O efeito do casamento, à face das religiões e das leis, estaria na união de dois seres no mesmo culto doméstico, fazendo deles nascer um terceiro, apto para continuador desse culto. [7]
A base da família na Antiguidade era a crença nos mortos e a noção de imortalidade que a conceituação de linhagem trazia com o estabelecimento da paternidade. Ao se ter um filho, acreditava-se que a imortalidade da figura individual seria uma constante, tendo por significado maior a perpetuação da felicidade familiar, que, em sendo um conceito subjetivo, deve ser vislumbrado ao modelo de família adotado no período retro. Mantendo-se a espécie, mantinha-se o culto o que, por sua vez, trazia a noção da desnecessidade do vínculo genético para o estabelecimento do enlace paterno.[8]
Para se aprofundar conscientemente na instituição da família, há de se conscientizar que sofreu no curso da história sensível alteração estrutural, partindo de que num certo momento compreendia todas as pessoas agrupadas em torno de um chefe comum. Assim se entendia em Roma, onde abrangia todo um conglomerado de pessoas, incluídos os servos (famuli, donde a palavra família) e não apenas o que em linguagem moderna representa as pessoas ligadas pelo parentesco, no sentido estrito de cultores das homenagens aos antepassados (penates), descrita com exatidão por Fustel de Coulanges.[9]
Via-se no Direito Romano a figura do pater famílias queexercia sobre os filhos um direito de vida e de morte, tendo por conta a assertiva da subordinação que eles tinham para com a figura paterna. Na mesma premissa estava a mulher, quando colocada, hierarquicamente, abaixo do marido, tendo que se submeter às vontades daquele que era designado chefe de família.[10]
Carlos Roberto Gonçalves explica que:
Com o tempo, a severidade das regras foi atenuada, conhecendo os romanos o casamento sinemanu, sendo que as necessidades militares estimularam a criação de patrimônio independente para os filhos. Com o Imperador Constantino, a partir do século IV, instala-se no Direito Romano a concepção cristã de família, na qual predominam as preocupações de ordem cristã da família, na qual predominam as preocupações de ordem moral. Aos poucos foi então a família romana evoluindo no sentido de se restringir progressivamente a autoridade do pater, dando-se maior autonomia à mulher e aos filhos, passando estes a administrar os pecúlios castrenses (vencimentos militares).[11]
NoDireito Canônico, o matrimônio era visto de forma sacralizada, com características indissolúveis. A noção de que Deus uniria e o Homem seria incapaz de separar denotava e externava o viés psicológico a que a religião se utilizava para motivar os que, objetivamente e sem opções, a seguiam. Tinha-se, à época, uma mistura entre o Estado, que não era laico, e a Igreja, que se colocava na sociedade como norteadora jurídica.[12]
Na Idade Média, as relações familiares, pela influência direta da Igreja Católica no mundo conhecido, eram correspondidas regraticamente pelo Direito Canônico. Não só nas relações formativas de Direito de Família é que podemos citar a correspondência do Direito Canônico nas relações jurídicas gerais dos Estados, mas também nas que envolviam o patrimônio deste. Cite-se também a crescente importância das regras de origem germânica neste diapasão.[13]
Foi gradual e progressiva a construção de família que se aproxima a que conhecemos, ao ponto de se tornar um dos mais (se não o mais) importantes institutos sociais.
Pode-se notar, tal como leciona Nadaud, que “pouco a pouco a família romana e a família medieval se unem na noção de vida conjugal – o casamento como consortium vitae – e filiação, sendo de importância máxima o elo que os une. É assim que altera-se a forma dessa família, mudança paralela às profundas mutações da sociedade: a família tende a ser cada vez mais concebida como o centro da estrutura da sociedade, e, desta forma, o lugar onde se exerce o poder”.[14]
A noção de família, dentro das relações jurídicas sofreu (e sofre), ao longo dos séculos, mutações tanto estruturais quando preceituais, sendo esta última ensejadora da primeira. A retirada do conceito da “indissolubilidade do casamento” dentre as características daquele posto oficialmente na sociedade corresponde à evolução das relações humanas, principalmente no que diz respeito à evolução do próprio ser humano.
Podemos dizer que a família brasileira, como hoje é conceituada, sofreu influência da família romana, da família canônica e da família germânica. É notório que o nosso Direito de Família foi fortemente influenciado pelo direito canônico, como consequência, principalmente da colonização lusa. As Ordenações Filipinas foram a principal fonte e traziam a forte influência do aludido direito, que atingiu o direito pátrio. No que tange aos impedimentos matrimoniais, por exemplo, o Código Civil de 1916 seguiu a linha do direito canônico, preferindo mencionar as condições de invalidade.[15]
Tem-se certo que na ordenação civil brasileira de 1916 o direito de reconhecimento da filiação, e suas consequências jurídicas, já estava presente, ainda que com algumas restrições.
Mas foi somente com o advento da atual Carta Magna que se viu adentrar em nosso sistema jurídico-normativo princípios familiares de Direito que, além de retirar a discriminação entre filhos de diferentes espécies, trouxe à tona questões que subjetivaram o respaldo necessário para que fosse designado o vínculo jurídico-paternal, socializando o Direito de Família.[16]
Desse modo, diante do reconhecimento da inadequação do tratamento legal a respeito do tema envolvendo o estabelecimento e os efeitos da filiação, o direito brasileiro promoveu, paulatinamente no curso do século XX, mudanças, a princípio parciais e pontuais, até o advento da Constituição de 1988, que estabeleceu a plena igualdade dos filhos, independentemente do tipo de vínculo existente entre seus pais e da origem de parentalidade.[17]
De forma primeira, quando levamos em consideração a base familiar adentrada nas relações de filiação, viu-se o estabelecimento do patriarcado e da discriminação entre as diferentes espécies de filho, sendo considerado legítimo tão-somente aquele que, por presunção legal mediante declaração de vontade do intitulado pai, era colocado como geneticamente ligado a este – na verdade, diante da ausência de possibilidade de comprovação médica de condição, o vínculo genético era legalmente atrelado à realidade registral.[18]
Somente mediante a ascensão da atual Constituição, que modernizou o Direito de Família e reiterou o sentido social da lei, foi que o correspondido pela verdade real às diferentes espécies de filho pôde se ver adentrado na realidade jurídica das famílias, não havendo mais a conotação da ilegitimidade, seja qual for.[19]
Também foi gradual e vagarosa a evolução dos direitos dos filhos ditos ilegítimos (expressão hoje proibida em documentos oficiais). Como todos sabem, no sistema anterior à CF de 1988, os filhos se classificavam em legítimos, legitimados e ilegítimos. Estes, por sua vez, se desdobravam em naturais e espúrios. Os últimos, em adulterinos e incestuosos. Esta classificação foi derrubada desde 1988, pois é total a igualdade jurídica entre os filhos. Se hoje uma classificação dos filhos é admitida, para fins didáticos, apenas se pode falar em filhos matrimoniais e extramatrimoniais; mesmo esta dicotomia, bem a rigor, é falha, pois o filho extramatrimonial é um suposto filho, até ser reconhecido, voluntária ou judicialmente, e, quando o for, será absolutamente igual aos demais.[20]
Assim, com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, viu-se a legitimação daquilo que em anos se teve por evolução, diante da imensa modificação da base familiar, tendo por conta a implicação nos filhos da pluralidade de espécies de família existentes no atual sistema jurídico. O Direito se viu adaptado à realidade fática das famílias, contribuindo para que fosse, a legislação retro, denominada “cidadã”, tal como veremos no tópico seguinte.

BARCELOS, Daniel Gilson. A formação do estado filiativo na socioafetividade e o direito sucessório por sua decorrência . Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3498, 28jan.2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/23563>. Acesso em: 1 fev. 2013.

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