terça-feira, 9 de outubro de 2018

Escreveu, não leu, … aguente as consequências

Elisa Junqueira Figueiredo
A preocupação em delinear as condições contratuais e entender os seus termos deve estar sempre presente e ser praticada no desenvolvimento da atividade empresarial.
terça-feira, 9 de outubro de 2018

A importância de se ler tudo o que se assina é relegada muitas vezes a segundo plano, sob diferentes escusas: “é só um simples contrato de locação”, “não poderei mudar nada, mesmo”, “confio em quem redigiu”, “o prazo é curto, não preciso me preocupar”, para mencionar apenas algumas.
Logo no primeiro ano da faculdade, aprendi a sempre ler (e analisar criticamente) o que vou assinar. Segui à risca? Diria que na grande maioria das vezes, sim. Valeu a pena? Irrefutavelmente, sim! Ainda que apenas para se ter ciência acerca dos possíveis desdobramentos e analisar riscos. E quando estamos tratando de contratação no ramo empresarial a importância, não só de uma atenta leitura e perfeito entendimento das condições contratuais, mas também e principalmente da preocupação efetiva em refletir o quanto ajustado e as consequências que advirão de cada atitude das partes (comissiva ou omissiva, cumprimento ou inadimplemento das cláusulas) é ainda maior.
A redação clara, objetiva e com profundo conhecimento do objeto contratado exsurge como forma de garantir os direitos de cada parte. O contrato e sua execução têm impacto direto em diversas disciplinas, não apenas jurídicas: tributário, contábil, civil, financeiro, societário, mercado de capitais, trabalhista etc., e indireto, por não se referir de forma direta ao objeto contratado, mas relacionado à sua execução: compliance e políticas anticorrupção de cada uma das partes. Vemos no contrato, portanto, um verdadeiro exemplo da relevância da visão multidisciplinar de quem o redige. Diria que o contrato é a representação da multidisciplinaridade, que hoje é assunto da moda, mas que vem sendo por nós praticado desde a fundação do escritório.
O objeto do contrato, a depender da forma como escrito e do juízo de valor e compreensão de quem o aplica (administrador), pode dar diferentes margens de interpretação sobre o impacto tributário e a contabilização dos direitos e obrigações contraídos. Ainda sobre o objeto contratado: a depender do objeto social da empresa, a execução do contrato pode levar a uma ou outra carga tributária, a exemplo das diferentes alíquotas de imposto em caso de alienação de imóvel por empresas que tem ou não objeto imobiliário como atividade social. Vimos aqui, além do objeto contratado, duas disciplinas jurídicas (tributário e societário) e uma área não jurídica na sua prática (contabilidade), embora se origine no Direito.
Teremos, ainda, impactos financeiros e poderemos ter impacto no mercado de capitais e até trabalhistas, pois as contratações têm desdobramentos nos resultados da empresa (melhora ou piora de índices financeiros, tais como liquidez e alavancagem), com a consequente apuração (ou não) de lucros e distribuição de dividendos, o que, por sua vez, pode (des)valorizar as ações da empresa, e também em bonificação aos administradores, em razão do resultado.
Não se deve esquecer, muito pelo contrário, das boas práticas exigidas hoje pelo mercado, consubstanciadas em uma política efetiva de compliance e anti-corrupção, que devem se estender às contratações realizadas pelas empresas e, para tanto, estar refletidas nos contratos celebrados. Seja nas relações público-privadas, seja nas relações entre entes privados, deve-se sempre agir em cumprimento às normas legais, contratuais e às políticas de conformidade. E a forma de buscar a efetividade de tais políticas é fazendo constar expressamente no contrato as regras as serem seguidas e exigir o seu cumprimento. Quanto aos desdobramentos e importância disso, os noticiários e a Operação Lava Jato são suficientemente esclarecedores.
Para não me estender demasiado, lembro aqui de mais uma disciplina jurídica (derradeira para esta reflexão): a execução do contrato (no sentido de discutir cláusulas contratuais e forçar o cumprimento), que deve ser lembrada desde a sua idealização e antes de sua assinatura, para garantir a satisfação dos direitos, o que pode ser pela via judicial (única se se tratar apenas de ato coercitivo) ou arbitral.
Como se vê, a multidisciplinaridade é inerente aos contratos e a redação de cláusulas e condições contratuais claras e precisas se reveste de sua importância para descrever direitos e obrigações e garantir a função social para a qual o contrato foi celebrado. A preocupação em delinear as condições contratuais e entender os seus termos deve estar sempre presente e ser praticada no desenvolvimento da atividade empresarial. Por isso que digo e repito: escreveu, não leu (e assinou) … aguente as consequências!
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*Elisa Junqueira Figueiredo é advogada sócia do escritório Fernandes, Figueiredo, Françoso e Petros Advogados.

O "maior acompanhado": uma novidade no Direito português (parte 2)

Por 
Na coluna de 27 de agosto, fez-se uma introdução à recente Lei 49/2018, que, em Portugal, introduziu o instituto do maior acompanhado e extirpou do Código Civil a interdição e a inabilitação. A mudança espelha o movimento de flexibilização do regime das incapacidades.
Para este texto, ficou uma comparação específica entre as leis brasileira e portuguesa e de alguns outros países. Em virtude das limitações de espaço, as legislações serão avaliadas de forma sucinta, a permitir uma visão geral sobre as semelhanças e diferenças em relação ao Direito brasileiro.
Quanto à lei portuguesa, retomem-se dois pontos. O primeiro está na legitimidade para o pedido de acompanhamento: o próprio beneficiário, o cônjuge, o companheiro, ou ainda parente sucessível, estes com autorização da pessoa com limitação, ou o MP (dispensada a autorização). No Brasil, a TDA só pode ser pedida pelo próprio beneficiário, muito embora alguns autores defendam uma legitimidade alargada, para incluir aqueles que podem pedir a curatela. Não se concorda com esse entendimento, preferindo-se seguir o que a lei expressamente diz, e que até mesmo a VIII Jornada de Direito Civil, em seu Enunciado 639, sugeriu: “A opção pela tomada de decisão apoiada é de legitimidade exclusiva da pessoa com deficiência”.
O outro aspecto digno de retomada está no conteúdo do acompanhamento. Pelo teor do novo artigo 145º, 2, b do Código Civil português, o tribunal pode cometer ao acompanhante um poder geral de representação do beneficiário da medida, ou ainda uma representação especial, “com indicação expressa, neste caso, das categorias de atos para que seja necessária”. Já o n. 3 do mesmo artigo determina que “os atos de disposição de bens imóveis carecem de autorização judicial prévia e específica”.
Essa representação e a necessidade de autorização judicial para a alienação de bens imóveis trazem o instituto para a realidade. É que, diante de limitações psicofísicas, pode muito bem ocorrer que a pessoa realmente precise dessa representação. Por outro lado, a gravidade jurídica traduzida numa alienação imobiliária exige sempre um crivo judicial específico. Isso torna o instituto do Direito português muito diferente da TDA, a qual, apartando-se da curatela, recebe um estranho grau de autonomia em relação a todos os outros institutos. A consequência é a que já por aí se divulga: um esvaziamento de utilidade da TDA. No fundo, parece que o “maior acompanhado” está mais próximo da “nova curatela” implantada no Brasil pelo EPD como tentativa (pouco exitosa) de substituir o processo de interdição.
Na Itália, o instituto congênere do “maior acompanhado” e (em partes) da TDA é a chamada amministrazione di sostegno, introduzida pela Lei 06, de 2004, e que modificou aspectos importantes do Código Civil e do Código de Processo Civil. Mais uma vez, a mudança deu-se com a combinação de aspectos matérias e processuais, muito diferente do que ocorreu no Brasil. A administração de apoio, diz a lei (artigo 404 do CC italiano) corresponde na verdade a um tipo de assistência geral, a ser conferida ao sujeito que, por efeito de uma enfermidade ou de uma deficiência física ou psíquica, esteja privado, ainda que de forma parcial ou transitória, de prover os próprios interesses. O apoiador é nomeado pelo juiz tutelar, num procedimento que requer a intervenção do Ministério Público (artigo 407).
Pode o próprio indivíduo pedir o apoio, ainda que se trate de interditado ou inabilitado. Neste último caso, o juízo competente será o mesmo que deferiu a interdição/inabilitação. O decreto de nomeação do apoiador deve conter (artigo 405), entre outros elementos, a duração da medida; os atos que o apoiador pode praticar em nome do beneficiário (espécie de representação, ao que se entende); os atos que o apoiado só pode praticar com a assistência do apoiador; limite de valor das despesas que o apoiador pode empregar usando reservas do beneficiário; a periodicidade com que o administrador deve reportar ao juízo o desenvolvimento da relação estabelecida.
Na amministrazione di sostegno, como se vê, pode haver um conteúdo próximo das projeções conhecidas da interdição, ainda que se trate de um instituto surgido para comprimir no menor grau possível os direitos do beneficiário[1]. Tudo depende do estado da pessoa. O código, por sinal, preserva a interdição e a inabilitação (diferentemente do que se deu em Portugal), as quais podem ser adotadas como medidas mais gravosas, embora sejam residuais[2]. A flexibilidade não está, portanto, no afastamento completo da representação, mas em sua aplicação temperada, num instituto que combina atos livres com outros apenas diretamente praticáveis pelo apoiador. Tanto é assim que o artigo 409 do CC italiano assinala que o beneficiário mantém a capacidade plena para aqueles atos que não exigem representação ou assistência por parte de quem lhe presta o apoio.
Na França, modificações tendentes a garantir maior liberdade à pessoa com deficiência implementaram-se desde 1968, por meio da lei de 3 de janeiro, com importantes alterações do Código Civil. Houve uma reforma e atualização pela Lei 2007-308, de 5 de março de 2007. O instituto mais flexível é a chamada sauvegarde de justice, uma espécie de apoio especial e imediato às pessoas portadoras de limitações psicofísicas. Segundo o artigo 433 do Code, tais pessoas, quando necessitem de uma proteção jurídica temporária ou da representação para determinados atos, podem ser colocadas sob a sauvegarde, que pode, inclusive, ser implementada por iniciativa médica, além do juiz de tutelas. Em todo caso, o pedido de sauvegarde deve ser instruído com atestado de um médico inscrito em lista elaborada pelo Ministério Público, com descrição detalhada do estado da pessoa e de suas limitações.
O beneficiário preserva a capacidade de exercício: apenas não pode praticar certos atos para os quais se estabelece a necessidade de mandatário especial, sob pena de nulidade (artigo 435 CC). A presença do mandatário é uma possibilidade, e sua designação é feita pelo juiz tutelar, muito embora a própria pessoa possa indicá-lo. Com a sauvegarde há uma tutela posterior dos atos jurídicos, os quais podem ser anulados ou reduzidos com maior facilidade, especialmente diante de lesão. A medida é firmada por tempo limitado de um ano, renovável uma vez, o que traduz sua provisoriedade. Caso a sauvegarde não seja suficiente, abrem-se os regimes da curatela e da tutela. Nesta há uma representação geral e contínua (artigo 440 CC), enquanto que na curatela tem-se uma espécie de assistência, deferida às pessoas que podem ainda emitir manifestação de vontade firme e que conseguem compreender os aconselhamentos e auxílios dados por outrem.
Na Alemanha, a Lei da Assistência (Betreuungsgesetz), de 12 de setembro de 1990 — vista por alguns como a “reforma do século”[3] —, alterou o sistema de tutela dos incapazes, dando-lhes maior liberdade no trato de suas relações jurídicas. As pessoas maiores com deficiência não mais se submetem aos regimes da curatela e da tutela. Confere-se ao beneficiário uma espécie de apoio jurídico, consistente na designação de um assistente para determinados atos, relativamente aos quais o auxílio se mostre efetivamente necessário (parágrafo 1.896, 2 BGB). Aplica-se o instituto nos casos em que a pessoa maior de idade apresenta uma limitação para a defesa dos próprios interesses em virtude de enfermidade psíquica, física ou intelectual (situações previstas na própria lei, parágrafo 1.896, 1 BGB).
A nomeação do assistente compete ao juiz tutelar, diante de pedido formulado pela própria pessoa ou mesmo de ofício. Apesar da previsão de um poder (limitado) de assistência, há uma proximidade entre esse instituto e a brasileira TDA. É que a assistência, na Alemanha, pode ser deferida a pessoas que, embora tenham limitações psicofísicas, são capazes. Como já se afirmou, na TDA a pessoa beneficiária é mesmo capaz para os atos da vida civil. A diferença é que no Direito alemão essa é apenas uma possibilidade, o que tem toda razão de ser: está-se a falar, enfim, de um poder de assistência, no que reside, por outro lado, a diferença em relação à TDA, na qual não existe tal poder (ao que se entende).
A comparação com os ordenamentos relacionados permite que se afirme: no Brasil, reina a confusão. Para começar, a inserção de mecanismos como a TDA deu-se de forma descuidada, especialmente por conta da falta de previsão na lei processual. Mesmo que se esteja em vias de corrigir esse problema — com o PLS 757/2015, cujo substitutivo foi recentemente aprovado no Senado — o que está feito, feito está. E é inaceitável em um país civilizado. A lei, ao baralhar conceitos e categorias, dificulta o trabalho de qualificação das situações jurídicas e prejudica a determinação do regime aplicável.
Diferentemente do que se deu nos ordenamentos vistos, no Brasil restam dúvidas sobre a permanência da interdição. A verdade é que o “processo que define os termos da curatela” muito pouco se aparta do já conhecido processo de interdição. A flexibilidade introduzida no novo modelo está na determinação mais precisa dos atos que podem ser autonomamente praticados pelo curatelado. É nisso que reside uma proximidade com os institutos dos demais países observados.
Quanto à TDA, seu conteúdo não é suficientemente preciso para dar sustentação a um processo racional de decisão jurídica. Por outro lado, visto como procedimento voltado a pessoas plenamente capazes, mas que apenas requerem um suporte para algumas decisões, o instituto parece soçobrar. É que esse tal suporte, no Brasil — e aqui a diferença em relação aos outros países é grande — dá-se de um modo pouco seguro. Na Itália, por exemplo, com a amministrazione di sostegno, o juiz determinará uma sorte de atos que só podem ser praticados com a assistência do apoiador. Também em Portugal pode-se deferir, para o “maior acompanhado”, uma espécie de poder de assistência e até mesmo de representação em certos casos, assim como ocorre na França com a sauvegarde de justice.
No Direito brasileiro não houve uma combinação de elementos de assistência e representação na TDA. O que houve foi a determinação dos “limites do apoio”. Sua operacionalização, contudo, ainda está envolta em dúvidas. Se não há um apoio, por assim dizer, realmente assistencial, por que pedir o suporte? Como saber se os apoiadores obstam ilicitamente o agir da pessoa apoiada, a fim de responsabilizá-los? Como é possível que o ato jurídico praticado por uma pessoa capaz seja fulminado de invalidade (caso esteja fora dos limites do apoio)? As questões indicam não apenas uma perplexidade dogmática, mas um sincero temor a respeito da situação de pessoas vulneráveis.
Seja como for, o Direito comparado deve ser utilizado para emendar alguns problemas da TDA, em vista da tramitação do PLS 757/2015. Deve-se observar o erro cometido e corrigi-lo com atenção às medidas adotadas em outros países. Mas isso é tema para outra coluna.
A grande conclusão é a seguinte: não se modifica um sistema de incapacidades sem que se tome o máximo cuidado. Esse cuidado, sim, espelha uma preocupação verdadeira com o bem-estar e a inclusão das pessoas. Tudo o que escapa dessa premissa corresponde a uma grande irresponsabilidade.
Por fim, agradece o autor à Rede de Direito Civil Contemporâneo a oportunidade de, mais uma vez, ocupar este importante espaço de debates. Aos coordenadores e a cada um de seus membros consignam-se, como já de costume, as congratulações pelo belíssimo e necessário trabalho em direção a um Direito Civil sério.
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA e UFRJ).


[1] MASCIA, Katia. L’amministrazione di sostegno: nella dottrina e nella giurisprudenza. Vicalvi: Key Editore, 2016. p. 10.
[2] MASONI, Roberto. L’amministrazione di sostegno. Santarcangelo di Romagna: Maggioli, 2009. p. 81-82.
[3] SACHSEN-GESSAPHE, Karl August von. Der Betreuer als gesetzlichen Vertreter für eingeschränkt Selbstbestimmungsfähige. Tübingen: Mohr Siebeck, 1999. p. 2.
Bruno de Ávila Borgarelli é doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP).
Revista Consultor Jurídico, 8 de outubro de 2018, 10h59

STJ: Cancelamento de bilhete de volta por não comparecimento em voo de ida é prática abusiva

Tese foi fixada pela 3ª turma do STJ, que entendeu que a prática de empresa aérea viola CDC.

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Cancelamento automático e unilateral de bilhete de volta por não comparecimento de cliente em voo de ida é prática abusiva. Esta é a tese fixada pela 3ª turma do STJ ao julgar caso de companhia aérea que cancelou o bilhete de dois clientes que não compareceram ao voo de ida.

Consta nos autos que dois clientes adquiriram passagens entre São Paulo e Brasília pretendendo embarcar no aeroporto de Guarulhos, mas, por engano, selecionaram, na reserva, o aeroporto de Viracopos, em Campinas/SP, para o embarque. Por causa disso, tiveram que comprar novas passagens de ida com embarque em Guarulhos.

Ao tentar realizar o check-in na volta, os clientes foram informados de que não poderiam embarcar, pois suas reservas de volta haviam sido canceladas por motivo de "no show" no momento de ida, e tiveram de comprar novas passagens de volta. Em razão disso, ingressaram na Justiça com pedido de indenização por danos morais e materiais.

Em 1° e 2º grau, os pedidos foram julgados improcedentes. Para o TJ/SP, o equívoco dos clientes quanto ao aeroporto de embarque do voo de ida gerou o cancelamento automático do voo de volta, não havendo abuso, venda casada ou outras violações ao CDC no caso. Os clientes interpuseram recurso especial no STJ.

Ao analisar o caso, o relator, ministro Marco Aurélio Bellizze, pontuou que os artigos 39 e 51 do CDC, com base nos princípios da função social do contrato e da boa-fé objetiva, estabeleceram as hipóteses das chamadas práticas abusivas, que consubstanciam abuso no direito de contratar diante da vulnerabilidade de uma das partes na relação – no caso, o consumidor.

Para o ministro, "o caso em julgamento deve ser analisado sob a ótica da legislação consumerista, e não sob um viés eminentemente privado, sobretudo no que concerne à chamada pacta sunt servanda, como feito pelas instâncias ordinárias".

O relator considerou que a prática de cancelamento unilateral da passagem de volta em razão do não comparecimento para embarque no trecho de ida (no show) configura prática de venda casada, incidindo na hipótese prevista no artigo 51 do CDC.

Ao entender que a prática é abusiva e está em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor, o ministro votou por dar provimento ao recurso especial dos consumidores. O voto foi seguido à unanimidade pela 3ª turma do STJ.

"Obrigar o consumidor a adquirir nova passagem aérea para efetuar a viagem no mesmo trecho e hora marcados, a despeito de já ter efetuado o pagamento, configura obrigação abusiva, pois coloca o consumidor em desvantagem exagerada, sendo, ainda, incompatível com a boa-fé objetiva, que deve reger as relações contratuais (CDC, art. 51, IV). Ademais, a referida cláusula contratual autoriza o fornecedor a cancelar o contrato unilateralmente, sem que igual direito seja conferido ao consumidor, incidindo na hipótese do art. 51, XI, do CDC, bem como configura a chamada "venda casada", pois condiciona o fornecimento do serviço de transporte aéreo do "trecho de volta" à utilização do "trecho de ida" (CDC, art. 39, I)."

Entendimento

O julgamento pacifica entendimento sobre o tema nas duas turmas de Direito Privado do STJ. Em novembro de 2017, a 4ª turma já havia adotado conclusão no mesmo sentido – à época, a empresa aérea foi condenada a indenizar em R$ 25 mil uma passageira que teve o voo de volta cancelado após não ter se apresentado para embarque no voo de ida.
Processo: REsp 1.699.780

Confira a íntegra do acórdão.

https://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI288834,91041-Cancelamento+de+bilhete+de+volta+por+nao+comparecimento+em+voo+de+ida

Sou obrigado a receber a herança?

Publicado por Paulo Henrique Brunetti Cruz

O público questiona frequentemente se é obrigado a receber a herança. Já os juristas pensam ser uma questão simples e que responder apenas “não” é dar ao cliente aquilo que ele está buscando. Acreditem, vocês não estão fazendo isso[1], e hoje pretendo demonstrar exatamente o que a população realmente precisa ouvir acerca dessa indagação.

Começo pela parte simples: não, você não é obrigado a receber a herança. Com efeito, a legislação não obriga ninguém a recebê-la[2].

Porém, isso soa um tanto contraditório, pois mesmo os leigos ouvem diuturnamente a máxima: “falecida a pessoa, a herança se transmite imediatamente”. Em termos jurígenos, falo do princípio da saisine[3].

Como explicar que a herança passa aos herdeiros no momento da morte e depois informar ao cliente que ele pode não receber a herança se não a quiser? Não é meio contraditório aos olhos do leigo?

Cheguei ao ponto nevrálgico. O que acontece é que essa ideia de que a herança se transmite na mesma hora aos sucessores é uma ficção da lei. Na prática, isso não é bem assim.

O que o Código Civil quis com isso foi somente assegurar que alguém respondesse por esse patrimônio do finado até que o inventário começasse, sob pena de a herança ficar sem dono até que os herdeiros manifestassem interesse na sucessão.

Ora, moralmente não se espera que alguém vá cuidar do inventário antes mesmo de sepultar seu ente amado. Se não fosse essa ficção legislativa, durante o velório poderia um mal-intencionado estar invadindo as propriedades do falecido, o que obrigaria os herdeiros a ter que lidar com duas dores ao mesmo tempo (do óbito e da injustiça).

Por isso, provisoriamente as propriedades passam para os herdeiros, e, posteriormente, esses sucessores dirão se aceitam definitivamente a herança ou não.

Aqueles que não a aceitarem deverão formalizar um termo de renúncia, que deverá ser feito por instrumento público ou em processo judicial[4].

A partir da assinatura do termo de renúncia, este tem efeito retroativo, considerando-se que o herdeiro jamais recebeu qualquer herança[5].

Mister salientar que tanto a aceitação quanto a renúncia são atos irrevogáveis, isto é, não podem ser modificados posteriormente, seja qual for a razão[6].

Qual o prazo para renunciar à herança?
Depois de 20 dias da morte do autor da herança, o interessado poderá requerer que em prazo não superior a 30 dias o herdeiro declare se aceita ou não a herança[7].

Caso o sucessor permaneça inerte, considera-se que ele aceitou a sucessão.

Posso renunciar a somente parte da herança?
Isso não é possível. Ou se renuncia a tudo, ou não se renuncia a nada. Também não é possível aceitar a herança impondo alguma condição (evento futuro e incerto) ou termo (evento futuro e certo).

É um pouco estranho a questão da impossibilidade de renúncia parcial, contudo, antes da partilha os bens do finado são considerados um todo unitário e indivisível[8], como se fosse uma casa, por exemplo, a qual não comporta divisão. Ou se aceita ser dono da casa, ou não, porque não é possível ser dono só do quarto ou só do banheiro.

Então posso renunciar em favor do meu irmão?
Também não. Aí você não estaria renunciando, e sim doando a parte de um herdeiro a um outro herdeiro. Tal operação é uma doação.

Sendo doação, ter-se-iam duas situações, ambas incidindo tributação[9]:
a) Em razão da aceitação da herança;
b) Em virtude da doação do quinhão para um outro herdeiro, por meio de cessão de direitos hereditários[10].

Quando renuncio, para onde vai minha parte, então?
A parte do sucessor renunciante volta para a herança e é repartida entre todos os herdeiros restantes[11].

Portanto, a única hipótese de se renunciar à herança e com isso beneficiar um outro herdeiro determinado é se só existir mais um sucessor além daquele que renunciou. Se assim for, a parte do renunciante voltará à herança, e, tendo somente mais um herdeiro, este ficará com o quinhão do que renunciou.

Outra manobra cotidiana é a de todos os herdeiros renunciarem, exceto um deles, de sorte que a herança fique toda com um só sucessor, sem que com isso caracterize doação, permanecendo o caso sob uma só tributação.

O problema é que apenas um sucessor gozará de 100% do patrimônio deixado pelo finado. Na maioria das vezes que vejo acontecer, trata-se de renúncia de todos os herdeiros-filhos, deixando a meeira/herdeira-cônjuge com a íntegra dos bens.

[1] Ao menos é o que narram meus clientes quando me procuram após terem passado por vários outros profissionais que não lhes deram respostas convincentes. Resumir-se a “sim” ou “não” é uma transmissão ilegítima do conhecimento, posto que não adere o cliente à situação, que é dele, e não sua. Daí a importância de deixá-lo totalmente a par do como, quando e porquê. No mundo pós-moderno os indivíduos não são mais teleguiados por seus “gurus”. Eles querem (e devem) se sentir parte de um processo de resolução de problemas, até porque a celeuma é deles próprios, e não do advogado consultado.
[2] Cf. art. 1.804, parágrafo único, da Lei Federal nº. 10.406/2002.
[3] CC, art. 1.784.
[4] A sucessão aberta é bem imóvel, sujeita às formalidades dos arts. 80, II, c/c 108 e 1.806, todos do Código Civil.
[5] Esse efeito ex tunc é de alta relevância, eis que altera sensíveis implicações tributárias ao mitigar o princípio da saisine.
[6] Ver art. 1.812, CC.
[7] Art. 1.807 do CC/2002.
[8] Vide a redação do art. 1.791 do Codex Material Civil.
[9] ITCD ou ITCMD.
[10] Consoante disciplina o art. 1.793 do CC/02.
[11] Cf., a propósito, o teor do art. 1.810 do Diploma Substantivo Civil.

https://brunetti.jusbrasil.com.br/artigos/632110411/sou-obrigado-a-receber-a-heranca