sábado, 29 de setembro de 2018

Regras para renovação de contratos de locação e as novas modalidades de negócio

Por 
Dados da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), mostram que, em janeiro, existiam cerca de 236 milhões de linhas de telefonia móvel em atividade no país. Hoje, o número é ainda maior.
Para atender ao crescimento acelerado da demanda e garantir a eficiência do serviço que vai além do sinal telefônico, a julgar pelos diversos dispositivos móveis existentes no mercado com acesso à internet, ganham ainda mais relevância, no cenário de telecomunicações, as empresas que facilitam a transmissão do sinal e a conectividade entre os usuários.
Essas facilitadoras viabilizam o serviço prestado pelas operadoras de telefonia móvel e provedores, na medida em que são as responsáveis pela instalação e manutenção da infraestrutura de rede sem fio que permite a propagação do sinal, isto é, das torres, sistemas de antenas e desenvolvimento de estações, implantadas em solo e também em telhados de edifícios mediante a locação desses espaços junto aos seus proprietários.
A expansão da rede de infraestrutura, no entanto, tem esbarrado em um entrave jurídico resultante da interpretação literal do texto da Lei 8.245/91 (Lei de Locações), a qual garante ao comerciante — fornecedor de produto e/ou serviços — a renovação do contrato de locação de imóvel não residencial para continuidade do negócio ali desenvolvido.
O legislador teve a intenção de proteger aquele que investiu em seu estabelecimento comercial e construiu, ao longo dos anos de atuação no imóvel locado, clientela, localizada nas redondezas do ponto em que se encontra, constituindo o fundo de comércio.
Acontece que a sociedade não mais se desenvolve em cima de modelos de negócios conservadores, os quais serviram de parâmetro ao legislador, mas, sim, de empresas que exercem atividades dinâmicas e que, a despeito de não reunirem as características do comércio padrão, ostentam os requisitos exigidos pela lei para concessão da proteção: clientela ligada ao ponto comercial.
Levando em consideração o tipo de serviço prestado pela facilitadora da transmissão de sinal de internet sem fio, por certo há clientela direta e indiretamente a ser atendida.
As operadoras de telefonia e provedores representam os clientes imediatos, pois são eles que contratam a facilitadora para proporcionar a transmissão do sinal. Já os consumidores finais, usuários dos dispositivos móveis, constituem os clientes reflexos que dependem diretamente da operadora e indiretamente do serviço prestado pela facilitadora, pois essencial para a conectividade da rede sem fio.
O critério que leva a clientela direta a contratar a facilitadora é a localização estratégica. O serviço prestado em nada é eficiente se a torre, antena ou, em sentido mais amplo, a estação transmissora estiver mal localizada ou, de tempos em tempos, for obrigada a se realocar em outro imóvel. Qualquer modificação da posição é determinante para frustrar o serviço.
É nesse cenário que a lei de locações precisa ser analisada com um novo olhar, respeitando as peculiaridades de negócios jurídicos que não existiam quando da promulgação da lei.
Nesse sentido, já se observa nos tribunais de Justiça estaduais um avanço refletido no reconhecimento de que as empresas que locam espaço para instalação de sistemas de antenas e desenvolvimento de estações dependem da sua permanência no imóvel para seguir com o atendimento dos seus clientes e cumprir com os seus contratos de fornecimento de estrutura para transmissão de sinal. A satisfação está intrinsecamente ligada ao lugar estratégico em que se encontram os seus equipamentos.
Assim, ciente da importância da manutenção da empresa no imóvel e da existência dos elementos legais, os tribunais têm aplicado a proteção legal que permite a renovação do contrato de locação às facilitadoras do sinal.

A expectativa, portanto, é a unificação do Judiciário brasileiro, para que todos os tribunais reconheçam a demanda da sociedade pela melhoria do sinal de rede sem fio e, consequentemente, passem a garantir a proteção legal a todos aqueles que fornecem os meios necessários para a expansão desse mercado.
Carla Fava Altério é advogada da área cível e imobiliária do Rayes & Fagundes Advogados.
Revista Consultor Jurídico, 27 de setembro de 2018, 11h17

Herança digital e sucessão legítima: primeiras reflexões

HERANÇA DIGITAL E SUCESSÃO LEGÍTIMA
PRIMEIRAS REFLEXÕES[1]

Flávio Tartuce[2]

As novas tecnologias, especialmente as incrementadas pelas redes sociais e pelas interações digitais, trouxeram grandes repercussões para o Direito, especialmente para o Direito Privado. Como não poderia ser diferente, o Direito das Sucessões não escapa dessa influência, surgindo intensos debates sobre a transmissão da chamada herança digital.

O tema é tratado por civilistas contemporâneos, especialmente no âmbito da sucessão testamentária e das manifestações de última vontade. Como desenvolve Jones Figueirêdo Alves, que fala na possibilidade de se elaborar um testamento afetivo, “a par da curadoria de dados dos usuários da internet, com a manutenção de perfis de pessoas falecidas, a serviço da memória digital, como já tem sido exercitada (Pierre Lévy, 2006), o instituto do testamento afetivo, notadamente no plano da curadoria de memórias da afeição, apresenta-se, agora, não apenas como uma outra inovação jurídica, pelo viés tecnológico. Mais precisamente, os testamentos afetivos poderão ser o instrumento, eloquente e romântico (um novo ‘L’hymne à L’amour’), de pessoas, apesar de mortas, continuarem existindo pelo amor que elas possuíam e por ele também continuarem vivendo” (ALVES, Jones Figueirêdo. A extensão existencial por testamentos afetivos. Disponível em: <www.flaviotartuce.adv.br>. Acesso em: 22 set. 2018). Além do testamento afetivo, pode-se falar também em testamento digital, com a atribuição dos bens acumulados em vida no âmbito virtual, como páginas, contatos, postagens, manifestações, likes, seguidores, perfis pessoais, senhas, músicas entre outros elementos imateriais adquiridos nas redes sociais.

Vale lembrar que o Código Civil de 2002 admite que o testamento tenha um conteúdo extrapatrimonial, pela regra constante do seu art. 1.857, § 2º (“São válidas as disposições testamentárias de caráter não patrimonial, ainda que o testador somente a elas se tenha limitado”). Procurou-se, assim, afastar críticas anteriores existentes quanto ao art. 1.626 do Código Civil de 1916, que supostamente limitava o testamento a um conteúdo patrimonial (“Considera-se testamento o ato revogável pelo qual alguém, de conformidade com a lei, dispõe, no todo ou em parte, do seu patrimônio, para depois da sua morte”). No âmbito da herança digital, fala-se em testamento em sentido amplo, sendo certo que a atribuição de destino de tais bens digitais pode ser feita por legado, por codicilo – se envolver bens de pequena monta, como é a regra –, ou até por manifestação feita perante a empresa que administra os dados.

Mas, além dessas manifestações de vontade feitas ainda em vida, o que fazer caso o falecido não tenha se manifestado sobre sua herança digital, especialmente pelo fato de ela não estar mencionada no Código Civil em vigor? Essa é a pergunta que pretendo começar a responder, sem prejuízo de aprofundamentos futuros que seguirão.

Como é notório, a sucessão legítima acaba por presumir a vontade do falecido, estabelecendo a ordem de vocação hereditária, em prol do fundamento principal do Direito das Sucessões, qual seja a continuidade da pessoa. No Código Civil, essa ordem está prevista no art. 1.829, que deve ser lido com a recente decisão do Supremo Tribunal Federal, que equiparou a união estável ao casamento (Recurso Extraordinário n. 878.694, julgado em maio de 2017). Assim, a sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: a) aos descendentes, em concorrência com o cônjuge ou companheiro sobrevivente, salvo se o regime do casamento ou da união estável for o de comunhão universal, o da separação obrigatória de bens, ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares; b) aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge ou companheiro, independentemente do regime de bens; c) ao cônjuge ou companheiro sobrevivente; e d) aos colaterais.

A grande dúvida diz respeito ao fato de os dados digitais da pessoa poderem ou não compor a sua herança, conceituada como um conjunto de bens, corpóreos e incorpóreos, havido pela morte de alguém e que serão transmitidos aos seus sucessores, sejam testamentários ou legítimos. Nos termos do art. 1.791 do Código Civil, a herança defere-se como um todo unitário, ainda que vários sejam os herdeiros, o que inclui não só o patrimônio material do falecido, como também os bens imateriais, como supostamente seriam aqueles havidos e construídos na grande rede durante a vida da pessoa. Sendo assim, a chamada herança digital segue transmissão conforme a ordem de vocação hereditária destacada?

Como respondeu Giselda Maria Fernandes Hironaka, em entrevista publicada no Boletim do IBDFAM, "entre os bens ou itens que compõem o acervo digital, há os de valoração econômica (como músicas, poemas, textos, fotos de autoria da própria pessoa), e estes podem integrar a herança do falecido, ou mesmo podem ser objeto de disposições de última vontade, em testamento, e há os que não têm qualquer valor econômico, e geralmente não integram categoria de interesse sucessório" (Boletim Informativo do IBDFAM, n. 33, jun./jul. 2017, p. 9). Acrescente-se que muitos dos bens citados pela jurista que compõem o suposto acervo sucessório digital estão protegidos pela Lei n. 9.610/1998, especialmente pela sua notória divisão entre os direitos morais e patrimoniais do autor.

Sobre o tema, tramitam no Congresso Nacional projetos de lei que pretendem discipliná-lo no âmbito da sucessão legítima. O primeiro a ser mencionado é o de número 4.847, de 2012. A proposição pretende incluir os arts. 1.797-A a 1.797-C do Código Civil. Conforme a primeira norma projetada, "a herança digital defere-se como o conteúdo intangível do falecido, tudo o que é possível guardar ou acumular em espaço virtual, nas condições seguintes: I – senhas; II – redes sociais; III – contas da Internet; IV – qualquer bem e serviço virtual e digital de titularidade do falecido". Há, assim, a previsão de um rol meramente exemplificativo dos bens que compõe o acervo, o que não exclui outros, como os contatos, as fotos e os textos construídos pelo de cujus.

Em continuidade, conforme o proposto art. 1.797-B, se o falecido, tendo capacidade para testar, não o tiver feito, a herança será transmitida aos herdeiros legítimos. Por fim, está sendo sugerido que "cabe ao herdeiro: I – definir o destino das contas do falecido; a) transformá-las em memorial, deixando o acesso restrito a amigos confirmados e mantendo apenas o conteúdo principal ou; b) apagar todos os dados do usuário ou; c) remover a conta do antigo usuário" (proposta de art. 1.797-C).

Esse projeto tramita em conjunto com o PL 7.742/2017, sugerido o mais recentemente, que aguarda parecer do Relator na Câmara dos Deputados. A última norma projetada visa incluir um art. 10-A no Marco Civil da Internet(Lei n. 12.965/2014), com a seguinte dicção:

Art. 10-A. Os provedores de aplicações de internet devem excluir as respectivas contas de usuários brasileiros mortos imediatamente após a comprovação do óbito.
§ 1º A exclusão dependerá de requerimento aos provedores de aplicações de internet, em formulário próprio, do cônjuge, companheiro ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive.
§ 2º Mesmo após a exclusão das contas, devem os provedores de aplicações de internet manter armazenados os dados e registros dessas contas pelo prazo de 1 (um) ano, a partir da data do óbito, ressalvado requerimento cautelar da autoridade policial ou do Ministério Público de prorrogação, por igual período, da guarda de tais dados e registros.
§ 3º As contas em aplicações de internet poderão ser mantidas mesmo após a comprovação do óbito do seu titular, sempre que essa opção for possibilitada pelo respectivo provedor e caso o cônjuge, companheiro ou parente do morto indicados no caput deste artigo formule requerimento nesse sentido, no prazo de um ano a partir do óbito, devendo ser bloqueado o seu gerenciamento por qualquer pessoa, exceto se o usuário morto tiver deixado autorização expressa indicando quem deva gerenciá-la.

Como se pode perceber, as duas proposições atribuem o poder de decisão a respeito do destino da herança digital aos herdeiros do falecido. Apesar de a última regra mencionar a exclusão imediata dos conteúdos após a comprovação do óbito, tal prerrogativa é atribuída aos familiares do de cujus, como se retira do seu § 1º.

No mesmo sentido, como outra projeção a ser destacada, o Projeto de Lei n. 4.099-B/2012 tende a incluir um parágrafo único no art. 1.788 do Código Civil, com a seguinte redação: “serão transmitidos aos herdeiros todos os conteúdos de contas ou arquivos digitais do autor da herança”. A proposta aguarda apreciação no Senado Federal e, como se percebe, procura tratar da herança digital no âmbito da sucessão legítima, atribuindo-a aos herdeiros do falecido, que terão total liberdade quanto à sua gestão e destino.

Com o devido respeito, pensamos que os projetos colocam em debate uma questão fundamental, qual seja a titularidade do material que é construído em vida pela pessoa na internet, bem como a tutela da privacidade, da imagem e de outros direitos da personalidade do morto. Em parecer muito bem estruturado oferecido perante o Instituto dos Advogados do Brasil (IAB), o Professor Pablo Malheiros Cunha Frota manifestou-se em sentido contrário às projeções, com razão, substancialmente pelo fato de estarmos tratando de direitos essenciais e personalíssimos do de cujus, que, nesse caso, não podem ser transmitidos aos herdeiros de forma automática, mas devem ser imediatamente extintos com o falecimento.

Foram as razões de suas objeções e conclusões, conforme o teor do estudo doutrinário que me foi enviado, apresentado em dezembro de 2017 perante aquele instituto: a) os dois projetos autorizam que todo o acervo digital do morto transmita-se automaticamente aos herdeiros, violando os direitos fundamentais à liberdade e à privacidade, notadamente nas hipóteses em que o bem digital é uma projeção da privacidade e não houve declaração expressa de vontade ou comportamento concludente do seu titular, autorizando algum herdeiro ou terceiro a acessá-lo e geri-lo; b) terceiros que interagiram com o falecido em vida também terão as suas privacidades expostas aos herdeiros; c)é necessário o respeito às eficácias pessoal, interpessoal e social da vida privada, o que concretiza a liberdade positiva de cada um decidir os rumos de sua vida, "sem indevidas interferências externas da comunidade, particular ou do Estado, no qual essa liberdade se vincula intersubjetivamente com a comunidade, o Estado e o particular"; d) os projetos de lei pretendem transmudar o regime de direito de propriedade do Direito das Coisas para os direitos da personalidade, uma vez que o direito de personalidade do falecido transforma-se em bem patrimonial, pois a intimidade e a imagem da pessoa morta servem como fonte de riqueza econômica; e) os familiares ou terceiros somente devem ter o direito de gerenciar o acervo digital se houver declaração expressa do falecido, por instrumento público ou particular, inclusive em campos destinados para tais fins nos próprios ambientes eletrônicos, sem a necessidade de testemunhas, ou se houver comportamento concludente nesse sentido; f) caso tal declaração ou comportamento não estejam presentes, ou estejam atingidos por problema relativo à sua validade ou eficácia; todo o acervo digital que seja expressão da personalidade não deve ser alterado, visto ou compartilhado por qualquer pessoa; g) bens imateriais que projetem a privacidade de quem falece não devem e não deveriam ser acessados pelos herdeiros ou por terceiros não havendo manifestação de vontade do autor da herança.

Sobre as manifestações que podem ser feitas pelo falecido, ainda em vida, perante as redes sociais, sabe-se que o Facebook oferece duas opções. A primeira delas é de transformar o perfil da pessoa em um memorial na linha do tempo, permitindo homenagens ao falecido. A segunda opção é a exclusão do conteúdo por representante que comprove a morte do usuário. O Google, por sua vez, permite uma espécie de testamento digital informal, em que o usuário pode escolher até dez pessoas que receberão as informações acumuladas em vida. O Twitter autoriza que os familiares baixem todos os tweets públicos e solicitem a exclusão do perfil, em procedimento que tramita perante a própria empresa. Por fim, merece destaque a solução dada pelo Instagram, que autoriza a exclusão da conta mediante o preenchimento de formulário online com a comprovação de tratar-se de membro da família, sendo possível igualmente a transformação do conteúdo em um memorial.

Essas opções, como se nota, variam entre a valorização da autonomia privada e a atribuição dos bens digitais aos herdeiros. Talvez esse seja o melhor caminho para se construir uma proposta de alteração do Código Civil a respeito do tema, no capítulo do Direito das Sucessões. Assim como Pablo Malheiros, entendo que as projeções que existem no momento apresentam sérios problemas e, em certo sentido, são simplistas, devendo o debate a respeito do assunto ser ampliado e aprofundado.

Pontuo, a propósito, que a proteção dos dados pessoais acabou por ser regulamentada pela recente Lei n. 13.709, de 14 de agosto de 2018, norma que trata da matéria em sessenta e cinco artigos e que entrará em vigor no País no início de 2020. A nova lei sofreu claras influências do Regulamento Geral de Proteção de Dados Europeu, de maio de 2018, amparando sobremaneira a intimidade Em termos gerais, existe uma ampla preocupação com os dados e informações comercializáveis das pessoas naturais, inclusive nos meios digitais, e objetiva-se proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade; bem como o livre desenvolvimento da personalidade (art. 1º). Nos termos do preceito seguinte da norma específica, a disciplina da proteção de dados pessoais tem como fundamentos: a) o respeito à privacidade; b) a autodeterminação informativa, com amparo na autonomia privada; c) a liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião; d) a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem; e) o desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação; f) a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e g) os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania pelas pessoas naturais. Uma eventual projeção legislativa sobre herança digital deve dialogar com essa lei emergente, o que não parece ter sido feito com as propostas ora analisadas.

Como palavras finais, entendo que é preciso diferenciar os conteúdos que envolvem a tutela da intimidade e da vida privada da pessoa daqueles que não o fazem para, talvez, criar um caminho possível de atribuição da herança digital aos herdeiros legítimos, naquilo que for possível. Entendo que os dados digitais que dizem respeito à privacidade e à intimidade da pessoa, que parecem ser a regra, devem desaparecer com ela. Dito de outra forma, a herança digital deve morrer com a pessoa.

O desafio para encontrar um premissa que afaste essa afirmação portanto, é grande, devendo ser encarado por todos os aplicadores e estudiosos do Direito Privado Brasileiro, muito além das simples proposições legislativas aqui abordadas.

[1] Coluna do Migalhas do mês de setembro de 2018.
[2] Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP. Professor titular permanente do programa de mestrado e doutorado da FADISP. Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensuda EPD. Professor do G7 Jurídico. Diretor do IBDFAM – Nacional e vice-presidente do IBDFAM/SP. Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.

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A penhorabilidade do imóvel de fiador de contrato de locação

sexta-feira, 28 de setembro de 2018

Migalhas Edilícias

por André Abelha e Alexandre Junqueira Gomide (coordenadores)
Texto de autoria de Sylvio Capanema de Souza
A lei do inquilinato, em seu artigo 82, acresceu ao artigo 3º da lei 8.009/90 mais uma exceção à regra da impenhorabilidade do imóvel residencial próprio do devedor.
Passou-se, então, a admitir que fosse objeto de constrição e eventual alienação judicial, o imóvel residencial do fiador de contrato de locação.
Ao contrário do que muitos imaginaram a razão de ser do dispositivo legal foi o de facilitar o acesso à locação, por aqueles que dela precisavam.
Ressalte-se, desde logo, que naquela época o déficit habitacional era elevado, e a demanda por unidades era muito maior do que a oferta, o que agravava a tensão social.
A garantia representada pela fiança sempre foi a preferida pelos locadores, e após o advento da lei 8.009/90 passaram eles, com inegável razão, a rejeitar o fiador que só tivesse um imóvel residencial, que seria impenhorável, tornando quase sempre a fiança uma pomposa inutilidade.
Passou-se a exigir que tivesse ele, pelo menos, dois imóveis, o que era quase impossível obter pelos candidatos à locação.
É enorme o constrangimento e a dificuldade para se conseguir um fiador, ainda mais que tenha dois imóveis.
A solução dada pelo legislador do inquilinato urbano pacificou o mercado, voltando os locadores a se contentar com o fiador que só tivesse um imóvel residencial próprio.
O sistema funcionou muito bem, desde 1991, até hoje, contribuindo para o equilíbrio do mercado locatício, antes extremamente tumultuado e nervoso.
Acontece que no dia 12 de junho de 2018 a 1ª turma do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o recurso extraordinário 605.709, entendeu ser impenhorável o imóvel residencial do fiador de contrato de locação para fins comerciais, e o fez pela apertada maioria de três votos a dois.
O relator, min. Dias Toffoli e o ministro Luís Roberto Barroso mantiveram, na íntegra, o texto da lei, mas a ministra Rosa Weber abriu a divergência, sendo seguida pelos ministros Marco Aurélio e Luiz Fux.
O acórdão ainda não foi publicado na íntegra, mas o resultado do julgamento já consta do informativo 906, da 1ª turma.
Em que pese o elevado respeito devido aos eminentes ministros, ousamos divergir do entendimento que, à nosso aviso, voltará a causar turbulências no já pacificado mercado locatício.
Em primeiro lugar, não conseguimos entender porque a impenhorabilidade ficaria restrita aos fiadores de contratos para fins comerciais, o que causará discriminação em relação aos demais, das outras modalidades de locação imobiliária urbana.
Se o objetivo é o de preservar a dignidade humana e garantir o direito à moradia, como constou dos votos vencedores, elementar exercício de lógica recomendaria estender a proteção não só aos fiadores de contratos de locação em todas as suas modalidades, bem como às demais hipóteses elencadas no artigo 3º da lei 8.009/90, que permitem a penhora do único imóvel residencial próprio do devedor.
O mais surpreendente é que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 407.688, da relatoria do min. Cézar Peluso, afirmou ser legítima a penhora de bem de família pertencente ao fiador de contrato de locação. No mesmo sentido seguem os recursos extraordinários nos 477.953, rel. min. Eros Grau, 493.738, rel. min. Carmem Lúcia, 591.568, rel. min. Gilmar Mendes, 598.036, rel. min. Celso de Mello, 419.161, rel. min. Joaquim Barbosa e 607.505, rel. min. Ricardo Lewandowski.
Por outro lado, constou do voto vencedor que a impenhorabilidade do bem de família de fiador de locação comercial favorece a livre iniciativa e o empreendedorismo, ao viabilizar a celebração de contratos de locação empresarial em termos mais favoráveis.
Muito ao revés, estamos certos que o resultado será diametralmente oposto, levando os locadores a recusar a garantia da fiança, passando a exigir outras modalidades, bem mais onerosas para os pretendentes à locação, tais como o seguro, o título de capitalização ou a cessão fiduciária de cotas de fundos de investimentos.
É conhecido o velho ditado popular, segundo o qual quem não quer ter aborrecimentos com a fiança, não lhe aponha o nome.
O fiador que assume, voluntariamente, a garantia, obrigando-se a pagar a obrigação, se o devedor não o fizer, tem a exata consciência de que está alocando o seu patrimônio ao credor, no caso de inadimplemento.
E isto confere segurança jurídica ao contrato e ao mercado.
Temos sempre sustentado que o contrato de locação do imóvel urbano se reveste de especialidades, que os distinguem dos demais, justificando a adoção de regras próprias e diferenciadas, o que não colide com o princípio da isonomia.
Por outro lado, a garantia de moradia digna é dever do Estado e não do cidadão, que paga pesados impostos, para viabilizá-la.

A decisão confirma o risco de se julgar sem o perfeito conhecimento da equação econômica dos contratos e das realidades dos mercados.
Ao tomar conhecimento da decisão ficou-nos o doloroso receio de que venha ela a quebrar a estabilidade do mercado locatício, garantida pela lei 8245/91, que alcançou verdadeiro milagre de longevidade, de vinte e sete anos de proveitosos resultados, apesar das brutais transformações sofridas pela economia brasileira.
Para encerrar estes primeiros e rápidos comentários, baseados apenas no informativo do STF, entendemos que a decisão traz insegurança jurídica ao mercado, que, pela sua relevante densidade social e econômica, precisa de regras estáveis e equilibradas, que incentivem a construção de novas unidades, aumentando a oferta de imóveis para locação e, por via de consequência, reduzam os aluguéis.

É possível realizar um contrato de namoro para evitar uma futura configuração de união estável?

Publicado por Jeniffer Tavares

Amor, amor, negócios a parte...

Desde a regulamentação da união estável, muitas pessoas ficam com medo de que o simples namoro possa gerar obrigações de ordem patrimonial. Diante dessa situação, começou a ser discutida a possibilidade de o casal de namorados assegurar, por meio de um contrato, a ausência de comprometimento de ambas as partes e a incomunicabilidade do patrimônio.

Mas será que um contrato de namoro tem validade jurídica?

Primeiro devemos analisar a ótica do namoro. Antigamente os relacionamentos afetivos seguiam uma ordem, sendo que se iniciava com o namoro, depois o noivado, aí vinha o casamento como forma legítima de constituição de família. Hoje, depois de tantas mudanças sociais, há dificuldade em reconhecer se o relacionamento é um namoro ou uma união estável.

A união estável se configura pelos requisitos trazidos no Código Civil de 2002, artigo 1.723, reconhecida como convivência pública, continua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. Sendo assim, um simples namoro que preencha esses pressupostos, mesmo que pautado por um contrato, pode ser declarado como união estável.

Por tanto, não basta um contrato de namoro reconhecido com certidão pública para impedir os efeitos patrimoniais. Pois seus efeitos não decorrem do contrato, mas sim da afetividade que o casal desenvolver, pois alcançando no cotidiano obrigações e deveres recíprocos, como se casados fossem e não apenas namorados, preenchendo os requisitos do artigo 1.723, então de nada servirá o contrato preventivo de namoro, pois a relação acabou se tornando uma inevitável união estável.

Assim, tal contrato poderá servi até mesmo como meio de prova contra si, para confirmar a estabilidade do vínculo.

Por fim, apesar de ser uma forma de manifestar o pensamento do casal sobre sua relação afetiva, o contrato, não tem o condão de afastar a vontade da lei. Será melhor para o casal que queira proteger o patrimônio individual, firmar um contrato de convivência, estabelecendo o regime de separação de bens, pois diante da inexistência desta disposição vigorará o regime da comunhão parcial dos bens.

Referências bibliográficas:

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. São Paulo. RT. 2017.

MADALENO, Rolf. Direito de Família. Rio de Janeiro. Forense. 2016

https://jeniffertavares.jusbrasil.com.br/artigos/630956960/e-possivel-realizar-um-contrato-de-namoro-para-evitar-uma-futura-configuracao-de-uniao-estavel?utm_campaign=newsletter-daily_20180928_7622&utm_medium=email&utm_source=newsletter

Animais acorrentados e confinados: até quando?

Por Gisele Kronhardt Scheffer - 27 de setembro de 2018

Hoje será abordado o acorrentamento e o confinamento de animais domésticos e silvestres. Brevemente, na próxima coluna, o foco será o confinamento dos animais “de fazenda” ou “de produção”, os quais são destinados para consumo humano. Animais em zoológicos – tradicionais ou não – também será o tema de uma futura abordagem, pois todos esses casos relacionam-se, em maior ou menor proporção.

Infelizmente, quando um animal é confinado ou acorrentado, pelo menos uma das Cinco Liberdades, proclamadas pela Farm Animal Welfare Committee(FAWC) – e já abordadas nesta coluna – é violada: a liberdade para expressar o comportamento natural da espécie (INSTITUTO CERTIFIED HUMANE BRASIL, [s.d.]; CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA VETERINÁRIA, [s.d.]).

O que se vê, entretanto, é a ocorrência de inúmeros casos em que o animal, além de acorrentado, também passa fome e sede e fica ao relento, sujeito às intempéries. São-lhe, portanto, negadas também outras Liberdades, e está sendo infringido o art. 32 da Lei 9.605/98.

Por outro lado, foi publicada no Diário Oficial Eletrônico de Florianópolis a Lei nº 10.422, de 26 de julho de 2018. De acordo com a nova legislação, o art. 2º da Lei n. 9.643, de 2014, passa a vigorar com a seguinte redação:

Art. 2º Define-se como maus-tratos e crueldade contra animais as ações diretas ou indiretas, capazes de provocar privação das necessidades básicas, sofrimento físico, medo, estresse, angústia, patologias ou morte.
§ 1º Entende-se por ações diretas
[...] IV - confinamento, acorrentamento ou alojamento inadequado.
§ 2º [...] entende-se como confinamento, acorrentamento ou alojamento inadequado, qualquer meio de restrição à liberdade de locomoção dos animais.
[...] “§ 4º Nos casos de impossibilidade temporária por falta de outro meio de contenção, o animal será preso a uma corrente do tipo vai-vém, que proporcione espaço suficiente para se movimentar, de acordo com as suas necessidades.
§ 5º A liberdade de locomoção do animal deve ser oferecida de modo a não causar quaisquer ferimentos, dores ou angústias [...] (FLORIANÓPOLIS, 2018, p. 1, grifo da autora).

Portanto, pela nova legislação, inclui-se nos maus-tratos também a privação de movimentos físicos dos cães. A lei trata também das necessidades de alojamento dos cães, que deve ter tamanho compatível com o porte dos pets, espaço suficiente para ampla movimentação, incidência de sol, luz, sombra e ventilação, fornecimento de alimento e água limpa, asseio, restrição de contato com animais agressivos e atendimento veterinário (CÃES ONLINE, [s.d.]).

O Projeto Cãominhada (2015), em seu site, traz a seguinte colocação:
Em muitos casos, os pescoços dos cães acorrentados ficam em carne viva e infectados devido a coleiras demasiado apertadas e aos puxões contínuos que dão à corrente para tentarem se libertar. As correntes podem também facilmente emaranhar-se em outros objetos, asfixiando ou estrangulando os cães até à morte.

E prossegue:
Para se tornarem animais de companhia bem ajustados, os cães devem interagir com pessoas diariamente e praticar exercício regular. [...] a crueldade de manter animais acorrentados é quase sempre tolerada ou ignorada, e estes continuam a sofrer sem esperança de uma vida melhor. Nenhum mal fizeram, mas vivem acorrentados pelo pescoço uma vida inteira.

Quanto a animais domésticos, por enquanto há apenas a proibição do confinamento de cães pela lei do município de Florianópolis, mencionada acima. Infelizmente ainda se trata de caso isolado, pois a Lei 9.605/98 não penaliza especificamente o acorrentamento. Fala em maus-tratos, porém sem nomeá-los. Então, é necessário que seja constatado um dano ao animal como consequência do acorrentamento para que a lei 9.605 seja aplicada.

Entretanto, vários Projetos de Lei visam à proibição do acorrentamento de animais em diferentes cidades do país. Dois exemplos são o PL nº 66/2018L, do município de São Roque (SP) e o projeto de Lei 15/2018, que determina a proibição de animais em correntes no estado do Rio Grande do Sul.

Quanto ao confinamento de animais silvestres, nativos ou em rota migratória, a Lei 9.605/98, em seu art. 29, assim prevê:
Art. 29. Matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida:
Pena - detenção de seis meses a um ano, e multa.
§ 1º Incorre nas mesmas penas:
[...] III - quem vende, expõe à venda, exporta ou adquire, guarda, tem em cativeiro ou depósito, utiliza ou transporta ovos, larvas ou espécimesda fauna silvestre, nativa ou em rota migratória, bem como produtos e objetos dela oriundos, provenientes de criadouros não autorizados ou sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente.” (BRASIL, 1998, grifos da autora).

Pássaros nasceram para voar. Para a liberdade. Todos. Animais silvestres também. Mas, limitando-me ao campo do Direito, somente se configura crime ambiental os casos de confinamento de espécimes especificados pela lei acima, apesar de que nenhum animal deveria ser confinado, quer sejam em gaiolas, jaulas ou correntes.

O tráfico de animais só se sustenta porque há quem compre e consuma tanto os espécimes quanto seus derivados (peles, penas, ossos, escamas). De acordo com a Rede Nacional Contra o Tráfico de Animais Silvestres ([s.d.]), os animais vítimas do tráfico são enviados principalmente para “colecionadores particulares, indústrias químicas e farmacêuticas, artesãos e pet shops” (REDE NACIONAL..., [s.d.]). Isso significa que muitos serão sacrificados para a extração de subprodutos, mas muitos outros serão confinados por toda a vida.

Entretanto, sob a ótica do abolicionismo, nenhum animal, silvestre ou não, deveria ser aprisionado. É tolher a liberdade, tão valorizada pelo ser humano quando se trata da sua própria. Tom Regan, autor do livro Empty Cages, ou “Jaulas Vazias” em português, vai mais além:

Mas imagine o mesmo cão em um pequeno apartamento. Que tipo de vida é essa? Minha resposta é: não é bem uma vida. Se temos animais de estimação, temos uma pesada obrigação de assegurar que eles tenham uma vida rica, cheia de exercício ao ar livre e diversão – horas de lazer por dia. Estamos prontos para a tarefa? Apenas poucos de nós (DEFENSORES DOS ANIMAIS, [s.d.])

Publicado em 2005, o livro Empty Cages “foi dedicado pelo autor a indivíduos de quaisquer partes do planeta que questionam a liberdade humana de infligir dor e sofrimento aos animais e de privá-los de direitos fundamentais.

Esses direitos são os mesmos que os seres humanos não admitem perder: os direitos relativos à integridade do corpo e à liberdade de mover-se para prover seu próprio bem-estar. Empty Cages, conforme o anuncia o próprio título, defende a abolição total do aprisionamento de animais.” (FELIPE, 2005).

Mais uma vez afirmo que, se não houver conscientização, as leis não serão eficazes para evitar o confinamento de animais não-humanos. Somente indivíduos conscientes extinguirão correntes, gaiolas e jaulas. Para sempre.

REFERÊNCIAS 

CÃES ONLINE. Lei proíbe deixar cachorros acorrentados e sempre presos. [s.d.]. Disponível aqui. Acesso em: 18 set. 2018.

CÃOMINHADA. Os malefícios dos cães acorrentados. 2015. Disponível aqui. Acesso em: 21 set. 2018.

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA VETERINÁRIA. CFMV lança campanha sobre bem-estar animal. [s.d.]. Disponível aqui. Acesso em: 21 set. 2018.

DEFENSORES DOS ANIMAIS. Entrevista – Tom Regan. [s.d.]. Disponível aqui. Acesso em: 22 set. 2018.

FELIPE, Sônia T. Abandonar o antropocentrismo. 2015. Disponível aqui. Acesso em: 22 set. 2018.

FLORIANÓPOLIS. Lei nº 10.422, de 26 de julho de 2018. Dá nova redação ao art. 2º da lei nº 9.643, de 2014. Diário Oficial Eletrônico do Município de Florianópolis, 30 jul. 2018. Disponível aqui. Acesso em: 21 set. 2018.

INSTITUTO CERTIFIED HUMANE BRASIL. Conheça as cinco liberdades dos animais. [s.d.]. Disponível aqui. Acesso em: 20 set. 2018.

REDE NACIONAL CONTRA O TRÁFICO DE ANIMAIS SILVESTRES. O Liberal – Tráfico de animais silvestres tem base importante no Pará. [s.d.]. Disponível aqui. Acesso em: 4 set. 2018.

Por Gisele Kronhardt Scheffer - Mestranda em Direito Animal. Especialista em Farmacologia. Médica Veterinária.