Migalhas Edilícias
por André Abelha e Alexandre Junqueira Gomide (coordenadores)
Texto de autoria de Sylvio Capanema de Souza
A lei do inquilinato, em seu artigo 82, acresceu ao artigo 3º da lei 8.009/90 mais uma exceção à regra da impenhorabilidade do imóvel residencial próprio do devedor.
Passou-se, então, a admitir que fosse objeto de constrição e eventual alienação judicial, o imóvel residencial do fiador de contrato de locação.
Ao contrário do que muitos imaginaram a razão de ser do dispositivo legal foi o de facilitar o acesso à locação, por aqueles que dela precisavam.
Ressalte-se, desde logo, que naquela época o déficit habitacional era elevado, e a demanda por unidades era muito maior do que a oferta, o que agravava a tensão social.
A garantia representada pela fiança sempre foi a preferida pelos locadores, e após o advento da lei 8.009/90 passaram eles, com inegável razão, a rejeitar o fiador que só tivesse um imóvel residencial, que seria impenhorável, tornando quase sempre a fiança uma pomposa inutilidade.
Passou-se a exigir que tivesse ele, pelo menos, dois imóveis, o que era quase impossível obter pelos candidatos à locação.
É enorme o constrangimento e a dificuldade para se conseguir um fiador, ainda mais que tenha dois imóveis.
A solução dada pelo legislador do inquilinato urbano pacificou o mercado, voltando os locadores a se contentar com o fiador que só tivesse um imóvel residencial próprio.
O sistema funcionou muito bem, desde 1991, até hoje, contribuindo para o equilíbrio do mercado locatício, antes extremamente tumultuado e nervoso.
Acontece que no dia 12 de junho de 2018 a 1ª turma do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o recurso extraordinário 605.709, entendeu ser impenhorável o imóvel residencial do fiador de contrato de locação para fins comerciais, e o fez pela apertada maioria de três votos a dois.
O relator, min. Dias Toffoli e o ministro Luís Roberto Barroso mantiveram, na íntegra, o texto da lei, mas a ministra Rosa Weber abriu a divergência, sendo seguida pelos ministros Marco Aurélio e Luiz Fux.
O acórdão ainda não foi publicado na íntegra, mas o resultado do julgamento já consta do informativo 906, da 1ª turma.
Em que pese o elevado respeito devido aos eminentes ministros, ousamos divergir do entendimento que, à nosso aviso, voltará a causar turbulências no já pacificado mercado locatício.
Em primeiro lugar, não conseguimos entender porque a impenhorabilidade ficaria restrita aos fiadores de contratos para fins comerciais, o que causará discriminação em relação aos demais, das outras modalidades de locação imobiliária urbana.
Se o objetivo é o de preservar a dignidade humana e garantir o direito à moradia, como constou dos votos vencedores, elementar exercício de lógica recomendaria estender a proteção não só aos fiadores de contratos de locação em todas as suas modalidades, bem como às demais hipóteses elencadas no artigo 3º da lei 8.009/90, que permitem a penhora do único imóvel residencial próprio do devedor.
O mais surpreendente é que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 407.688, da relatoria do min. Cézar Peluso, afirmou ser legítima a penhora de bem de família pertencente ao fiador de contrato de locação. No mesmo sentido seguem os recursos extraordinários nos 477.953, rel. min. Eros Grau, 493.738, rel. min. Carmem Lúcia, 591.568, rel. min. Gilmar Mendes, 598.036, rel. min. Celso de Mello, 419.161, rel. min. Joaquim Barbosa e 607.505, rel. min. Ricardo Lewandowski.
Por outro lado, constou do voto vencedor que a impenhorabilidade do bem de família de fiador de locação comercial favorece a livre iniciativa e o empreendedorismo, ao viabilizar a celebração de contratos de locação empresarial em termos mais favoráveis.
Muito ao revés, estamos certos que o resultado será diametralmente oposto, levando os locadores a recusar a garantia da fiança, passando a exigir outras modalidades, bem mais onerosas para os pretendentes à locação, tais como o seguro, o título de capitalização ou a cessão fiduciária de cotas de fundos de investimentos.
É conhecido o velho ditado popular, segundo o qual quem não quer ter aborrecimentos com a fiança, não lhe aponha o nome.
O fiador que assume, voluntariamente, a garantia, obrigando-se a pagar a obrigação, se o devedor não o fizer, tem a exata consciência de que está alocando o seu patrimônio ao credor, no caso de inadimplemento.
E isto confere segurança jurídica ao contrato e ao mercado.
Temos sempre sustentado que o contrato de locação do imóvel urbano se reveste de especialidades, que os distinguem dos demais, justificando a adoção de regras próprias e diferenciadas, o que não colide com o princípio da isonomia.
Por outro lado, a garantia de moradia digna é dever do Estado e não do cidadão, que paga pesados impostos, para viabilizá-la.
A decisão confirma o risco de se julgar sem o perfeito conhecimento da equação econômica dos contratos e das realidades dos mercados.
Ao tomar conhecimento da decisão ficou-nos o doloroso receio de que venha ela a quebrar a estabilidade do mercado locatício, garantida pela lei 8245/91, que alcançou verdadeiro milagre de longevidade, de vinte e sete anos de proveitosos resultados, apesar das brutais transformações sofridas pela economia brasileira.
Para encerrar estes primeiros e rápidos comentários, baseados apenas no informativo do STF, entendemos que a decisão traz insegurança jurídica ao mercado, que, pela sua relevante densidade social e econômica, precisa de regras estáveis e equilibradas, que incentivem a construção de novas unidades, aumentando a oferta de imóveis para locação e, por via de consequência, reduzam os aluguéis.
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