terça-feira, 21 de agosto de 2018

A responsabilidade civil por causa desconhecida

Elisa Junqueira Figueiredo e Marcus Swenson de Lima
A teoria da culpa (responsabilidade subjetiva) e a teoria do risco (responsabilidade objetiva), bem ou mal, representam as formas encontradas pelo direito brasileiro, até o presente momento, para buscar a reparação a um prejuízo sofrido.
terça-feira, 21 de agosto de 2018

Começou no ramo dos transportes, em especial no transporte aéreo, as discussões doutrinárias sobre a "responsabilidade civil por causa desconhecida", também chamada de "responsabilidade civil sem causa definida", tendo em vista a complexidade de razões que costumam envolver os acidentes aéreos. Não são raras as ocasiões de não se chegar a uma conclusão efetiva sobre a causa do acidente nas perícias técnicas realizadas nos destroços das aeronaves, isso quando são possíveis de serem realizadas. Com o avanço tecnológico, as responsabilidades certamente não serão sempre conhecidas e definidas. Como, então, responsabilizar o culpado? Que culpado?
As discussões iniciais sobre as responsabilidades das companhias aéreas residiam na possibilidade de elas serem ou não responsáveis objetivamente pelos acidentes, ou se as vítimas ficariam sem reparação do prejuízo sofrido, caso não conseguissem comprovar a culpa da transportadora. No direito italiano e germânico este tipo de responsabilidade do transportador é presumida, baseada na teoria do risco da atividade que estas empresas se dispõem a fazer, pois a proteção ao passageiro é prioritária e não a exime de responsabilidade mesmo nos casos em que o transportador aéreo consiga demonstrar ter feito tudo o que era possível para que o acidente não ocorresse. As únicas hipóteses para se eximir do dever de indenizar, é conseguir demonstrar a culpa exclusiva da vítima ou de terceiros e nos casos de força maior extrínseca, aquela que, para ser caracterizada, precisa obedecer aos critérios dos três "is": ser (o fato) inevitável (anterior ao acontecimento), ser (o fato) irresistível (durante o evento) e que torne impossível (após o evento) de ser exigido o cumprimento da obrigação.
A responsabilidade civil que conhecemos e também utilizamos por aqui segue essa mesma linha do direito civil europeu e talvez seja a forma mais próxima de se fazer e enxergar a justiça, ao menos na esfera civil. Academicamente, nós poderíamos dividir a responsabilidade civil em cinco funções principais: a de prevenção, a de precaução, a de reparação, a distributiva e a punitiva. Quando o dano é esperado, a prevenção sempre é a melhor saída. Quando o dano não é esperado, a precaução aparece como a melhor alternativa. Quando o dano já ocorreu, a reparação surge como o remédio. Nas situações em que o dano é impossível de ser suportado por uma única pessoa, surge a função distributiva para tentar dividir entre muitos os prejuízos para que, de certa forma, os tornem "suportáveis". Por fim, para aqueles que não costumam agir com a boa-fé para com os demais, a função punitiva seria usada na tentativa de inibir aqueles que agissem dessa forma.
A teoria da culpa (responsabilidade subjetiva) e a teoria do risco (responsabilidade objetiva), bem ou mal, representam as formas encontradas pelo direito brasileiro, até o presente momento, para buscar a reparação a um prejuízo sofrido. A teoria do risco que conhecemos hoje, expressa no parágrafo único do artigo 927 do Código Civil, se baseou na figura do guardião (ou guarda) da coisa para imputar-lhe a responsabilidade. Essa teoria surgiu da preocupação dos juízes e juristas franceses em dar uma resposta à sociedade francesa do fim do século XIX, sobre o aumento de acidentes trazidos pelo desenvolvimento das máquinas, para proteger as vítimas desses acidentes, uma vez que culpar as máquinas pelo dano não estava resolvendo o problema, e a pessoa acabava por arcar sozinha com seu prejuízo.
Mas as duas teorias, da culpa e do risco, sozinhas continuarão sendo suficientes para reparar um dano causado, digamos, por um robô, autônomo, em um futuro não muito distante? A dificuldade que a responsabilidade civil terá que enfrentar para responder este questionamento não será pequena, ante à dicotomia existente entre regrar demais, impedindo o avanço tecnológico, ou regrar de menos, a ponto de danos ficarem impunes.
A dose do remédio terá que ser precisa para o remédio não matar o paciente.
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*Elisa Junqueira Figueiredo é sócia do escritório Fernandes, Figueiredo, Françoso e Petros Advogados.
*Marcus Swenson de Lima é advogado do escritório Fernandes, Figueiredo, Françoso e Petros Advogados.
http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI285937,51045-A+responsabilidade+civil+por+causa+desconhecida

É constitucional a regra de impedimento do artigo 144, inciso VIII, do CPC?


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Recentemente, a Associação dos Magistrados do Brasil ajuizou ação direta de inconstitucionalidade pleiteando a declaração de inconstitucionalidade do artigo 144, inciso VIII, do CPC, que estabelece haver impedimento do juiz nos processos “em que figure como parte cliente do escritório de advocacia de seu cônjuge, companheiro ou parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive, mesmo que patrocinado por advogado de outro escritório” (ADI 5.953).
No regime processual anterior (artigo 134 do CPC/73), fixava-se o impedimento do magistrado para atuar em processo no qual postulasse como advogado seu cônjuge, companheiro ou parente (até 2º grau), tendo o novo Código de Processo Civil ampliado essa hipótese para as situações em que o cônjuge, companheiro ou parente (até 3º grau) seja membro de escritório de advocacia, “mesmo que não intervenha diretamente no processo” (artigo 144, inciso III, parágrafo 3º, do CPC). Com o dispositivo impugnado na ADI, o CPC trouxe ainda regra mais ampla de impedimento, para também afastar magistrado dos processos nas situações em que o escritório integrado por cônjuge, companheiro ou parente (até 3º grau) do juiz tenha a PARTE como seu cliente, ainda que o processo específico seja patrocinado por outro escritório.
Afirmou a AMB que a regra legal viola o princípio da proporcionalidade, pois a lei exige uma conduta impossível de ser observada por parte do magistrado. Nos termos da petição inicial, trata-se de “um impedimento que o juiz não pode, sozinho, verificar quando o processo lhe é submetido à conclusão para exame e julgamento”, que configuraria “caso clássico de uma norma que impõe uma obrigação impossível de ser cumprida (‘ad impossibilia nemo tenetur’)”.
Na manifestação que ofereceu nos autos, exercendo o múnus de defender a constitucionalidade da norma, a advogada-geral da União sustenta que o dispositivo legal busca “dar efetividade ao princípio do juiz natural e do devido processo legal, haja vista que as hipóteses de impedimento e suspeição previstas na legislação processual garantem a concretização dos referidos princípios”.
A questão pode ser examinada sob outro prisma.
Não se questiona que o juiz, para o exercício de seu mister, deve ter alguns atributos, que se constituem como uma garantia do cidadão, inerente ao devido processo legal. É importante, diz o professor Rui Portanova, “que seja um juiz independente, ou seja, que não se renda a pressões e fatores externos a sua consciência e que esteja consciente dos fatores ideológicos que moverão sua decisão”. Além disso, “deve ser imparcial, ou seja, distante dos interesses pessoais das partes em litígio”. E, concluindo, “deve ser um julgador devidamente investido no cargo, que não delegue seus poderes nem fuja do compromisso de julgar”[1].
Essa faceta do devido processo legal encontra assento constitucional específico, no princípio do juízo natural, segundo o qual “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”, não havendo lugar para instalação de “juízo ou tribunal de exceção” (artigo 5º, inciso LIII e XXXVII, CF). Enfim, como se costuma afirmar, a existência de um Poder Judiciário independente e de juízes imparciais é um requisito de validade para o processo e uma garantia prometida pela jurisdição[2].
Será que a regra do artigo 144, inciso VIII, do CPC prestigia esse ideal de boa jurisdição?
Façamos um exercício mental sobre a situação dos magistrados, advogados e partes em alguns cenários.
Pela regra, um juiz do DF que tivesse um parente até 3º grau que integre escritório de advocacia em São Paulo que preste serviços para uma empresa de telefonia com atuação nacional estaria impedido (presunção absoluta de parcialidade) para atuar em qualquer processo dessa empresa. Coloquemos no lugar dessa empresa de telefonia outras empresas de grande porte, concessionárias de serviço público, sindicatos ou partes que sejam litigantes habituais para compreendermos o grau de severidade da norma.
Considerando ainda a situação do exercício da advocacia no Brasil hoje, com o fenômeno que tem sido chamado de “proletarização” da profissão e a expansão dos escritórios, ficará ainda mais evidente a abrangência que a regra pode assumir.
Conceba-se que essa regra também alcance situações em que o parente do juiz é advogado público, criando impedimento para que o magistrado aprecie e julgue quaisquer processos que envolvam o cliente “União” ou “Estado”, por exemplo. Nesse cenário, teríamos no Brasil um quadro generalizado de impedimento.
Pode-se argumentar que esse último cenário seria uma aplicação despropositada da regra, o que descortinaria a verdadeira finalidade da norma: repelir condutas que busquem esconder influências indevidas que seriam praticadas de forma simulada. Exemplificando: uma empresa pode contratar escritório integrado por um parente do juiz para atuar num processo trabalhista como forma de influenciar indevidamente o magistrado que julgará uma matéria tributária ou penal da mesma empresa.
Conquanto esse tipo de situação possa de fato ocorrer no mundo da vida, conceber uma regra de impedimento, criando uma presunção absoluta de parcialidade, para regular o assunto, acarreta uma deformação no regime de garantias da jurisdição, dado que (i) normas do tipo “regra” simplesmente se obedecem (enquanto que aos princípios se presta adesão); e (ii) o objetivo do sistema jurídico, nesse campo de regulação, é também, nas palavras de Rui Portanova, obter um juiz que “não fuja da tarefa de julgar”. É dizer: essa regra, com seu tudo ou nada, traz impactos indesejáveis no princípio constitucional do juízo natural.
Entendo que o Código de Processo Civil olvidou, no particular, que a garantia de uma boa jurisdição, prestada com imparcialidade, não se sustenta hoje apenas nos atributos oferecidos pela independência do Poder Judiciário, pelas garantias dos magistrados e pelas vedações de certas condutas. Há algum tempo, tem sido difundida a ideia de que a boa jurisdição demanda aquilo que os falantes do inglês chamam de accountability, ou seja, a sujeição do magistrado a um regime de responsabilidade e a necessidade de prestação de contas. Cabe sustentar, nessa linha de raciocínio, que o esforço para resguardar a independência judicial não pode desconsiderar a necessidade de assegurar a responsabilidade judicial (prestação de contas do juiz), criando mecanismos de transparência[3].
Enfim, independência e responsabilidade (accountability) não precisam ser conceitos dicotômicos. Podem ser duas ideias que se reforçam: são apenas instrumentos para reforçar o valor da imparcialidade do juiz[4].
Nesse quadro mais amplo, confirma-se não só a desproporcionalidade (e iniquidade) do artigo 144, inciso VIII, do CPC, para os juízes, mas a sua disfuncionalidade para o sistema de Justiça, dado que condutas que influenciem indevidamente a consciência do magistrado como aquelas previstas na regra devem encontrar resposta mais adequada no fortalecimento da responsabilidade judicial e não no caminho fácil, porém enganoso, da ampliação das presunções absolutas de parcialidade.
Há espaço, por isso, para que o Supremo Tribunal Federal aprecie a racionalidade na norma e a relação de adequação e proporcionalidade entre o objetivo que se quer atingir e os meios escolhidos para aferir se houve “erro de avaliação do legislador” capaz de afrontar a Constituição[5].
Se, de um lado, não há efetiva prestação jurisdicional e devido processo legal quando os meios processuais à disposição das partes sejam ilusórios, em função de condições externas ou em função das circunstâncias particulares do caso, é certo que, de outro lado, contraria esses mesmos objetivos afastar do exercício da jurisdição magistrados imparciais investidos da jurisdição. Mostra-se, pois, prejudicial para a seriedade da jurisdição retirar magistrado imparcial que seria o juiz natural do feito por assumir, numa presunção absoluta, que ter um parente num escritório que atua para uma parte o torna automaticamente impedido para julgar todos e quaisquer processos dessa parte, mesmo naqueles nos quais esse escritório não atua.
A melhor solução não parece ser, portanto, estabelecer uma regra que crie uma presunção absoluta de parcialidade, mas sim tratar dessa espécie de conduta a partir das ideias regulativas de independência, responsabilidade e imparcialidade, valendo-se não apenas dos critérios subjetivos da suspeição, mas também do fortalecimento do regime de responsabilização funcional do juiz e do dever de prestar contas.
*Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

[1] PORTANOVA, Rui. Princípios do Processo Civil. 3ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 62.
[2] GOZAÍNI, Osvaldo Alfredo. Derecho procesal constitucional: el debido processo. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Editores, 2004. Cap. 4, pp. 233, 238.
[3] GOZAÍNI, Osvaldo Alfredo. Derecho procesal constitucional: el debido processo. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Editores, 2004. Cap. 4, pp. 240-248.
[4] HACK, Péter. Introduction: Judicial Integrity. In: SAJÓ, András (ed.). Judicial Integrity. Leiden/Boston: Martinus Nijhoff Publishers, 2004. p. 11.
[5] ADI 3112, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, DJe 25/10/2007; HC 104410, Rel. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, DJe 27/3/2012; ADI 1.511 MC, Rel. Ministro Carlos Velloso, j. 16-10-1996, P, DJ de 6-6-2003
 é doutor em Direito do Estado (Direito Constitucional) pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito e Estado pela Universidade de Brasília (UnB) e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP.
Revista Consultor Jurídico, 18 de agosto de 2018, 8h03
https://www.conjur.com.br/2018-ago-18/observatorio-constitucional-constitucional-regra-impedimento-art-144-inc-viii-cpc

Justiça da Paraíba inclui Unipê em partilha de herdeiros de fundador

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Todos os bens de um cidadão devem ser partilhado entre herdeiros, ainda que não estejam arrolados em inventário. E isso vale para quota ou fração de patrimônio em associação. Com esse entendimento, a 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça da Paraíba decidiu que o hoje Centro Universitário de João Pessoa (Unipê) fosse incluído na herança do Monsenhor José Trigueiro do Vale.
Ele foi um dos seis fundadores dos Institutos Paraibanos de Educação (Ipê), em 1971, e morreu em 6 de maio de 2012. A abertura do procedimento de inventário foi feita em 17 de maio do mesmo ano. Na época, o inventário incluía dinheiro em espécie, dois apartamentos, um lote, dois automóveis e um jazigo em cemitério. O patrimônio foi dividido entre os irmãos dele vivos deles e filhos dos irmãos mortos.
Seis anos mais tarde, em 12 de junho deste ano, alguns dos herdeiros pediram a revisão da partilha. Para eles, houve a sonegação do bem de maior valor econômico, ou seja, a quota associativa de um sexto da pessoa jurídica “Institutos Paraibanos de Educação – IPÊ”.
"É consabido que todos os direitos e bens titularizados pelo falecido integram sua herança, assim compreendida a universalidade de relações jurídicas dotadas de valor econômico, nos termos do artigo 91, do Código Civil, dentre elas, eventuais quotas sociais de pessoas jurídicas", decidiu o relator do caso, desembargador Romero Marcelo da Fonseca Oliveira.
Os herdeiros argumentaram que a formação do instituto se deu por meio de aporte individual dos fundadores. À época da divisão de bens, ficou entendido que não havia justificativa para a inclusão do Ipê por ser este uma associação civil sem fins lucrativos. Irmão do Monsenhor José Trigueiro do Vale, Oswaldo Trigueiro do Valle foi admitido no quadro social do instituto como continuador do irmão, de acordo com as regras estatutárias, e não com o direito sucessório.
O bem, no entanto, foi alienado por outro grupo empresarial, conforme divulgado até mesmo pelo site da Unipê, estando a operação, inclusive, já aprovada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). No pedido, os herdeiros alegam que a transferência patrimonial se difere da transmissão da qualidade de associado na pessoa jurídica em questão.
"A decisão do TJ-PB é tecnicamente irretocável, já que é impossível se pensar que uma instituição como a Unipê, vendida por centenas de milhões de reais, não possuía valor econômico à época do inventário", avaliou Rafael Carneiro, do Carneiros Advogados e que fez a defesa dos herdeiros.
A decisão, para ele, faz justiça com todos herdeiros, "vítimas de uma triste estratégia do inventariante, que buscou se apropriar do principal bem deixado pelo Monsenhor José Trigueiro do Valle, apenas para si, prejudicando irmãos e sobrinhos, muitos deles em frágil situação econômica".

Clique aqui para ler a íntegra da decisão.
 é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 18 de agosto de 2018, 16h03
https://www.conjur.com.br/2018-ago-18/justica-paraiba-inclui-unipe-partilha-herdeiros-fundador