domingo, 12 de abril de 2020

Vídeo: Princípio da Função Social da Família

A função social da família, para efeito de proteção do Estado, deve ter atenção especial pelo que representa. Ora, senão a família para garantir as características e identidade do Estado, não haveria quaisquer outros institutos capazes de proteger a existência do mesmo, por meio da procriação. Sendo assim, o legislador, no ato de redacionar o Princípio da Dignidade Pessoa Humana, que é constitucional, abrangeu também o Princípio da Função Social da Família. Além disso, deve-se atentar para a constante mudança do conceito “família”, haja visto que este conceito é mutável, e o Direito deve acompanhar essa mudança.
@lucs.albernaz 
Projeto @falando_de_familia ⚖

@direito_una_catalao
@una_catalao

A possibilidade de fazer um testamento durante o isolamento causado pelo coronavírus – breves considerações

Cristian Fetter Mold
A legislação brasileira exige uma série de formalidades, tais como a presença de testemunhas (o número de testemunhas varia segundo a modalidade adotada), a leitura do testamento em voz alta perante essas testemunhas a um só tempo e, em alguns casos, a presença de um notário.
quarta-feira, 8 de abril de 2020

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O testamento, na sua definição clássica, é um ato revogável pelo qual alguém dispõe, no todo ou em parte, do seu patrimônio para depois da sua morte, podendo também deixar escritas disposições de ordem não patrimonial (reconhecimento de filhos, disposições sobre funeral, doação de órgãos, nomeação de tutor para administrar bens de filho menor, dentre outras). Suas modalidades, seu conteúdo e institutos jurídicos correlatos (revogação, deserdação, etc.) vêm previstos no Código Civil brasileiro, a partir do artigo 1.857 e suas disposições processuais estão contidas no Código de Processo Civil no artigo 735 e seguintes.
Em geral, a legislação brasileira exige uma série de formalidades, tais como a presença de testemunhas (o número de testemunhas varia segundo a modalidade adotada), a leitura do testamento em voz alta perante essas testemunhas a um só tempo e, em alguns casos, a presença de um notário.
Todavia, o artigo 1.879 do Código Civil prevê literalmente a possibilidade de qualquer pessoa capaz (com pelo menos 16 anos de idade, neste caso) em "circunstâncias excepcionais" declaradas no próprio texto, poder fazer um testamento particular, de próprio punho, assinado, sem testemunhas, o qual poderá ser confirmado, a critério do juiz, após a morte do autor do testamento. É o chamado "Testamento Particular em Circunstâncias Excepcionais".
O termo "circunstâncias excepcionais" geralmente é vinculado pela doutrina ao fato de o testador estar em lugar de difícil acesso, sem possibilidade de comunicação, ou em local atingido por eventos naturais catastróficos, tais como tufão, terremotos, inundações e epidemias, de modo que o testador encontre-se isolado e, segundo sua apreciação, em risco de perder a vida e sem a possibilidade de convocar testemunhas para assistir ao ato.
Vários ordenamentos europeus possuem dispositivos semelhantes, com menção expressa à "epidemias", como, por exemplo, o Código Civil de Portugal (art. 2220º), o Código Italiano (art. 609), e o Espanhol (art. 701), cujo texto assim se apresenta: "En caso de epidemia puede igualmente otorgarse el testamento sin intervención de Notario ante tres testigos mayores de dieciséis años."
Aliás, sobre o caso Espanhol, em um artigo recente o jurista albacetense Javier López-Galiacho Perona conta que, em 1990, quando estavam em vigor os debates de reforma do Código Civil, perguntaram ao emérito civilista Manuel Albaladejo, se não seria bom aproveitar a reforma para eliminar por desuso aquele tipo de Testamento Especial "em caso de epidemia", ao que o jurista mostrou sua contrariedade dizendo, ironicamente, em tradução livre que: "os bichos, assim como se vão, voltam". O artigo foi mantido na lei civil espanhola e sua atualidade neste momento de pandemia de coronavírus, além do acerto da lição do prof. Manuel, falecido em 2012,  não podem ser contestadas.
No caso brasileiro, não há dúvidas, após a edição de uma série de documentos legais neste começo de março de 2020 e, ante a postura adotada por boa parte da sociedade brasileira, que as pessoas, em geral, estão se mantendo dentro de suas casas, ou em casos mais graves, estão sendo hospitalizadas para prevenção e tratamento.
Ademais, pode-se dizer no momento atual que é praticamente impossível testar de outra forma, uma vez que os Cartórios de Notas estão com atendimento muito limitado, sendo que a convocação de testemunhas seria também algo raro de se conseguir.
Portanto, na prática, entendemos que qualquer pessoa capaz, maior de 16 anos (não havendo idade máxima na lei), ainda que esteja adoentada e mesmo hospitalizada, pode então redigir seu testamento, com base no artigo 1.879 do Código Civil brasileiro, deixando bens móveis e imóveis para familiares, terceiros ou até mesmo pessoas jurídicas (instituições de caridade, igrejas, dentre outras), podendo ainda fazer disposições de ordem extrapatrimonial, tais como as mencionadas no início deste artigo.
Recomenda-se que o documento:
a) seja manuscrito ou digitado, sem rasuras;
b) contenha data e número das páginas (de preferência com o recurso "nº da página atual – barra – nº da página final", por exemplo, "1/8", "2/8" e assim por diante);
c) seja rubricado em todas as páginas e assinado ao final (obs. a 2ª seção do STJ, no julgamento do Recurso Especial 1633254, em março de 2020 aceitou, sem unanimidade de seus ministros componentes, um documento não assinado, mas que continha a digital da testadora);
d) faça menção ao isolamento social provocado pela pandemia e, se for o caso, ao fato de o testador possuir algum tipo de sintoma, estar hospitalizado, viver sozinho, dentre outras situações que demonstrem a impossibilidade de fazer um testamento ordinário;
e) possua a identificação completa do testador, as disposições que pretenda fazer de forma clara, a descrição mais completa possível dos bens que pretenda deixar e das pessoas que pretenda contemplar;
f) e ainda, indique uma pessoa (herdeiro ou não) para apresentar o testamento após a morte do testador e que irá diligenciar para que as disposições contidas no documento sejam cumpridas – o chamado testamenteiro.
Além disso, rememore-se que o testador pode indicar outras pessoas para receber os bens, no lugar das pessoas originalmente indicadas, caso estas morram antes do Autor do documento, ou ainda, quando chamadas, não aceitem ser contempladas (a chamada "renúncia").
Pode ainda o testador deserdar herdeiros necessários (descendentes, ascendentes, cônjuges ou companheiros) nas hipóteses descritas nos artigos 1.814 e 1.962/1.963 do Código Civil).
De todo modo, sendo a legislação bem específica e plena de detalhes, recomenda-se fortemente o auxílio de um advogado especializado na área, o qual pode atender remotamente o interessado, para a redação do documento, não havendo nenhum problema em se ter este tipo de apoio jurídico, desde que seja possível se verificar que o documento trazia mesmo a expressão da vontade do testador e, evidentemente, não seja o advogado (ou parente muito próximo a ele) pessoa contemplada no próprio testamento, o que poderá levantar dúvidas sobre sua idoneidade, levando até mesmo à nulidade da disposição, na forma dos artigos 1.801 e 1.802 do Código Civil brasileiro.
Por fim, o fato de o testador não vir a falecer neste período de isolamento social não leva necessariamente à perda de efeitos do documento, o qual continuará válido enquanto não for revogado formalmente, no todo ou em parte.
Ainda assim, pela especialidade da situação em que vivemos, recomenda-se que o testador reveja posteriormente seu conteúdo e, se não for o caso de sua revogação, transforme-o em um Testamento Público ou Particular, com as testemunhas em número previsto na lei Civil, as quais possam atestar – em uma eventual ação anulatória pós morte - sua capacidade no momento de fazer suas disposições de última vontade.
Em caso de falecimento atual ou futuro, deverá o testamento ser apresentado perante um Juiz competente para que seja analisado e, uma vez aprovado por sentença transitada em julgado, cumpram-se as determinações do testador. 
A título de curiosidade, em um julgamento de novembro de 2019, oriundo do Tribunal de Justiça de Santa Catarina**, os desembargadores aceitaram como prova a ensejar a capacidade do testador, já enfermo e hospitalizado, a juntada de uma gravação audiovisual em que este aparentava lucidez ao ler e revisar o documento que, aliás, nem houvera sido redigido por ele (**Apelação Cível nº 0301788-24.2014.8.24.0007, relator desembargador Luiz Felipe Schuch).
Desta forma, nada impede que o testador isolado pelo coronavírus, além de redigir seu testamento sozinho, sem testemunhas, nos moldes acima recomendados, faça também um vídeo de si próprio lendo e ratificando suas disposições, o que pode auxiliar em sua aprovação futura, em caso de discórdia entre os herdeiros.
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*Cristian Fetter Mold é advogado do FETTER MOLD Advocacia, professor de Direito de Família e Sucessões, membro do IBDFAM.

Responsabilidade civil nos casos de transmissão coletiva do coronavírus


Por  e 
Dentre a miríade de domínios jurídicos alcançados pelas consequências do espraiamento universal do Covid-191, doença causada pelo coronavírus, certamente a responsabilidade civil, seara ordinariamente atingida pelo desenrolar célere dos acontecimentos sociais, não poderá se furtar a solucionar diversas questões que têm origem na disseminação indiscriminada da carga viral entre parte relevante da população, quando a propagação desta, em determinado seio comunitário, se efetivar pela conduta ilícita de um portador da doença.
Dois casos recentemente noticiados pela imprensa baiana e nacional ilustram com perfeição a complexa problemática da responsabilização civil pelo alastramento do vírus.
No primeiro caso, de grande repercussão, um empresário, mesmo depois de ter supostamente testado positivo ao novo coronavírus, após exames em São Paulo, teria se utilizado de um jatinho particular, juntamente com outros amigos, para se deslocar até Trancoso, no sul da Bahia, a fim de participar de um casamento, no dia 07 de março do corrente ano. Ocorre que alguns convidados do festejo, dentre eles a cantora Preta Gil e a influenciadora Gabriela Pugliesi, acabaram por contrair o vírus, possivelmente em razão do contato direto com o infectado. Ressalte-se que, segundo o Governo do Estado da Bahia, o paciente teria sido advertido da necessidade de permanecer em isolamento, recomendação esta que restou descumprida.
Noutro caso bastante divulgado pela mídia, um médico que atende em clínicas particulares de cinco municípios do Litoral Norte da Bahia (Cardeal da Silva, Entre Rios, Esplanada, Acajutiba e Catu) testou positivo para o Covid-19. Este profissional de saúde teria feito uma viagem para os EUA entre os dias 29 de fevereiro e 08 de março do presente ano e, após o seu retorno, aparentemente apresentando quadro gripal, enquadrando-se, pois, na recomendação do Ministério da Saúde de isolamento por 14 dias, realizado atendimentos, consultando diversos pacientes com os quais, inevitavelmente, teve contato.
Em ambos os casos, a Procuradoria do Estado da Bahia, acatando determinação do governador da Bahia, Rui Costa, representou criminalmente os mencionados indivíduos, em razão da desobediência às medidas de segurança pública estabelecidas, ao colocarem em risco a integridade física das pessoas com quem tiveram contato.
Em que pese o órgão de representação judicial do Estado da Bahia tenha ofertado representação criminal nos casos acima aludidos, a responsabilização penal não aparenta constituir a via mais efetiva para, em concreto, obter a reparação dos danos causados, ou mesmo punir os supostos ofensores2. Além do fato de as penas cominadas no art. 268 do Código Penal brasileiro (detenção, de um mês a um ano, e multa) serem absolutamente insignificantes, faz-se necessário que se demonstre, por se tratar de tipo doloso3, que o agente tenha tido conhecimento da determinação do Poder Público, circunstância esta que nem sempre poderá ser objeto de prova.
A responsabilidade civil4 surge como remédio mais idôneo, neste específico caso, para a reparação adequada5 dos danos sofridos pela coletividade e pelas pessoas efetivamente contaminadas por meio da conduta ilícita dos portadores do vírus. A tutela civil do dano se mostra muito mais efetiva e útil nos casos de transmissão ilícita do vírus do que a simples responsabilização penal, visto que a quantia em pecúnia arbitrada servirá como reparação pelos prejuízos materiais sofridos (como por exemplo, gastos com medicamentos e internação hospitalar, lucros cessantes, dentre outros), além de compensação por eventuais danos extrapatrimoniais experimentados pela vítima.
Algumas interessantes questões, todavia, devem ser enfrentadas de antemão pela doutrina, eis que os tribunais provavelmente irão se defrontar com casos análogos aos ora em debate.
Inicialmente, cumpre averiguar se cabível a condenação dos infratores por dano moral coletivo. Seria possível afirmar que as condutas dos lesantes afetaram bens jurídicos de toda a coletividade ou de determinado grupo específico, e não apenas dos novos infectados? Atentando-se para o fato de que muito possivelmente o vírus fora disseminado para outras pessoas, em razão do convívio social ordinário, e não apenas para aquelas com quem os infectados tiveram contato direto, aparentemente seria possível sustentar a ocorrência de dano moral coletivo. O valor da condenação poderia ser utilizado, caso acolhido este entendimento, no combate à pandemia. Poder-se-ia cogitar ainda da aplicação da tese, originalmente formulada por Antônio Junqueira de Azevedo, da existência de um dano social6.
Questão ainda mais problemática diz respeito à fixação do liame causal entre o comportamento dos infratores e os danos ocasionados, bem assim o estabelecimento das lesões a serem ressarcidas7. Mostra-se extremamente complexa a prova de que a contaminação viral de certo grupo de pessoas acarretou a proliferação do vírus e foi responsável pelo alastramento da doença a um número considerável de indivíduos. Seria possível, a título exemplificativo, responsabilizar o médico que atuava nas cidades do litoral baiano por todas as transmissões ocorridas no território de determinado município, demonstrando-se que este havia sido o primeiro a propagar o vírus (paciente zero)? Sendo duvidosa tal comprovação pelos métodos tradicionais de aferição do nexo de causalidade, poder-se-ia cogitar da utilização de outros critérios de imputação, como o do risco acrescido pela conduta do médico8, especialmente por se tratar de profissional da saúde?
A solução da temática é ainda dificultada pelo acolhimento, no direito brasileiro, segundo parcela doutrinária, da subteoria da necessariedade, construção evolutiva da teoria da causalidade direta e imediata, desenvolvida por Agostinho Alvim9 e aparentemente acolhida pelo STF no julgamento do RE 130.764, julgado em 1992, e que teve como relator o Ministro Moreira Alves. Trata-se, em verdade, de construção teórica que não oferece critérios seguros e objetivos de aplicação10, permitindo a utilização, pelo magistrado, de forma intuitiva, da tese que, escolhida de antemão, melhor atenda à sua percepção pessoal.
A teoria da causalidade adequada11, embora preferível tecnicamente, por consistir em verdadeira teoria da imputação12 (Zurechnung Theorie), tem sofrido severas críticas em razão de sua excessiva abertura, rivalizando, no direito alemão, com o emprego da teoria do escopo de proteção da norma (Schutzzwecktheorie), ora sendo esta última aplicada isoladamente, ora em conjunto com a tese da causa adequada13. Questiona-se, no entanto, se as teorias convencionais da causalidade, isoladamente, podem ser consideradas suficientes a solucionar todos as problemáticas que a vida prática apresenta, ou se outros critérios de imputação podem ser aplicados, a depender das peculiaridades do grupo de casos estudado.
Destaque-se ainda que eventuais pretensões que tenham por desiderato prevenir o contágio ou a transmissão da doença, como, por exemplo, a do afastamento ou isolamento de pessoas, posicionam-se fora do âmbito da responsabilidade civil14. Prevenção e precaução, longe de pertencerem aos domínios da responsabilidade civil15, devem ficar a cargo das instancias talhadas a este desiderato, mediante o fortalecimento dos sistemas de controle administrativo e a utilização de técnicas processuais inibitórias e coletivas adequadas.
Não há falar, assim, em “dano de risco”, na hipótese de determinada pessoa ter tido contato com um indivíduo infectado, sem ter sido alertada, em razão do temor de ser portadora da doença. Tal circunstância, por si só, não caracteriza dano indenizável. Em casos de indivíduos portadores de doenças graves ou de idade avançada, integrantes do grupo de risco letal, o aludido dano decerto não se identifica com o risco, mas advém, neste caso, da violação contundente de direito da personalidade, mais especificamente a integridade psicológica da vítima, não se afigurando necessária a construção de uma responsabilidade ex ante a fim de justificar, na hipótese mencionada, o dever de reparação16.
Vislumbram-se, portanto, diversos problemas teóricos que precisam ser mais bem trabalhados pela doutrina, com o escopo de fornecer substrato técnico às futuras demandas judiciais, que certamente afluirão ao Judiciário, em razão das complexas interações sociais ocasionadas pela pandemia do Covid-19.
Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA,UFRJ e UFAM).

1 COVID significa Corona Virus Disease (Doença do Coronavírus), enquanto “19” se refere a 2019, quando os primeiros casos em Wuhan, na China, foram divulgados publicamente pelo governo chinês no final de dezembro.
2 A despeito da larga aplicação pela jurisprudência brasileira do instituto da indenização punitiva (punitive damages), certo é que, em se tratando de pena, e não de mera compensação, à semelhança do que ocorre no Direito Penal, exige-se, a luz do quanto estatuído no art. 5°, XXXIX, da CF/88, previa cominação legal da sanção, em atenção ao adágio nulla poena sine lege. O Direito brasileiro, no entanto, não albergou, como regra geral, senão em hipóteses especificas, a função punitiva da responsabilidade civil (ROCHA, Maria Vital da; MENDES, Davi Guimarães. Da indenização punitiva: análise de sua aplicabilidade na ordem jurídica brasileira. Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 12, ano 4, p. 211-252. São Paulo: RT, jul.-set. 2017, p. 242-243).
3 MASSON, Cleber. Código Penal Comentado. São Paulo: Método, 2013, p. 268.
4 A propósito, a Portaria Interministerial n° 5, de 2020, de autoria dos Ministérios da Justiça e da Saúde, dispõe, em seu art. 3°, que “o descumprimento das medidas previstas no art. 3° da Lei n. 13.979, de 2020, acarretará a responsabilização civil, administrativa e penal dos agentes infratores”.
5 A utilização do princípio da reparação integral do dano, forjada no âmbito do direito francês, tem sido contestada por parcela da doutrina, especialmente estrangeira: “Full compensation is a myth, or at most a convenient, though often misleading, judicial guideline. To infer from this observation that French courts follow a hidden principle that damages must be apportioned based on the seriousness of the damaging activity may be too much of a stretch” (MORÉTEAU, Olivier. Basic questions of tort law from a French perspective. In: KOZIOL, Helmut (Ed.). Basic Questions of Tort Law from a Comparative Perspective. Wien: Jan Sramek Verlag, 2015, p. 89). Já tivemos a oportunidade de defender que a reparação de lesões imateriais “deve guiar-se pelo princípio da reparação adequada, ofertando ao vitimado uma miríade de soluções, não apenas pecuniárias, com vistas a tutelar, de forma apropriada, os direitos da personalidade atingidos” (DANTAS BISNETO, Cícero. Formas não monetárias de reparação do dano moral: uma análise do dano extrapatrimonial à luz do princípio da reparação adequada. Florianópolis: Tirant Lo Blach, 2019, p. 181).
6 O dano moral coletivo não se confunde com o dano social: “Os danos sociais são lesões à sociedade, no seu nível de vida, tanto por rebaixamento de seu patrimônio moral – principalmente a respeito da segurança – quanto por diminuição na qualidade de vida. Os danos sociais são causa, pois, de indenização punitiva por dolo ou culpa grave, especialmente, repetimos, se atos que reduzem as condições coletivas de segurança, e de indenização dissuasória, se atos em geral da pessoa jurídica, que trazem uma diminuição do índice de qualidade de vida da população” (AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil: o dano social. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, ano 5o, n. 19, pp. 211-218, jul./set., 2004).
7 A doutrina tem apontado a dupla função exercida pelo nexo de causalidade, determinando a quem se deve atribuir o resultado danoso e verificando a extensão do dano a se indenizar (TEPEDINO, Gustavo; TERRA, Aline Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Fundamentos do direito civil, vol. 4: responsabilidade civil, . p. 85)
8 O critério do risco acrescido é utilizado, por exemplo, como um dos requisitos para a aplicação da “fórmula do desafio” (Herausforderungsformel) nas hipóteses de causalidade psíquica (LANGE, Hermann; SCHIEMANN, Gottfried. Schadenersatz. 3. Auflage. Tübingen: Mohr Siebeck, 2003, p. 133).
9 ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. São Paulo: Saraiva, 1995,389-390.
1000 REINIG, Guilherme. REINIG, Guilherme Henrique Lima. A teoria do dano direto e imediato no Direito Civil brasileiro: análise crítica da doutrina e comentários à jurisprudência do STF sobre a responsabilidade civil do Estado por crime praticado por fugitivo. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 12. ano 4. p. 109-163. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.
11 “Não existe ‘uma’ teoria da causalidade adequada. Essa circunstância tem provocado diversos problemas na doutrina brasileira que a importou do Direito alemão sem considerar suas diferenciações internas” (RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Nexo causal probabilístico: elementos para a crítica de um conceito. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 8. ano 3. p. 115-137. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2016., p. 130).
12 LARENZ, Karl. Lehrbuch des Schuldrechts: allgemeiner Teil. 14. Auflage. München: Beck, 1987, v. 1, p. 435.
13 DEUTSCH, Erwin; AHRENS, Hans-Jürgen. Deliksrecht. 6. Auflage. München: 2014, Franz Vahlen, 2014, p. 26.
14 Sobre o tema, assim se posicionou Luiz Guilherme Marinoni: O problema da tutela inibitória é a prevenção da prática, da continuação ou da repetição do ilícito, enquanto que o da tutela ressarcitória é saber quem deve suportar o custo do dano, independentemente do fato de o dano ressarcível ter sido produzido ou não com culpa (MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória: individual e coletiva. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 44).
15 CARRÁ, Bruno Leonardo Câmara. Responsabilidade civil sem dano: uma análise crítica: limites epistemológicos a uma responsabilidade civil preventiva ou por simples conduta. Sao Paulo: Atlas, 2015, p. 176-183.
16 Em sentido contrário, tratando das hipóteses de risco de contaminação pelo vírus HIV e entendendo, neste caso, pela existência de um “dano de risco”, cf. LOPEZ, Teresa Ancona. Princípio da precaução e evolução da responsabilidade civil. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 139.
Cícero Dantas Bisneto é juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia; mestre em Direito Civil pela Universidade Federal da Bahia (UFBA); doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP); e membro do IBERC.
 é advogado; professor associado do Departamento de Direito Civil da Universidade de São Paulo (USP); livre-docente; doutor e mestre em Direito Civil pela USP.
Revista Consultor Jurídico, 6 de abril de 2020, 11h48

Liminar permite redução no aluguel pago por restaurante durante epidemia

Por 
A pandemia do coronavírus fará todos experimentarem prejuízos econômicos, principalmente no meio privado. Cabe ao Poder Judiciário intervir em relações jurídicas privadas para equilibrar os prejuízos, caso fique evidente que, pela conduta de uma das partes, a outra ficará com todo o ônus financeiro resultante deste cenário de força maior.
Dollar Photo ClubRestaurante de São Paulo pagará 30% do aluguel durante pandemia da Covid-19

Com esse entendimento, o juiz Fernando Henrique de Oliveira Biolcati, da 22ª Vara Cível de São Paulo, concedeu liminar para reduzir o valor do aluguel pago por um restaurante em virtude da epidemia da Covid-19 no Brasil, que resultou na redução das atividades e dos rendimentos do estabelecimento. Pela decisão, o restaurante pagará 30% do valor original do aluguel enquanto durar a crise sanitária.
(...)

Como fica o equilíbrio econômico financeiro de um contrato em decorrência do Covid-19?

Marco Antonio Moreira
Essa é uma pergunta que muitos estão fazendo quando verificam que as obrigações estabelecidas em contratos se tornaram excessivamente onerosas, com sérios riscos de inadimplemento.
quinta-feira, 9 de abril de 2020


Essa é uma pergunta que muitos estão fazendo quando verificam que as obrigações estabelecidas em contratos se tornaram excessivamente onerosas, com sérios riscos de inadimplemento.
Para a maioria dos juristas, o covid-19 corresponde a um evento de força maior, de modo que pode legitimar o não cumprimento de certas obrigações. Nesse sentido, o Código Civil em seu artigo 478 dispõe que o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.
Referido artigo positivou a teoria da imprevisão, já existente na doutrina e jurisprudência nacional. De acordo com esta teoria, contratos de prestação continuada ou diferida, que, por acontecimentos extraordinários e imprevisíveis posteriores à celebração do contrato, cause onerosidade excessiva da prestação para uma das partes e um enriquecimento desproporcional para a outra, poderá a parte prejudicada pleitear a revisão contratual a fim de reequilibrar as prestações. Ou ainda, a sua resolução, caso não se chegue a um acordo.
Importante esclarecer que não são todos os contratos sujeitos à aplicação da teoria da imprevisão, que permite a revisão ou resolução contratual em face do covid-19. É necessário que estes contratos preencham todos os requisitos aqui elencados, quais sejam:
(i) tenha prestação continuada ou diferida;
(ii) alteração do equilíbrio econômico em razão do covid-19, se comparada circunstância atual com a situação fática no momento da celebração do contrato;
(iii) onerosidade excessiva para uma das partes;
(iv) vantagem extrema para a outra parte;
(v) nexo causal da onerosidade excessiva e da vantagem extrema com o covid-19; e
(vi) o beneficiário da revisão ou resolução não esteja em mora em relação à outra parte.
Cada caso concreto precisará ser avaliado individualmente, pois os contratos possuem diferentes disposições sobre reequilíbrio econômico financeiro, que, consequentemente, direcionarão para diversas formas de resolução da demanda.
A fim de resolver essa situação imposta pela pandemia, a melhor possibilidade para ambas as partes é a renegociação contratual. A própria Lei da Liberdade Econômica, por meio do artigo 421-A, inciso iii do Código Civil, indo ao encontro do artigo 479 do Código Civil incentiva essa renegociação ao dispor que a revisão de contratos empresariais somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada, exatamente o que vivemos hoje com o fechamento dos comércios e quarentena.
É de fundamental importância tentar chegar a um consenso no sentido de mitigar os efeitos da pandemia, modificando equitativamente as condições do contrato, mesmo que por tempo determinado.
E para se chegar a um acordo é necessária boa-fé de ambas as partes. Ao credor, entender que a situação atual é atípica, imprevisível, e que para manter a parceria que gerara muitos frutos até a pandemia, torna-se necessário flexibilizar algumas obrigações, mesmo que temporiamente.
Isso manteria o prestador com a economia estável, evitaria sua quebra e a necessidade de negociar com um novo player desacostumado ao seu modelo de negócio. Além disso, seria vantajoso para a economia nacional, que veria uma empresa sobreviver em tempos de profunda crise.
O mesmo vale para o devedor, que deveria agir de boa-fé, não se valendo da onerosidade excessiva para inadimplir obrigações que poderiam ser cumpridas, ou se livrar do contrato com vantagem na situação. 
As partes poderiam optar inclusive por mediação ou outras formas de resolução de conflitos. Atualmente, muitos profissionais no ramo de resolução de conflitos são capacitados e conseguem resultados muito positivos nestes tipos de situação.
A abordagem sobre (i) redução da prestação; (ii) alteração do modo de execução ou (iii) um novo cenário por tempo determinado são os caminhos para se chegar ao consenso e manter a relação saudável durante e após a pandemia.
Em persistindo a controvérsia e não havendo mais solução, é cabível a revisão judicial do contrato quando as obrigações couberem a apenas uma das partes.
Por fim, caso as partes entendam que o melhor cenário é, de fato, o encerramento do contrato, respeitados os requisitos acima expostos, é possível resolvê-lo provando-se a ocorrência de onerosidade excessiva para uma parte, com extrema vantagem para a outra.
*Este artigo não deve ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico, sendo redigido apenas para fins de debate e informação.
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*Marco Antonio Moreira é advogado do Livelo S.A

Covid-19, quarentena e o contrato educacional

Alberto Gentil de Almeida Pedroso e Arthur Zeger
A presente reflexão se pauta tão somente sobre cursos regulares da educação básica (pré-escola, ensino fundamental, ensino médio) e educação superior explorados pela iniciativa privada por meio de empresas com fins lucrativos (ou seja, essa reflexão não se aplica a cursos de idiomas, de esportes e de outras habilidades, tampouco a escolas mantidas em clubes, associações ONGs, etc.).
quinta-feira, 9 de abril de 2020

A adoção profilática da quarentena, inicialmente voluntária e paulatinamente imposta pela administração pública, tem causado inúmeros impactos à sociedade civil, com severas consequências econômicas a todos os segmentos da economia. Nesse momento surge uma relevante (e legítima) preocupação com as consequências que a pandemia causará nas relações jurídicas já estabelecidas, dentre as quais os contratos educacionais.
A reflexão que faremos nesse artigo contempla especificamente os impactos que o covid-19 causará nos contratos de educação tendo em vista a preocupação dos estabelecimentos de ensino (em verem minguadas suas receitas vis a vis as obrigações de pagar funcionários, locações, segurança, seguros, etc.) e de suas contrapartes (pais e estudantes que amargam a perda de empregos ou redução de sua renda como consequência incontestável da desaceleração econômica experimentada nesse período).
Ministrando aula em diversas disciplinas de direito, notamos que existe uma grande compaixão com estabelecimentos escolares, quiçá pelo fato de serem extensões dos lares na formação das crianças, o que desencadeia  um comportamento fraternal baseado na preocupação com a capacidade (ou não) de estabelecimentos de ensino pagarem suas folhas de pagamento durante a crise, como se a escola não fosse um empreendimento explorado por empresários que exploram a mão de obra e que cobram pelos serviços prestados no ensejo de auferirem a mais valia, que embolsam mensalmente. O que pretendemos dizer com isso é que o estabelecimento escolar não é diferente dos demais empreendimentos que têm folhas de pagamento, tributos, contratos, credores e devedores e que, em momento de crise, devem contar com a gestão de seus proprietários mas não com a benevolência de seus clientes que não são responsáveis pelas obrigações da escola, tampouco titulares dos lucros da mesma. 
O correto enquadramento jurídico do tema dependerá da natureza do curso ministrado/contratado. A presente reflexão se pauta tão somente sobre cursos regulares da educação básica (pré-escola, ensino fundamental, ensino médio) e educação superior explorados pela iniciativa privada por meio de empresas com fins lucrativos (ou seja, essa reflexão não se aplica a cursos de idiomas, de esportes e de outras habilidades, tampouco a escolas mantidas em clubes, associações ONGs, etc.).
Lei de Diretrizes Básicas da Educação, 9.394 de 20.12.96 dispõe no art. 6º, que “é dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula das crianças na educação básica a partir dos 4 (quatro) anos de idade”, em absoluta sintonia com o art. 208, I da Constituição Federal. Já o art. 30 da LDB esclarece que a educação infantil será oferecida em creches (ou entidades equivalentes) para crianças de até 3 anos e 11 meses e em pré-escolas para crianças de 4 a 5 anos de idade. Já o art. 32 disciplina que o Ensino Fundamental se inicia aos 6 anos de idade.
Como se percebe, a educação infantil passa a ser obrigatória aos 4 anos de idade, razão pela qual a matrícula de crianças menores que 4 anos em creches (ou estabelecimentos congêneres) pode ser realizada a qualquer momento do ano, sem prejuízo ao conteúdo programático, pois inexistente um currículo obrigatório nessa etapa escolar que expõe as crianças a vivências e experiências. Como bem destacado pelo Ministério da Educação1, a exigência de cumprimento mínimo de 800 horas anuais na Educação Infantil se inicia na pré-escola e não na etapa que a antecede, disponível a crianças de até 3 anos e 11 meses.
A partir da pré-escola (de frequência obrigatória para as crianças de 4 a 5 anos de idade, quando o curso a ser oferecido passa a seguir diretrizes rígidas estabelecidas pela legislação ordinária e pela autorregulação do Ministério da Educação, das Secretarias Estaduais e Municipais de Educação – o que inclui a observância de pelo menos 800 horas anuais divididas por no mínimo 200 dias letivosé que os estabelecimentos de ensino passam a se obrigar (contratualmente) perante os pais/crianças e demais órgãos de ensino a ministrar todo o conteúdo curricular de dado curso em certo ano-calendário.
Isto posto, a eclosão de uma pandemia que imponha severas restrições – tais como a quarentena – não desobriga o estabelecimento escolar que se dedique às fases escolares a partir da pré-escola a se reorganizar de forma a concluir o curso ofertado e o conteúdo programático, por mais que o faça com o uso de recursos tecnológicos de toda ordem (mediante ensino à distância, empregando ferramentas disponíveis via internet, desde que permitido pelos órgãos de gestão da educação) ou com o ajuste da carga-horária do curso - a partir da cessação dos efeitos da quarentena - conforme as diretrizes dos órgãos de ensino (Secretarias de Ensino e Ministério da Educação), observado o necessário reequilíbrio contratual no tocante a contraprestação. Vale salientar que oferecendo o estabelecimento escolar a opção de continuidade do curso (ou de parte dele) para fruição à distância, os gastos do estabelecimento de ensino possivelmente serão menores, além de os alunos não mais disporem de espaços diferenciados (como bibliotecas, quadras poliesportivas, laboratórios, teatros, salas temáticas e de toda a infraestrutura de pessoal e apoio físico que regularmente teriam) o que deverá impactar, em contrapartida, num desembolso menor pelo contratante – sendo legitimas as revisões contratuais, nesse caso, com base no art. 6, inciso V, do CDC
Reforce-se que os contratos de prestação educacional a partir da pré-escola preveem conteúdo programático pré-determinado, prestado em espaço físico delimitado, com certo número de profissionais envolvidos e demais características que justificam valor específico para contraprestação. Assim, ainda que usualmente divida-se o valor total do negócio jurídico em 12 ou até 13 parcelas iguais e sucessivas, não há vinculação de determinado mês com especificas atividades. Portanto, a readequação do contrato outrora firmado deve incidir sobre o valor total do contrato e não estar atrelado ao desembolso pré-determinado para um mês ou outro em que se estabeleça a prestação dos serviços por meio diverso ao combinado originariamente, independentemente da situação de força maior, dada a impossibilidade de se transferir ao contratante os riscos do negócio explorado pelo contratado.
Tratamento absolutamente diverso é verificado nos contratos estabelecidos para o curso de etapas escolares anteriores à pré-escola, pois nesse momento escolar (para crianças de zero a três anos e onze meses de idade), a creche (ou berçário, maternal, kindergarten ou congênere) oferece às crianças experiências e vivências que podem ser aderidas a qualquer momento do ano – o que demonstra não haver um conteúdo programático indispensável, tampouco obrigatoriedade para que o curso preencha 800 horas anuais. De outra banda, um bebê com 8 meses que ingresse na creche em outubro deverá cumprir 800 horas até o final do referido ano letivo? Não nos parece ser a melhor interpretação.
Bem por isso, estabelecimentos de ensino que atendam crianças de até três anos e onze meses, ainda que disponham, em seus contratos, sobre valores anuais do curso, tal disposição deve ser interpretada como meramente ilustrativa para quem ingresse na escola no primeiro momento do ano. Parece, portanto, errônea a forma de cobrança (e aqui sem qualquer relação com a pandemia), pois o estabelecimento escolar, nesse cenário, não vende um curso a ser ministrado no ano, mas sim experiências e vivências para serem desenvolvidos em cada momento do ano (semana, mês, bimestre e assim por diante). Logo, a contraprestação devida ao respectivo estabelecimento escolar guarda estreita relação com o período efetivamente usufruído, o que, ao nosso ver, impediria tais estabelecimentos de ensino cobrarem por períodos nos quais não houve prestação (como eventuais férias de julho e outros períodos sem aula). O mais correto, portanto, seria o respectivo contrato prever o valor da mensalidade para as crianças de até 3 anos e 11 meses.
Em breve síntese, o que acima esposamos é que os estabelecimentos escolares de frequência obrigatória (a partir de 4 anos de idade) vendem a ministração de uma etapa escolar com regras e conteúdo curricular obrigatório, além de outras peculiaridades que os distinguem entre si (espaço físico, capacitação profissional e etc.), razão pela qual a interrupção das atividades escolares por dado tempo nem os impede de cumprir o conteúdo (realizando ajustes nos horários/métodos de ensino), tampouco desobriga o pagamento da contraprestação pelos contratantes (que, na realidade, parcelaram o valor do curso a ser concluído durante o ano) ainda que mostre-se admissível a repactuação do valor a ser pago, nas hipóteses de desequilíbrio do contrato de adesão – o que parece imprescindível em tempos de ensino à distância, ante a redução do custo e disponibilidade de serviços contratados originariamente; já os estabelecimentos escolares cuja frequência é voluntária (creches para crianças de 0 a 3 anos e 11 meses), vendem a prestação de um serviço mensal baseado na oferta de experiências e vivências, sem obrigação de “entregar/concluir” um certo curso ao longo do ano, razão pela qual o pagamento que se realiza está intimamente ligado à contrapartida (vivências/experiências) ofertadas no período remunerado, relação sinalagmática por definição. 
Pois bem. Dispõe o Código Civil, no art. 884 sobre a disciplina do enriquecimento sem causa e, nesse sentido, estipula que “aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários”. No art. 885, o Código Civil complementa indicando que “a restituição é devida, não só quando não tenha havido causa que justifique o enriquecimento, mas também se esta deixou de existir”.
O legislador deixou bastante claro que, uma vez deixando de existir a justa causa para dada remuneração (no caso em exame, a prestação de um serviço), essa contrapartida não mais poderá ser exigida sob pena de quem a receber ficar obrigado a restituí-la com atualização monetária. No caso em exame, a imposição da quarentena torna inexigíveis as cobranças pela prestação de serviços educacionais desempenhados em creches (para crianças de 0 a 3 anos e 11 meses), mas não dos demais contratos celebrados para a pré-escola, ensino fundamental e ensino médio (ainda que passível de revisão contratual). Isso porque no caso das creches: (I) a escola não “vende” um curso a ser ministrado durante o ano letivo, mas sim experiências e vivências desvinculadas de uma grade curricular a serem ofertadas mensalmente, e (II) uma posterior ampliação do horário escolar para a compensação do período não cursado por crianças de 0 a 3 anos de 11 meses pode não ser possível (já que o tempo máximo permitido no ambiente escolar é de 10 horas diárias) ou mesmo desejada pelos pais/contratantes.
Convém frisar, também, que sobre o caso fortuito (evento imprevisível, mas evitável) e a força maior (evento previsível, mas inevitável) o art. 393 do Código Civil dispõe que “o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado”. No contato de prestação de serviços educacionais, enquanto o estabelecimento de ensino é devedor da obrigação de ministrar o curso, os contratantes são devedores da contrapartida. O que a lei dispôs, nesse sentido, é que cada parte não deve ser responsabilizada por prejuízos que a outra tenha auferido com o caso fortuito ou a força maior.
Com relação aos contratos celebrados para a pré-escola, ensino fundamental e ensino médio, vemos possível a aplicação do art. 6º, inciso V do Código de Defesa do Consumidor, pelo qual se reconhece como direitos básicos do consumidor “a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas”. Não há dúvida que a pandemia do covid-19 impactou reduzindo produtividade e causando inevitáveis perdas às rendas familiares ao passo que o fechamento temporário de escolas causará alguma redução das despesas às escolas (como energia, água, manutenções, transporte de funcionários, refeições a funcionários, uso de materiais escolares básicos, etc.). Assim sendo, inevitável cogitar, nesse caso (pré-escola, ensino fundamental e ensino médio) a possível revisão do contrato para reestabelecer um reequilíbrio.
A disciplina legal aplicável aos contratos escolares para crianças de 0 a 3 anos e 11 meses seria o da resolução por onerosidade excessiva, baseado na teoria da imprevisão, com fundamento no art. 478 do Código Civil, segundo o qual “nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato”. Nesse caso, entendemos que justamente em razão de a escola não vender um “curso” (a ser concluído em dado ano-calendário), mas sim “experiências e vivências” a serem desenvolvidas sem vinculação a um conteúdo programático de currículo obrigatório, o que justifica interpretar que a contrapartida paga pelos pais corresponde ao serviço prestado pela escola, como já dissemos, em típica relação sinalagmática (ou seja, há íntima e indissociável relação entre a prestação e a contraprestação). Isto posto, ainda que por um acontecimento extraordinário e imprevisível, a escola tenha sido impactada na possibilidade de ofertar as vivências e experiências à criança e por mais que não exista culpa da escola nesse caso, entendemos que a lei permite aos pais a decisão de resolver o contrato independentemente de multas, observado que essa resolução poderá ser evitada desde que o prestador de serviços (escola) se ofereça a modificar equitativamente as condições do contrato, como descreve o art. 479 do Código Civil e contanto que a contraparte concorde com a proposta de modificação contratual equitativa, observado que nesse caso (creches) não haveria a possibilidade de substituição das atividades intramuros por orientações online pelo fato de se tratar, no caso, de transferência dos deveres da própria escola para a execução pelos contratantes (pais) mediante orientação online – situação bastante dissociada da função do ensino à distância para crianças em grau mais avançado de ensino.
Enfim, independentemente da possibilidade ou não de resolução do contrato ou de sua revisão para reestabelecer um equilíbrio (nem que seja temporário, durante o incerto tempo que a quarentena perdurará), a solução consensual sempre deve ser estimulada, evitando a escalada de litígios (o que sobrecarregará o judiciário e implicará em soluções que, no mais das vezes, podem não agradar a nenhuma das partes).
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*Alberto Gentil de Almeida Pedroso é juiz de direito, mestre, professor universitário, autor de obras jurídicas. 
*Arthur Zeger é advogado, mestre, professor universitário, sócio da banca Zeger Advocacia.