No informativo
Migalhas de 25/3/13, os advogados Cristianne Saccab Zarzur Chaccur,
Vania Marques Ribeiro Moyano e Marcos Pajolla Garrido, de Pinheiro Neto
Advogados, assinaram interessante e bem redigido texto a respeito da não incidência do art. 1.147 do CC/02
– que prevê a obrigação de não concorrência, por cinco anos, para o
alienante de estabelecimento – nos contratos de venda de empresas. Para
alcançar a referida conclusão, os autores do artigo enfatizaram a
necessidade de tutela à liberdade contratual e defenderam uma
intepretação literal e restritiva da norma em questão.
Pretendendo
contribuir para o debate, passamos a expor algumas considerações a
respeito desse tema, sugerindo a possibilidade de aplicação do
mencionado art. 1.147 do CC/02, quando menos, em algumas hipóteses de
alienação societária.
Como se sabe, a
concepção de que a norma jurídica não pode ser interpretada de forma
isolada acompanha o pensamento jurídico há várias décadas. Bobbio já
falava da "necessidade em que se encontra o teórico geral do
direito, a um certo ponto da pesquisa, de deixar a norma singular pelo
ordenamento", arrematando, em seguida, que, "para haver direito, é preciso haver, em maior ou menor medida, uma organização, ou seja, um sistema normativo completo"1.
Nesse sentido, o
art. 1.147 do CC/02 não deve ter o seu sentido normativo compreendido a
partir de uma intepretação isolada. O seu exato alcance somente poderá
ser extraído de uma análise sistêmica da norma, sobretudo na perspectiva
dos demais regramentos constantes da própria legislação civil.
Em tal contexto,
assume particular relevância – para a exata compreensão do dispositivo
legal em referência – o postulado da boa-fé objetiva, positivado no art.
422 do CC/02. O elemento central em que reside esse princípio consiste
na confiança recíproca. No âmbito da relação obrigacional ou contratual,
cada uma das partes deve comportar-se de modo a não iludir
indevidamente a outra ou frustrar as legítimas expectativas e os
interesses do outro contratante quando à execução do contrato e tudo que
o cerca2.
A propósito da precisa compreensão desse princípio, a 2ª turma do STJ teve a oportunidade de enfatizar que "A
boa-fé objetiva é instituto fundado nos parâmetros de conduta que se
podem esperar dos participantes de uma relação jurídica com base em
critérios de colaboração, transparência e legítima expectativa"3, alertando, em outro julgamento, que o postulado "sujeita
ambos os contratantes à recíproca cooperação a fim de alcançar o efeito
prático que justifica a própria existência do contrato"4.
Desse modo, a
partir da incidência da boa-fé objetiva no âmbito das relações
contratuais, torna-se necessário reconhecer que se espera das partes uma
elevada postura ética no cumprimento de suas obrigações, sendo
necessário admitir, ainda, que os deveres emanados do vínculo jurídico
firmado entre os contratantes projetam-se para o período posterior à
execução do contrato. Trata-se, no caso, da responsabilidade
pós-contratual, que impõe a observância de certas obrigações em
benefício da válida expectativa depositada por cada uma das partes na
conduta do outro contratante5.
É justamente
nessa perspectiva, de aplicação da boa-fé objetiva e do surgimento de
deveres acessórios de conduta que sobrevivem ao encerramento do
contrato, que se deve compreender o art. 1.147 do CC/02 e analisar o seu
alcance normativo, permitindo-se a incidência desse dispositivo em
determinados negócios de alienação empresarial.
Por exemplo,
tratando-se de uma pequena sociedade, com atuação local, parece
absolutamente imprescindível que o vendedor esteja submetido à proibição
de não concorrência em benefício do adquirente. O alienante conhece o
negócio, os seus clientes e a realidade da região onde opera. Poderá,
com relativa facilidade, montar um novo empreendimento e competir com a
sua antiga empresa. Tal situação frustrará, em claro desrespeito ao
princípio da boa-fé objetiva, a legítima expectativa do comprador quanto
à realidade do negócio por ele adquirido, envolvendo uma conduta
antiética por parte do vendedor.
Em tal hipótese –
e em tantas outras nas quais a concorrência do vendedor da empresa
revelar-se fática e economicamente viável e estiver completamente alheia
ao rol de expectativas do comprador –, é preciso reconhecer que uma
compreensão sistêmica do princípio da boa-fé objetiva e do art. 1.147 do
CC/02 conduzem à conclusão de que o alienante do negócio também está
submetido à cláusula normativa de não concorrência, ainda que não haja
previsão expressa a esse respeito no referido dispositivo legal ou no
próprio contrato firmado entre as partes.
Admite-se que
efetivamente há hipóteses, e nesse caso persiste a bem lançada tese do
artigo anteriormente veiculado nesse informativo, em que a alienação de
determinada sociedade não justifica a incidência da proibição de
concorrência. Trata-se daqueles casos em que não se mostra
economicamente viável a competição por parte do alienante ou, ainda que o
seja, ela se insere dentro da sua liberdade de iniciativa. Normalmente
cuida-se das situações de venda de participações em médias e grandes
corporações, nas quais o vendedor não disporá de qualquer vantagem
competitiva sobre o comprador caso pretenda se estabelecer no mesmo ramo
de negócio. Em um caso como esse, não parece haver uma conduta desleal
ou improba a ponto de justificar-se a incidência da cláusula da boa-fé
objetiva e da proibição constante do art. 1.147 do CC/02.
Em suma, não se pode
peremptoriamente afastar a incidência do referido art. 1.147 do CC/02 do
âmbito das alienações de empresas. A aplicação do princípio da boa-fé
objetiva recomenda que se analise essa questão caso a caso. Em
determinadas situações certamente a vedação à não concorrência pelo
prazo de cinco anos é medida normativa que deve incidir, pois se cuida
de uma hipótese que se insere no âmbito das legítimas expectativas
incutidas no vendedor e extrai validade dos parâmetros de lealdade e
probidade que devem pautar a conduta dos contratantes em geral.
Marcelo Cama Proença Fernandes é advogado do escritório Proença Fernandes Advogados.
http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI176027,71043-A+clausula+de+nao+concorrencia+e+a+boa-fe+objetiva