sábado, 10 de maio de 2014

A torcida pelo fracasso da Copa do Mundo e o valor dos contratos

A torcida pelo fracasso no Brasil é quase uma instituição nacional. É impressionante observar a quantidade de pessoas no país torcendo para que a Copa do Mundo resulte num retumbante fracasso, sem levar em consideração que o Brasil está inserido numa ordem mundial e o fracasso deste tipo de evento fatalmente irá comprometer o prestígio do país por muito tempo.
Sucesso e fracasso tem pesos diferentes na cultura dos povos. Países como os Estados Unidos cultuam o sucesso como doutrina. O americano médio tem orgulho por seu país liderar o mundo e ama pessoas bem sucedidas porque elas representam a força do país. O termo “loser” (perdedor) nos Estados Unidos é uma grave ofensa pessoal. No Brasil, ao contrário, temos o hábito de desconfiar do sucesso como se este fosse resultado de atividades escusas, espertezas ou sorte. A crença no preparo, na inteligência, na boa fé, na perseverança e na honestidade é frágil.
Temos um Estado que parece odiar quem empreende e cria todos os obstáculos possíveis e imagináveis para dificultar-lhe o sucesso. Uma imprensa que trabalha com a lógica que jornalismo de qualidade deve ser sempre de oposição, sempre crítico, sempre cáustico o que reforça a visão de que nada funciona e tudo está sempre errado. Quem busca se informar tem a impressão que o mundo esta permanentemente em crise, que a sociedade caminha à beira de um abismo de incúria e violência e que a economia irá sucumbir no próximo trimestre. Não está no DNA da imprensa dar boas notícias, mas a cultura do brasileiro de falta de compromisso com o bem público e a dificuldade de lidar com normas e regras ética e moralmente aceitáveis só fazem potencializar a visão negativa das coisas.
Empresários bem sucedidos no Brasil são vistos com desconfiança. Gente como um Steve Jobs ou um Jeff Bezos não seriam admirados nem exemplos por aqui. Prevaleceria uma visão distorcida de que são pessoas que se deram bem porque tinham um amigo no governo ou tiveram sorte e conseguiram uma mamata qualquer. Vemos com certo prazer a derrocada de um Eike Batista independente de sua história e do seu mérito e nem tomamos conhecimento de pessoas como Carlos Alberto Sicupira, Jorge Paulo Lemann ou Abilio Diniz.
Cientistas, pesquisadores, grandes profissionais, empreendedores bem sucedidos das mais diversas atividades são personagens periféricos e sem importância em nossa cultura. Somos o país da malandragem, não dos grandes feitos. Gostamos da Mulher Melancia com sua bunda e daquele atleta do nosso time favorito que sem ter o segundo grau completo conseguiu um contrato milionário com um clube europeu. Temos admiração por quem consegue algum sucesso pulando etapas como a da educação, por exemplo.

A cultura da malandragem e a responsabilidade objetiva

Não enxergamos mérito em nossos adversários, nada do que fazem merece nossa melhor avaliação. Não temos a coragem de ver mérito em nossos oponentes porque acreditamos que ter esta atitude é reconhecer que somos menores e menos capacitados. Falta-nos grandeza. Na política escolhemos os piores, os mais espertos, os malandros, os sem caráter, porque nos identificamos com estes personagens. Não importa que o sujeito esteja na lista da Interpol e condenado em toneladas de processos. Criminalizamos a política sem entender que estes personagens existem porque nós os elegemos, somos responsáveis por eles.
O brasileiro tem este lado negativo, mórbido de torcer para que algo não funcione porque acredita que não será ele quem usufruirá dos benefícios. A torcida para que os estádios não fiquem prontos, para que o planejamento falhe, para que os transportes não funcionem e todas as desgraças possíveis e imagináveis esta no subconsciente de muitos brasileiros de forma natural. Produzimos o “wishful thinking”, a professia autorrealizável, se todo mundo desejar a coisa toda se concretiza pela força do desejo. Não vencemos nossos oponentes oferecendo argumentos melhores ou um projeto superior, mas, por ação ou omissão, contribuindo para que fracassem. E quando acontece ocorre o que os alemães chamam de “Schadenfreud”, um grande prazer em ver a desgraça de quem não gostamos, sem saber que em nosso inconsciente o prazer pelo fracasso expõe nossa incapacidade em vencer, em acreditar no sucesso.
O pior é que não nos sentimos responsáveis como povo, responsabilidade significa comprometimento e no fundo fomos educados para transferir responsabilidades, descrer do mérito, do esforço, porque no fim tudo se ajeita, Deus provê. A malandragem é uma lógica aceitável. Fazemos discursos moralistas e éticos para nossos filhos e logo em seguida damos um golpezinho na conta do restaurante na frente deles. Somos incapazes de dizer ao garçom que ele se esqueceu de lançar na conta o suco de laranja que consumimos, afinal os caras também empurraram o couvert que não pedimos.
Gostamos de andar pelo acostamento, furar fila, sentar no banco exclusivo para gestantes no ônibus, estacionar na vaga de deficiente nos shoppings, passar no sinal vermelho, humilhar nossa empregada doméstica, adoramos uma indicação política e odiamos concursos. São muitos os exemplos que demonstram quanto esta mentalidade esta enraizada em nós.

Os contratos e o sistema de justiça

Vemos isto também no âmbito das corporações. Observe as grandes corporações no mercado brasileiro, como tratam seus clientes, como os enganam com cláusulas contratuais abusivas, promoções mandrake e atendimento de quinta categoria. Fingem observar as leis e os direitos dos consumidores, mas contam-se aos milhares os clientes com queixas absurdas de bancos, operadoras de telefonia, planos de saúde, companhias aéreas e assim por diante. Os contratos no Brasil são rigorosos nas responsabilidades do consumidor e flexíveis nos deveres das empresas. Nosso sistema de justiça foi construído para não funcionar. Temos uma justiça seletiva extremamente dura e inclemente quando julga cidadãos mais vulneráveis e omissa e leniente quando julga cidadãos do topo da pirâmide social. Como a justiça não funciona, os espertos sempre se dão bem logo ser esperto no Brasil é um meio de vida.
A generalização é sempre ruim porque nivela toda população pelo comportamento do que julgamos ser uma parcela, mas já vivi o suficiente neste país para entender que o silêncio dos que não compactuam com esta realidade é quase um endosso a ela. Afinal, quem defende coisas como mérito, responsabilidade, honestidade, senso de dever, compromisso com os contratos e com o país costuma fazer papel de tolo, de otário.

Complexo de vira-latas

Nelson Rodrigues cunhou o termo “complexo de vira-latas” para definir nossa baixa autoestima depois do fracasso na Copa de 1950 e em seguida para definir como o brasileiro se colocava diante do mundo. O tempo passou, a sociedade evoluiu, o país cresceu e Nelson Rodrigues continua mais atual do que nunca. Como povo continuamos um tanto vira-latas, afinal num país onde todos são espertos no fim acaba que somos todos otários. Daí torcer para que a Copa do Mundo não se realize, que tenhamos uma crise de energia em escala nacional e que o fornecimento de água em São Paulo seja racionado é tão simples quanto acreditar que os venais atuando como parlamentares no Congresso Nacional foram indicados pelo Presidente da Fifa.

José Tadeu Gobbi
Publicitário
Diretor Comercial da Valebravo Editorial S/A – Jornal O VALE

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As "pessoas-seta" e a dignidade humana (Flávio Tartuce)

Comecei a percebê-las aos domingos, quando dos meus passeios pelo parque da Aclimação, na Capital Paulista, para exercícios físicos matinais. Diante do boom imobiliário percebido no bairro onde moro e o surgimento de novos empreendimentos, as “pessoas-seta” ou “pessoas-placa” se multiplicaram pelos principais centros urbanos brasileiros. Pessoas paradas, imóveis como postes, indicando os locais onde as unidades podem ser adquiridas, os tão conhecidos stands de vendas de imóveis novos, ainda na planta.
Como tenho dito em aulas e exposições, os contratos de aquisição da casa própria no Brasil são verdadeiras arapucas contratuais, e a exposição dos produtos que estão sendo vendidos começa com uma violação à dignidade humana, qual seja, essa postificação da pessoa humana. Tenho utilizado a expressão destacada, pois a pessoa humana se transforma em um poste, em coisa imóvel visando a indicar um outro bem a ser comprado.
Como é notório, a Constituição Federal de 1988 utiliza a concepção kantiana de dignidade humana em seu art. , inciso III, a partir do imperativo categórico de que a pessoa humana é um ser racional que deve ser considerado sempre um fim em si mesmo. Em outras palavras, a pessoa humana não pode ser meio ou instrumento, o que parece ser desrespeitado pela contratação das “pessoas-seta”.
Conversei com algumas dessas pessoas, que recebem de 30 a 50 reais por dia de trabalho, por oito horas de imobilidade. O valor não inclui a alimentação, que deve ser providenciada por elas mesmas. E não se pode mostrar indisposição. A “pessoa seta” deve estar sempre sorrindo. Deve ser um poste feliz. Ao final dos trabalhos são recolhidas por uma Kombi, exaustas, cansadas, o que ocorre mesmo com os mais jovens.
Dia desses constatei que uma senhora, de idade avançada, providenciou uma cadeira para se sentar e segurar a seta. Perguntei a ela, a razão de estar sentada. Ela me disse que tinha sérios problemas nas costas, mas que os fiscais da empresa não poderiam vê-la naquela situação. Afinal de contas, o poste deve estar sempre ereto, em pé. Que situação degradante, penso eu, todos os domingos! Que flagrante desrespeito à Constituição Federal e a outras normas infraconstitucionais!
Tanto os civilistas quanto os constitucionalistas têm se dedicado, no Brasil e fora dele, ao estudo das situações contratuais de desrespeito aos direitos fundamentais. Cito, a propósito, os exemplos instigantes retirados da obra de J. J. Gomes Canotilho, ao analisar as concretizações da aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas, tema atinente à constitucionalização do Direito Privado. A propósito dessa aplicação, geradora do que se denomina como eficácia horizontal, leciona o jurista português que, “A Constituição de 1976 (CRP, artigo 18º/1) consagra a eficácia das normas consagradoras de direitos, liberdades, e garantias de direitos análogos na ordem jurídica privada. A doutrina alude a eficácia horizontal das normas garantidoras de direitos, liberdades e garantias (a juspublicista alemã utiliza o termo Drittwirkung)” (GOMES CANOTILHO, J. J. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. Ed. 3. Tir. Coimbra: Almedina, [s/d], p. 448). No caso brasileiro, tal eficácia está justificada pelo art. , § 1º, da Constituição de 1988, segundo o qual as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata em qualquer tipo de relação jurídica, seja entre o Estado e o particular ou mesmo entre particulares, justificando-se, na última relação, o termo eficácia horizontal.
Partindo para as hipóteses elencadas, Canotilho cita os seguintes casos, com especial aplicação contratual: a) uma indústria celebra contratos de trabalho em que os empregados renunciam a qualquer atividade sindical; b) um colégio contrata uma professora para os seus quadros, constando uma cláusula de celibato, sob pena de rescisão do negócio jurídico; c) uma empresa de informática contrata duas mulheres para os seus serviços, condicionando a manutenção do contrato de trabalho à não-gravidez dessas mulheres (cláusula de não-engravidar); e d) entidades patronais e sindicatos celebram um contrato coletivo de trabalho com a cláusula closed-shop, que veda a contratação de empregados não sindicalizados (GOMES CANOTILHO, J. J. Direito constitucional e teoria da Constituição, cit., p. 1285-1286).
Ora, pela legislação brasileira, todos os exemplos parecem conduzir à nulidade absoluta das cláusulas e até dos contratos –, caso não seja possível apenas retirar a cláusula ferida pela invalidade –, por lesão à dignidade humana, a direitos da personalidade e à função social dos contratos, estampada como princípio de ordem pública nos arts. 421 e 2.035, parágrafo único, do Código Civil Brasileiro. A cláusula de celibato e a cláusula de não-engravidar esbarram no direito à constituição de uma família, base da sociedade, nos termos do art. 226 da Constituição da República Brasileira; sem falar na proteção da mulher trabalhadora, elencada pelo art. , inc. XX, da mesma CF/1988. Renunciar à atividade sindical entra em conflito com o art. 8º do Texto Maior, pelo qual é livre a associação profissional ou sindical. O mesmo deve ser dito em relação a cláusulas closed-shop, não sendo possível impor o direito de sindicalização, que seria transformado em um dever. Em reforço, vale lembrar a dicção do art. 5º, inc. XVII, da Norma Fundamental Brasileira, ao enunciar que é plena a liberdade de associação para fins lícitos.
As premissas teóricas expostas servem igualmente para se declarar a nulidade absoluta dos contratos celebrados com as “pessoas-seta”. Na verdade, tais contratos não deveriam existir, pela clara ilicitude de seus conteúdos. Espera-se que as autoridades competentes acabem com essa prática no Brasil. Como dito, os contratos de aquisição financiada de imóveis no País violam direitos civis e fundamentais desde a sua pré-contratação. Quanto ao contrato em si, pelas várias abusividade presentes, tratarei em outro artigo, a ser desenvolvido no futuro.

Fonte: http://atualidadesdodireito.com.br/flaviotartuce/2014/05/08/artigo-as-pessoas-setaea-dignidade-hum...