quinta-feira, 8 de julho de 2021

Tios são reconhecidos como pais socioafetivos e garantem guarda compartilhada da menina com genitor

 08/07/2021

Fonte: Assessoria de Comunicação do IBDFAM
imagem por cottonbro no Pexels

A Justiça do Espírito Santo julgou procedente o pedido de reconhecimento de socioafetividade e determinou que uma menina de 8 anos continue morando com os pais socioafetivos, tios dela, em vez do pai biológico. A decisão da 4ª Vara de Família de Vila Velha fixou a guarda compartilhada e o regime de convivência com o genitor, determinando também a retificação do registro civil da menina para que conste a multiparentalidade.

Desde a morte da mãe biológica, em 2013, a criança, então aos três meses de idade, ficou sob cuidados do irmão da falecida e da esposa deste. Naquele mesmo ano, o casal teve a guarda concedida na Justiça. Na ocasião, a menina havia sido registrada apenas pela genitora e, de acordo com os pais socioafetivos, nunca teve contato com o pai biológico.

Este, por sua vez, pleiteou a investigação de paternidade e a guarda da filha. O homem alegou, em contestação à reconvenção, que não se aproximou da filha por não ter o endereço do tio da menina. Morando em outra cidade, afirmou ainda reunir condições para ter a criança em sua companhia ao pedir fixação da residência consigo.

Em sua decisão, a juíza responsável pelo caso ressaltou que o ordenamento jurídico vigente valoriza a socioafetividade. Considerou a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – STF, que em repercussão geral fixou a Tese 622: "A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios".

Com base em testemunhos, observou que a criança nutre pelos tios o sentimento de filha e sabe, também, ser filha biológica do autor da ação. Por isso, a magistrada entendeu, com base no princípio do melhor interesse da criança, que os nomes deles também devem constar no registro civil como pais da menina, sem prejuízo da ascendência biológica.

Guarda compartilhada e convivência

Sobre a disputa de guarda, a juíza capixaba observou que a fixação da guarda unilateral só deve ser estabelecida em casos extremos, ao passo que “a distância física não é capaz de inviabilizar o compartilhamento do cuidado com a criança”. Atualmente, a família e o pai biológico vivem em cidades diferentes.

“Assim, tendo em vista que, tanto o pai biológico quanto os pais socioafetivos, possuem condições de gerir a vida da menor, não existindo nada que justifique a aplicação da guarda unilateral, estabeleço a guarda compartilhada entre pai biológico e os pais socioafetivos”, diz trecho da decisão.

A base de moradia da criança foi fixada com os pais socioafetivos, considerando o pouco contato do pai biológico com a infante. “Não é salutar para a menina retirá-la do convívio diário de seus pais socioafetivos com o objetivo de transferir sua moradia para uma cidade distante, à qual não está acostumada a viver”, destacou a magistrada.

A convivência estabelecida com o genitor é referente ao período de férias, aos fins de semana em que ele estiver na cidade de domicílio da filha e aos feriados e datas comemorativas especificados na decisão. Já o aniversário será desfrutado de forma alternada.

Consonância com o atual Direito das Famílias

A advogada Ana Paula Protzner Morbeck, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, atuou no caso representando os pais socioafetivos. Ela destaca que a sentença reconhecendo a multiparentalidade foi proferida após realização de estudos sociais e instrução processual.

Para Ana Paula, o entendimento da juíza vai ao encontro de valores contemporâneos do ordenamento jurídico brasileiro. “A decisão está em total consonância com o atual Direito das Famílias justamente por valorizar os laços de afeto, sem desconsiderar o vínculo biológico e o direito do genitor”, comenta.

Segundo a advogada, a decisão valorizou a afetividade. “[Na Repercussão Geral 622, citada na decisão], o STF se posicionou sobre a prevalência da paternidade socioafetiva em detrimento da paternidade biológica. O Direito das Famílias vem se transformando ao longo do tempo, tomando novos formatos e novos contornos, sendo a multiparentalidade a expressão máxima dessa afirmação”, diz Ana Paula.

“A decisão proferida pela magistrada capixaba não só valorizou a multiparentalidade como buscou ainda manter os diversos vínculos da criança, tanto o biológico como o socioafetivo, com o estabelecimento da guarda compartilhada, ainda que a residência da criança seja fixada junto aos pais afetivos, dispondo ao pai biológico regime de convívio. Ou seja, vários institutos em prol do melhor interesse da menor e da manutenção dos afetos”, conclui a advogada.

Leia a íntegra da decisão no Banco de Jurisprudência do IBDFAM (exclusivo para associados).


Atendimento à imprensa: ascom@ibdfam.org.br

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A autonomia privada no direito de família e das sucessões

 Mariana Teixeira

Em uma concepção mais moderna do instituto, o pacto antenupcial, a depender do objetivo dos nubentes, não poderia servir como um instrumento de planejamento sucessório?

quinta-feira, 8 de julho de 2021


(Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

A expressão "autonomia" vem do grego auto + nomos e significa independência, autodeterminação, aquilo que é regido por leis próprias. Nas lições de Carlos Alberto da Mota, a autonomia é a essência do direito civil, ramo responsável por reger as relações contratuais, e deve ser compreendida como o poder de compor, conjuntamente ou por ato unilateral, interesses próprios.1

Essa ideia de soberania da autonomia da vontade vigorou no ordenamento jurídico até o final do século XVII. Todavia, após a Revolução Industrial, com o aprimoramento dos contratos de adesão, a doutrina da soberania da vontade livre passou a ser questionada ante o desequilíbrio contratual que impregnara as relações econômicas por meio dos contratos de adesão.

Nesse contexto, a autonomia, antes da vontade, passa a tomar nova feição, ao intitular-se de privada. Assim, contemporaneamente, os sujeitos possuem certa independência e poder de autorregulação, desde que dentro das fronteiras do interesse público.

Da mesma forma, essa autonomia privada, mola propulsora das relações particulares, também passou a ser aplicada na esfera familiar. O pacto antenupcial e a possibilidade de alteração do regime de bens pelos cônjuges depois da celebração do casamento são ótimos exemplos da preservação da autonomia privada nas relações familiares.

O pacto antenupcial, objeto de reflexão do presente ensaio, é uma das marcas mais fortes desse poder que os particulares têm de regular, pelo exercício de sua própria vontade, as relações familiares, pois tem por intuito justamente possibilitar aos nubentes a escolha da norma mais apropriada às suas expectativas matrimoniais.

Consiste questão problemática, no entanto, investigar até que ponto predomina a autonomia da vontade no direito de família e no direito sucessório. Por exemplo, os nubentes podem, além de escolher o regime que lhes aprouver, incluir cláusulas relativas à manifestação de vontade de direitos hereditários futuros? E mais: é possível que os nubentes renunciem ao direito concorrencial de herança um do outro?

Segundo a doutrina alemã, possibilitar a liberdade negocial e o poder de autodeterminação aos nubentes faz parte da própria essência dos pactos antenupciais, e colocar limites na escolha do regime de bens e na distribuição dos encargos bilaterais implicaria a inviabilização de tão importante instrumento nas relações familiares.2

Pondera-se, no entanto, que essa autonomia da vontade não pode ser ilimitada ao ponto de possibilitar cláusulas que contrariem a lei, os costumes, a ordem pública, ou possam prejudicar direitos maternos, paternos ou conjugais. Logo, o pacto antenupcial deve, exclusivamente, restringir-se às relações econômicas dos nubentes.3

Quanto a essa assertiva, cabem algumas considerações. Sabe-se que o pacto antenupcial não pode contrariar a lei, até porque eles são regidos pelas regras do Código Civil, que estabelece como requisito de validade dos negócios jurídicos em geral a licitude do objeto; mas quais dispositivos legais estariam aptos a impor-lhe limitações?

Em uma concepção mais moderna do instituto, o pacto antenupcial, a depender do objetivo dos nubentes, não poderia servir como um instrumento de planejamento sucessório?

Conforme já visto, o ordenamento jurídico atual consagra a mínima intervenção estatal sobre as relações familiares. Por outro lado, no âmbito do direito sucessório, essa autonomia é mais limitada, haja vista que ela se faz presente somente no instituto da renúncia de herança (desde que a sucessão já esteja aberta) ou do legado familiar.

Na verdade, vigora um verdadeiro e inexplicável dogma da máxima proibição de contratos, cujo objeto seja a herança de pessoa viva, também conhecidos como "pacta corvina", conforme expressa disposição legal contida no art. 426 do Código Civil, que já constava ipsis litteris, do art. 1.089 do Código Civil de 1916.4

Logo, sob as lentes do art. 426 do Código Civil e da doutrina majoritária, é vedado constar em pacto antenupcial qualquer cláusula sobre a herança dos cônjuges, seja para atribuir uma herança futura ao cônjuge supérstite sobre os bens particulares, seja para abdicar antecipadamente à herança oriunda da futura morte do consorte.

No entanto, a genérica proibição de pactos sucessórios nem sempre atende ao melhor direito. Há situações, por exemplo, em que os nubentes desejam renunciar à sucessão futura um do outro no pacto antenupcial, seja porque simplesmente não desejam concorrer com os filhos na herança do de cujus, seja porque não desejam causar confusão de patrimônio entre estirpes familiares distintas.

Como visto, o Código Civil permite a renúncia da herança efetivamente aberta, ao passo que, no contexto legal, consta expressa vedação à renúncia prévia, em pacto antenupcial, de qualquer direito sucessório por parte de cônjuges, embora os cônjuges possam renunciar a essa mesma herança tão logo se produza a morte do consorte.

Essa proibição, no entanto, não parece muito lógica. Essa é a linha do pensamento aqui desenvolvido.

Em primeiro lugar, essa restrição aos pactos sucessórios - e, consequentemente, à renúncia prévia de herança - decorre mais do pensamento de as disposições sucessórias serem contrárias aos bons costumes e causarem sentimentos "mórbidos" acerca da expectativa da morte de alguém para a concretização da vantagem patrimonial.

Em segundo lugar, basta imaginar a seguinte situação: duas pessoas que se casam pelo regime da absoluta separação de bens, logicamente, tem o inequívoco propósito de afastar a comunhão de bens. Isso porque, nessa hipótese de regime, não haverá confusão patrimonial que importe em meações quando da resolução do casamento dissolvido em vida, sendo provável que, a fortiori, os cônjuges desejem estender a independência de suas esferas patrimoniais na dissolução por morte.

Em terceiro lugar, a mera renúncia ao direito de concorrer com descendentes ou ascendentes quando da futura sucessão do parceiro não implicaria "contração" da herança de pessoa viva.

Importante aclarar que "herança" e "sucessão" são conceitualmente termos distintos. Sucessão é caracterizada pelo ato jurídico por meio do qual uma pessoa substitui outra falecida em seus direitos e obrigações, enquanto a herança refere-se ao acervo de bens transmitidos por ocasião da morte.

Dessa maneira, a interpretação do art. 426 do Código Civil deve ser feita, necessariamente, de forma restritiva, de modo a abranger apenas a proibição expressa de se contratar a herança de pessoa viva, isto é, de pactuar o acervo patrimonial de pessoa viva, mas não o direito sucessório futuro.

No atual Código Civil, não existe qualquer proibição à renúncia prévia de direitos hereditários futuros. Quando se trate de proibição à renúncia de direitos futuros, o legislador o faz de maneira expressa, por exemplo, quanto ao disposto no art. 566, que proíbe o doador de renunciar antecipadamente ao direito de revogar a doação por ingratidão.

Admitir a renúncia prévia ao direito concorrencial da herança conjugal em pacto antenupcial não configura ato imoral, e estender o regime da separação de bens para além da meação amplia a autonomia patrimonial e privada da família, ao afastar do planejamento sucessório um herdeiro concorrencial indesejado, sem contar que, na atual realidade social, isso pode ser feito sem a necessidade de alteração legislativa do art. 426; para tanto, basta que haja uma melhor interpretação do dispositivo legal, eis o que justamente propõe o presente ensaio.

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1 PINTO. Carlos Aberto da Mota. Teoria Geral do Direito Civil. 3.ed. Coimbra Editora, 1999, p. 42.
2 F. C. Pontes de Miranda. Tratado de Direito Privado - Parte Especial, Dissolução da Sociedade Conjugal e Eficácia Jurídica do Casamento. t. VIII. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 313.
3 M. H. Diniz. Curso de Direito Civil Brasileiro, v. V. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 173. Nesse sentido, v.d. C. A. D. Maluf. Curso de Direito de Família. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 243.
4 "Art. 426. Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva".

Atualizado em: 8/7/2021 10:15