Hoje,
em nosso terceiro e último encontro referente à série Usucapião
Tabular, abordaremos a modalidade do instituto introduzida pela lei
12.424, de 16 de junho de 2011, isto é, o usucapião tabular familiar. A
começar pelo nome, não existe, de fato, um consenso sobre o mais
adequado, o prof. Flávio Tartuce prefere denominar "usucapião especial
urbana por abandono do lar", primando pela didática a distinguir o rural
do urbano, já para destacar a origem do instituto, o Prof. José F.
Simão se refere a "usucapião familiar", denominaremos Tabular, uma vez
que seu grande objetivo é retificar a tábula registral.
O usucapião
tabular familiar é uma forma de aquisição da propriedade de imóvel em
condomínio, por ex-cônjuge ou ex-companheiro que tenha sido abandonado
pelo outro em seu lar. Para tanto, basta a concretização da posse
exclusiva por um biênio ininterrupto e inconteste em imóvel nos padrões
do usucapião constitucional urbano. Preenchido tais requisitos, é
conferida a propriedade exclusiva ao ex-cônjuge ou ex-companheiro
abandonado. Neste sentido o artigo 1.240-A estabelece que: "aquele que exercer, por dois anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m2 cuja propriedade divida comex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural".
Resumindo, o
instituto possui como requisitos fundamentais: (i) propriedade comum
entre cônjuges ou companheiros, (ii) vínculo familiar, (iii) imóvel em
zona urbana ou zona de expansão urbana, regularizado por transcrição ou
por matrícula, com no máximo 250m2 de terreno ou área total de
condomínio edilício, (iv) com o intuito de derelição do bem, (v) posse
ininterrupta e inconteste por dois anos, (vi) moradia própria ou
familiar, (vii) propriedade única e, por fim, (viii) única proposição de
ação declaratória de usucapião tabular familiar, ou seja o beneficiário
não pode se valer da tutela por mais de uma vez, pois, o instituto se
dá apenas em condição especial e não resulta em regra com intuito
econômico, como menciona o prof. Tartuce.
Desse modo,
ocorre a regularização da matrícula que consta em um condomínio entre
cônjuges, companheiros hetero ou homoafetivos. Vale ressaltar que, como
uma modalidade de usucapião tabular, estamos nos referindo aqui também
ao usucapião de propriedade certa e conhecida, já previamente registrada
no CRI.
O objetivo da lei
de 2011 foi modificar a lei 11.977 de 7 de julho de 2009, que
disciplina o Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV), inserindo, para
tanto, o artigo 1.240-A ao Código Civil (lei 10.406, de janeiro de
2002), que aborda o usucapião tabular familiar. A nova modalidade visou
proteger particularmente aquele que abandonado pelo cônjuge ou
companheiro permaneceu no imóvel. Trata-se de hipótese pouco distinta do
artigo 1.242 (aquisição a "non domino"), que, no entanto, tutela
o mesmo bem jurídico, isto é, a veracidade da tábula registral. A
modalidade é ainda familiar, vez que opera somente no seio da família
(art. 226, CF).
O usucapião
familiar, tal como o usucapião tabular genérico, busca atender a questão
da regularização fundiária. Porém, nos referimos aqui a instituto mais
específico, pois se busca legalizar a permanência de famílias das áreas
urbanas ocupadas irregularmente para fins de moradia, além da promoção
de melhorias no ambiente urbano, bem como na qualidade de vida da
comunidade. Logo, incentiva o exercício da cidadania pela comunidade,
sujeito do projeto.
Nesse sentido, o
artigo 1.240-A somente atende a preceitos já constitucionalizados, como a
função social da terra (art. 5º, XXIII CF, o exercício de moradia (art.
6º, CF) e a proteção conferida ao núcleo social familiar (art. 226,
CF). Tudo em benefício do cidadão, portanto é digno de elogios.
O instituto
atende ainda à desburocratização dos procedimentos de composição de
conflitos familiares, dentro da perspectiva de simplificação que o
direito brasileiro adotou. Nesse sentido, como outros exemplos da
facilitação visada pelo legislador, hoje se permite a separação
extrajudicial, o divórcio direto e livre de prazos, desprovido da
exigibilidade de imputação de culpa ou responsabilização pelo término do
relacionamento. Cabe lembrar, que estas atualizações hoje consideradas
um grande avanço também foram questionadas no passado.
Logo, não é
possível alegar, que o usucapião familiar se constitui forma de
responsabilização pelo término da relação, ele não é causa, mas sim
efeito. O requisito do abandono do lar não possui qualquer correlação
com a discussão de culpa no divórcio ou na separação, como apontam. A
culpa não está sendo ressuscitada e não importa o motivo do cônjuge ou
companheiro que deixou o lar. Adotou-se o requisito abandono de lar
tendo em vista apenas fins possessórios, o juiz cível ou registral fará
uma aferição meramente possessória da questão. Caso, por exemplo, uma
mulher sob violência doméstica seja obrigada a "fugir" do lar conjugal
para evitar o agravamento do problema e tal situação seja verificável
ainda que incidentalmente não ensejará abandono, dada a ausência do
elemento subjetivo da derrelição, o que impedirá o usucapião.
Ademais o
exercício do direito de propriedade do ex-cônjuge ou companheiro não
pode se estender infinitamente, uma vez que o tempo exerce grande
influência no direito. Não parece situação normal, apesar de
corriqueira, que alguém que tenha o domínio regular de um bem possa,
levianamente, "deixar para lá" a propriedade, em uma verdadeira
"supressio", sem descumprir a função social (art. 5º, XXIII, CF).
O cônjuge que
teve o seu lar abandonado também não pode aguardar indefinidamente em
benefício do direito de propriedade daquele que se retirou, tal situação
geraria instabilidade social, ademais o bem ficaria injustificadamente
fora do comércio. O cônjuge residente jamais estaria seguro de seus
direitos, para, por exemplo, poder negociar seu imóvel, por meio de
doação, venda ou troca. A realidade cambiante possui influência efetiva
na aquisição e na extinção de direitos. Por isso o decurso do tempo deve
ser eficaz na eliminação da relação jurídica cujo direito não foi
exercido, dentro da função sócio-econômica da propriedade como manda a
Constituição Federal (art. 170, II, III, CF).
Portanto, o
instituto somente preza pela realização e operabilidade de direitos já
positivados. À maneira de Jhering, é da essência do direito a sua
realizabilidade, o direito é feito para ser executado e, o que não se executa é como chama que não aquece e luz que não ilumina1.
Ademais, como
meniona a doutrina, a diminuição do prazo é fruto da modernidade, já que
é vetor constitucional a circulação de riquezas. Portanto, o instituto
do usucapião familiar também se fundamenta na paz social e na
tranquilidade da ordem jurídica.
O usucapião
familiar se mostra útil à estabilidade e à consolidação dos direitos do
residente no imóvel. Ainda nesse contexto, se apresenta como meio para
evitar que o ex-cônjuge ou o ex-companheiro desapareça e inviabilize a
alienação do imóvel pelo remanescente, por exemplo.
Como modalidade
de usucapião, aqui também se aplica a teoria da aparência, recepcionada
no código civil de 2002. A aparência deve coincidir com a realidade do
registro, resguardando o princípio da dignidade humana no amplo limite
da inserção social. Nesse sentido, temos que "se a dignidade da
pessoa humana visa a estabelecer uma igualdade de direitos e obrigações
para todos os homens, e se também visa a proteger os direitos
inalienáveis do homem inclusive os de ordem privada, é da ordem do dia a
proteção das relações aparentes"2.
Assim, a tábula registral é retificada no intuito de que o condômino,
possuidor exclusivo, possa extirpar o nome do ex-cônjuge ou
ex-companheira que conste no registro, garantindo, a propriedade
exclusiva, prevista pelo artigo 1.231 do código civil.
Por todo o
exposto, conclui-se que o instituto do usucapião tabular familiar é
digno de elogios, vez que além de meio eficaz para garantir a
propriedade do bem de família pelo cônjuge ou companheiro(a), funda-se
nos princípios da função social da propriedade, da confiança e da
segurança jurídica, inserido ainda no contexto brasileiro de
reestruturação fundiária. Por fim, temos como sua decorrência uma maior
circulação de bens e riquezas com segurança e celeridade.
Desse modo, chegamos ao
fim da série Usucapião Tabular, dentre sua origem, contexto histórico e
delimitação prática. Esperamos que tenhamos contribuído para aplicação
efetiva do Usucapião Tabular a fim de que não se torne letra morta no
Código Civil.
__________
1REALE, M. O projeto do novo código civil: situação após a aprovação pelo Senado Federal. São Paulo: Saraiva. 1999 (2 ed. reform. e atual ed.).
2KÜMPEL, V. F. Teoria da aparência no Código Civil de 2002. São Paulo: Método. 2007. p. 92.
2KÜMPEL, V. F. Teoria da aparência no Código Civil de 2002. São Paulo: Método. 2007. p. 92.
Vitor Frederico Kümpel é
juiz de Direito em São Paulo, doutor em Direito pela USP e coordenador
da pós-graduação em Direito Notarial e Registral Imobiliário na EPD -
Escola Paulista de Direito.
http://www.migalhas.com.br/Registralhas/98,MI194729,41046-Usucapiao+tabular+familiar+III