quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Autonomia privada e Direito de Família - Algumas reflexões atuais

 Autor: Flávio Tartuce | Data de publicação: 25/08/2021

As aplicações da autonomia privada ao Direito de Família estão novamente no cerne do debate neste momento, o que tem relação direta com uma tendência percebida nos últimos anos de "contratualização" da matéria. Como já desenvolvi em textos anteriores, a sua viabilidade foi analisada, em território brasileiro, no ano de 2014, quando da realização, na cidade do Recife, da XV Conferência Mundial da International Society of Family Law (ISFL). Nesse evento, houve um histórico e marcante painel do qual participaram os professores Frederik Swennen e Elisabeth Alofs, da Bélgica.
 
O primeiro jurista defendeu a premissa da "contratualização" e a segunda a "descontratualização", em um raro debate de visões antagônicas e de profundos contrapontos doutrinários visto no Brasil. Ali se comparou a autonomia privada a um pêndulo e o professor Swennen demonstrou como ele poderia ser mais pesado no âmbito do Direito de Família. Esse peso se dá justamente pelo fato de existirem muitas normas cogentes ou de ordem pública no âmbito do Direito de Família, a limitarem a liberdade manifestada nos pactos firmados nesse campo. Justamente pela presença de um peso maior, muitos têm defendido a "contratualização" como uma suposta fuga dessa intervenção, o que acaba sendo um engano.
 
Sobre a definição do que seja a autonomia privada, essa pode ser conceituada como a liberdade de autorregulamentação negocial, ou seja, a liberdade que a pessoa tem de regular os seus próprios interesses. Nos dizeres de Francisco Amaral, que muito me influenciou, "a autonomia privada é o poder que os particulares têm de regular, pelo exercício de sua própria vontade, as relações que participam, estabelecendo-lhe o conteúdo e a respectiva disciplina jurídica. Sinônimo de autonomia da vontade para grande parte da doutrina contemporânea, com ela porém não se confunde, existindo entre ambas sensível diferença. A expressão 'autonomia da vontade' tem uma conotação subjetiva, psicológica, enquanto a autonomia privada marca o poder da vontade no direito de um modo objetivo, concreto e real" (AMARAL, Francisco. Direito Civil. Introdução. Rio de Janeiro: 5ª Edição, Renovar, 2003, p. 347-348).
 
Ademais, a autonomia privada - ao contrário da expressão autonomia da vontade - traz em seu conteúdo a necessidade imperiosa de respeito e de observância a normas de ordem pública e a outros princípios contratuais, como são, no caso do Código Civil Brasileiro, a função social do contrato (art. 421) e a boa-fé objetiva (art. 422).
 
No Direito Italiano, isso foi muito bem observado por Enzo Roppo, doutrinador cujo referencial a mim é conhecido, o que fez com que eu até o homenageasse dando o seu nome a um dos meus filhos. Segundo ele, "a autonomia e a liberdade dos sujeitos privados em relação à escolha do tipo contratual, embora afirmada, em linha de princípio, pelo art. 1.322.º c. 2 Cód. Civ. estão, na realidade, bem longe de ser tomadas como absolutas, encontrando, pelo contrário, limites não descuráveis no sistema de direito positivo" (O contrato. Coimbra: Almedina, 1988. p. 137). Reconhece Roppo, na sequência de sua obra, a existência de claras restrições à vontade manifestada nos negócios. Primeiro percebe-se uma limitação sobre a própria liberdade de celebrar ou não o contrato. Em outras ocasiões, sinaliza o grande jurista italiano que as limitações são também subjetivas, pois se referem às pessoas com quem as avenças são celebradas. A realidade jurídica brasileira nunca foi e não é diferente.
 
No campo dos contratos e dos negócios jurídicos em geral, a autonomia privada se desdobra em duas liberdades. Inicialmente, percebe-se a liberdade para a celebração dos pactos e avenças com determinadas pessoas, sendo o direito à contratação inerente à própria concepção de pessoa um direito advindo do princípio da liberdade. Essa é a liberdade de contratar, que está relacionada com a escolha da pessoa ou das pessoas com quem o negócio será celebrado, bem como com o momento em que se contrata, sendo uma liberdade plena, pelo menos em regra e na grande maioria das vezes. De fato, poucas e raras devem ser as restrições a essa liberdade de contratar.
 
Em outro plano, a autonomia pode estar relacionada com o conteúdo do pacto, ponto em que residem limitações maiores à liberdade da pessoa. Trata-se, portanto, da liberdade contratual, que tem relação específica com as previsões que as partes escolheram para a regulamentação dos seus interesses, com as cláusulas contratuais propriamente ditas.
 
Dessa dupla liberdade do sujeito contratual é que decorre a autonomia privada, que não é absoluta, encontrando limitações em normas de ordem pública e outros princípios, afirmação que existe em nosso Direito desde sempre. Filio-me, portanto, à parcela da doutrina que propõe a citada substituição do princípio da autonomia da vontade pelo princípio da autonomia privada também diante dessas notórias restrições. Como sustenta Fernando Noronha "foi precisamente em consequência da revisão a que foram submetidos o liberalismo econômico e, sobretudo, as concepções voluntaristas do negócio jurídico, que se passou a falar em autonomia privada, de preferência à mais antiga autonomia da vontade. E, realmente, se a antiga autonomia da vontade, com o conteúdo que lhe era atribuído, era passível de críticas, já a autonomia privada é noção não só com sólidos fundamentos, como extremamente importante" (O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada, boa-fé, justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 113).
 
Por isso, tenho sustentado que são desatualizadas normas recentes que utilizam o superado termo autonomia da vontade, caso da Lei de Mediação (lei 13.140/2015, art. 2.º, inc. V) e da Reforma Trabalhista (lei 13.467/2017). A propósito, a Medida Provisória 881, de 2019, também trazia a expressão autonomia da vontade no seu art. 3.º, inc. V. Porém, de forma correta, na sua conversão na Lei da Liberdade Econômica, o dispositivo passou a utilizar a expressão autonomia privada, no sentido de ser um dos direitos de concretização dessa liberdade, nos termos do art. 170 da Constituição Federal, "gozar de presunção de boa-fé nos atos praticados no exercício da atividade econômica, para os quais as dúvidas de interpretação do direito civil, empresarial, econômico e urbanístico serão resolvidas de forma a preservar a autonomia privada, exceto se houver expressa disposição legal em contrário" (lei 13.874/2019).
 
Em complemento, como tenho sustentado, a própria Lei da Liberdade Econômica acabou por positivar o princípio da autonomia privada, valorizando a liberdade contratual, desde que isso não contrarie normas cogentes ou de ordem pública. Nesse sentido, merece destaque o seu art. 3º, inc. VIII, que prevê, como outro direito de concretização da liberdade econômica, "ter a garantia de que os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, exceto normas de ordem pública". O texto é bem melhor do que o originário, que constava da MP 881, que chegava a estabelecer que uma parte de um contrato empresarial não poderia alegar lesão a norma de ordem pública que ela própria inseriu. Por intervenções de muitos juristas no Congresso Nacional - por frentes distintas, caso deste autor -, a norma foi consideravelmente alterada para a sua redação atual.
 
Não se olvide que o principal foco da Lei da Liberdade Econômica é o contrato civil ou empresarial paritário, com conteúdo amplamente negociado entre as partes, geralmente em posição de igualdade. E, mesmo em tais contratos, celebrados entre grandes e poderoso agentes econômicos, há a necessidade de se observar os preceitos de ordem pública. A lei mais "liberal" do nosso país traz essa ressalva...
 
O que dizer, então, das relações familiares, sobretudo as relações estabelecidas entre cônjuges e companheiros, em que geralmente se defende e se prega a "contratualização"? É claro que também nos pactos firmados entre eles, muitas vezes como hipossuficiência econômica de uma das partes, há que se respeitar as normas cogentes. Isso, aliás, está previsto no art. 1.655 do Código Civil, ao controlar a validade das previsões constantes do pacto antenupcial, in verbis: "é nula a convenção ou cláusula dela que contravenha disposição absoluta de lei". Como "disposição absoluta de lei", entendam-se justamente as normas de ordem pública, premissa que também se aplica aos contratos de convivência, firmados entre companheiros.
 
A título de exemplo de sua subsunção, serão nulas as seguintes cláusulas constantes do pacto antenupcial ou em contrato de convivência, diante da existência de normas de ordem pública ou de matéria cogente, que visam a uma determinada proteção: a) previsão contratual que estabelece que o marido, nos regimes da comunhão universal ou parcial de bens, possa vender imóvel sem outorga conjugal, afastando o art. 1.647, inc. I, do CC; b) cláusula que determina a administração dos bens de forma exclusiva pelo marido, pois a mulher é incompetente para tanto, afastando a isonomia constitucional; c) cláusula que estabeleça a renúncia prévia aos alimentos, infringindo a absoluta regra do art. 1.707 do CC; d) cláusula que regulamenta previamente as regras referentes à guarda dos filhos, para o caso de divórcio do casal; e) cláusula que imponha multa para caso de infidelidade, sendo certo que as perdas e os danos não podem ser fixados previamente em casos tais, pois a eventual responsabilidade que surge do fim do vínculo tem natureza extracontratual, envolvendo questões de ordem pública; f) cláusula que afaste o regime da separação obrigatória de bens nas hipóteses descritas pelo art. 1.641 do CC; e g) cláusula que exclui expressamente o direito sucessório do cônjuge sobrevivente, afastando as regras da sucessão legítima e trazendo a renúncia prévia à herança, havendo claro pacto sucessório, em infringência ao art. 426 do Código Civil.
 
A respeito do último exemplo, a propósito, em hipótese concreta em que houve a tentativa de se criar um regime de separação total de bens com efeitos sucessórios, para que não houvesse herança no caso concreto, violando a proibição das pacta corvina, julgou-se que "as normas de direito sucessório dispostas no Título II, Capítulo I, do Código Civil (artigos 1.829 e seguintes) são de caráter cogente, não se admitindo disposição em contrário, revestindo-se de nulidade, nos termos do artigo 1.655 do Código Civil, toda e qualquer norma que confronte disposição legal" (TJMT, Apelação 15809/2016, Capital, Rel. Des. Sebastião Barbosa Farias, j. 21.06.2016, DJMT 24.06.2016, p. 82).
 
Na mesma linha, sobre a tentativa de se afastar a concorrência sucessória por meio de pacto antenupcial, o que é nulo, mais uma vez por infração ao art. 426 do Código Civil: "o Código Civil de 2002 trouxe importante inovação, erigindo o cônjuge como concorrente dos descendentes e dos ascendentes na sucessão legítima. Com isso, passou-se a privilegiar as pessoas que, apesar de não terem qualquer grau de parentesco, são o eixo central da família. Em nenhum momento o legislador condicionou a concorrência entre ascendentes e cônjuge supérstite ao regime de bens adotado no casamento. Com a dissolução da sociedade conjugal operada pela morte de um dos cônjuges, o sobrevivente terá direito, além do seu quinhão na herança do de cujus, conforme o caso, à sua meação, agora sim regulada pelo regime de bens adotado no casamento. O artigo 1.655 do Código Civil impõe a nulidade da convenção ou cláusula do pacto antenupcial que contravenha disposição absoluta de lei" (STJ, REsp 954.567/PE, 3.ª Turma, Rel. Min. Massami Uyeda, j. 10.05.2011, DJe 18.05.2011). Como consta do voto do relator, "a pretensão da recorrente de que o pacto antenupcial teria excluído o viúvo da sucessão dos bens próprios da falecida não prospera, porquanto o artigo 1.655 do Código Civil impõe a nulidade da convenção ou cláusula do pacto antenupcial que contravenha disposição absoluta de lei".
 
Como última nota de relevo sobre o tema deste breve artigo, é fundamental deixar claro que a eventual nulidade de cláusula do pacto antenupcial não pode prejudicar o restante do ato, o que é a aplicação do princípio da conservação dos negócios jurídicos, que visa justamente à manutenção da autonomia privada, também quanto ao que foi pactuado entre as partes em sede de casamento ou união estável. Assim, a parte útil do negócio jurídico não fica viciada pela inútil, aplicando-se a máxima utile per inutile non vitiatur. Como está previsto no art. 184, primeira parte, do CC, "respeitada a intenção das partes, a invalidade parcial de um negócio jurídico não o prejudicará na parte válida, se esta for separável". No campo dos contratos, tem-se associado essa conservação à sua função social, como preceitua o Enunciado n. 22, da I Jornada de Direito Civil: "a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral que reforça o princípio de conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas". No meu entendimento, sendo reconhecida a "contratualização do Direito de Família", além do respeito às normas de ordem pública, é preciso valorizar essa ideia de preservação da autonomia privada, sempre que isso for possível
 
 
 [1] Flávio Tartuce é pós-doutorando e doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Professor do G7 Jurídico. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico
 
 
 link: https://www.migalhas.com.br/coluna/familia-e-sucessoes/350602/autonomia-privada-e-direito-de-familia--a-reflexoes-atuais
 

Divórcio "post-mortem", um direito potestativo

 Jones Figueirêdo Alves

 Em uma franca homenagem ao princípio do "mors omnia solvit" ("a morte soluciona tudo"), jurisprudência mais antiga afirmava que se antes de transitar em julgado a ação de divórcio direto viesse a falecer um dos cônjuges, extinguir-se-ia o processo sem julgamento do mérito.

 Em menos palavras, em situações que tais, o divórcio "post mortem" era natimorto, elegendo-se, então, a dissolução do casamento válido pela morte de um dos cônjuges (art. 1.517, I, do Código Civil), em detrimento do direito potestativo de quem, no estado de separação de fato e em autonomia de sua vontade, já manifestara o interesse de finalizar a sociedade conjugal pelo divórcio (art. 1.517, IV, CC), dissolvendo por essa opção o seu casamento (art. 1.571 § 1º, CC). Precisamente, pretender adquirir o seu estado civil de divorciado(a) e não, por fato superveniente, assumir o de viuvez, que não lhe seria relevante (ou desejado), em confusão jurídica dos fatos.

 Assim entendeu-se pela opção da morte superveniente, no curso da ação, para a perda do seu objeto, não obstante já manifestada a vontade para a obtenção do divórcio, com os efeitos internos próprios a partir da distribuição da ação, em prol do(a) promovente. No ponto, impende anotar a regra do caput do art. 158 do Código de Processo Civil de 1973, renovada pelo caput do art. 200 do atual CPC/2015, segundo o qual o(s) ato(s) das) parte(s) consistente(s) em declarações unilaterais ou bilaterais de vontade produzem imediatamente a constituição de direitos processuais. Em ser assim, razão não haveria para a perda de objeto, em desprezando o valor jurídico da pretensão já deduzida em juízo, conjunta ou individualmente.

 Diante de julgado proferido pela 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, na Apelação Cível n. 1.04443.06.028547-7/0001 (DJMG, de 04.05.2007), nessa linha de entendimento, interessou bastante refletir sobre a vedação da época ao divórcio post-mortem, pelo que em artigo do mesmo ano, incursionamos em diversas reflexões no tema (01).

 Pois bem. Certo que o estado civil de divorciado difere, substancialmente, do estado civil da viuvez, pelos efeitos jurídicos deles irradiados, bem específicos, questão relevante se torna saber possível ou não o divórcio "post mortem".

 A propósito:

 “A controvérsia reside justamente em dizer qual desses motivos ocorreu primeiro, se prevalece ou não a manifestação de vontade das partes de se divorciarem, ainda sem a chancela judicial. E tal importa porque a dissolução do casamento por uma ou outra causa surte efeitos jurídicos próprios e distintos, sendo a morte do cônjuge, por exemplo, fato gerador de direitos sucessórios e previdenciários, e o divórcio, de direitos à partilha de bens e pensão alimentícia” (TJMG – 7ª Câmara Cível, Ap. 1.0000.17.071266-5/001, j. em 29.05.2018).

 A questão não se afigura, portanto, meramente acadêmica. Muito ao revés, ganhou maior relevo jurídico justamente a partir da Emenda Constitucional nº 66/2010, que coloca o divórcio no direito constitucional como um direito potestativo e incondicional de cada qual dos cônjuges. Tudo diante da nova redação ao artigo 226, § 6º, da Constituição Federal, com a supressão dos requisitos temporal e causal.

Agora, também das Minas Gerais, surge uma jurisprudência consolidada a respeito, quando em julgamento proferido em 05 de agosto corrente, pela 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, resultou assentado, em acórdão, que:

 

“(...) Nos casos em que já exista manifestação de vontade de ambos os cônjuges de se divorciarem, a superveniência da morte de um dos cônjuges no curso do processo não acarreta a perda de seu objeto. A superveniência da morte de um dos cônjuges, não é suficiente para superar ou suplantar o acordo de vontades anteriormente manifestado, o qual possui valor jurídico e deve ser respeitado, mediante a atribuição de efeitos retroativos à decisão judicial que decreta o divórcio do casal (...). (02)

 

Ou seja, “com a apresentação da petição inicial e da contestação, aperfeiçoou-se a manifestação de ambas as partes acerca da expressa concordância quanto à finalização da sociedade conjugal, por meio do divórcio (inciso IV do artigo 1.571 do CC/02 c/c inciso IV do artigo 2º da Lei 6.515/1977).”

 No caso recente, o recurso foi manejado pela filha do divorciando, falecido em novembro passado, vítima de Covid-19, depois de, em figurando no polo passivo da lide, pronunciar-se no processo a favor do divórcio, restringindo a controvérsia judicial à discussão de eventual união estável antecedendo ao casamento e à partilha dos bens. O juízo de origem, da 6ª Vara de Família de Belo Horizonte, houve de extinguir o processo, sem julgamento de mérito, diante do evento morte do cônjuge varão, com os efeitos de tornar extinta a sociedade conjugal existente. O recurso, assinado pelo advogado Ricardo Gorgulho Cunnigham, postulou fosse reconhecido o divórcio pós-morte (03).

 O entendimento foi adotado pela des. Ana Paula Caixeta, que instalando a divergência, com os fundamentos da ementa acima referida, apontou a autonomia das partes, para o decreto do divórcio, com seu valor jurídico que deve ser respeitado, nada influindo o óbito superveniente.

 O julgado consagrou a tese sempre defendida pelo jurista Rodrigo Pereira da Cunha, presidente do IBDFAM, quando aceita, pela vez primeira, em data de 29.05.2018, no mesmo tribunal e por sua 7ª Câmara Cível, pela relatoria do des. Osvaldo Oliveira Araújo Firmo. O relator pontificou no sentido de reconhecer que “ante as singularidades do caso, a questão é inédita e, também em atenção ao princípio da primazia da sentença de mérito (art. 4º, do CPC/2015), deve ser enfrentada nesta instância revisora”.

 Indicou, então, que a morte do requerente não importou a perda do objeto da ação do divórcio, pela razão de que o casamento terminara antes, por vontade unívoca dos cônjuges, diferido apenas o ato de homologação, por omissão do juízo, denegatória da prestação jurisdicional clamada e reclamada.

 Convém a transcrição, no que interessa, de excertos do Acórdão pioneiro, na Apelação Cível nº 1.0000.17.071266-5/001:

 
Manifestação de vontade. Morte do cônjuge. Direito potestativo. Perda do objeto. Não ocorrência.

- É potestativo o direito do cônjuge ao divórcio. 2. A morte do cônjuge no curso na ação não acarreta a perda do objeto da ação se já manifesta a vontade dos cônjuges de se divorciarem, pendente apenas a homologação, em omissão do juízo.

- (...) Superado o debate acerca do divórcio e em curso o inventário dos bens deixados pelo cônjuge falecido, o juízo sucessório atrai a discussão sobre o pedido de partilha de bens

 Anota-se, outrossim, no plano do direito processual, a definição naquele julgamento, quanto ao pedido de substituição processual, de que “em tese, o espólio é parte legítima para pedir a declaração do fim do casamento do de cujus pelo divórcio, se já exaurido o exercício do direito em vida, pelos cônjuges.”.

 No mais, cumpre referir a importante lição jurisprudencial que dele se extrai, no tocante a duas premissas de base: a) o divórcio é um direito potestativo; (ii) cabe deferi-lo em prontitude da jurisdição, com imediato julgamento parcial de mérito ou em sede de prestação liminar, com o divórcio concedido “in limine”. Nessa diretiva, a desa. Alice Birchal, integrando a turma julgadora, destacou, com precisão:

(i) É irrefutável o argumento de que o divórcio é um direito potestativo, nos termos da redação dada ao §8º do art.226, CR/88 pela EC/66 que, exercido, torna obrigatório o julgamento de procedência deste pedido, ainda que o Autor tenha falecido após o ajuizamento da ação, pois a pretensão foi por ele formulada ao juízo competente para tanto e, com sua morte, seu Espólio tem interesse processual, porque o resultado do divórcio pode influenciar no julgamento das questões levadas ao juízo sucessório, o inventário;

(ii) Incontroverso o pedido de divórcio, cujo julgamento antecipado de parte dos pedidos é permitido. deveria ter sido imediatamente julgado pela instância anterior. Correto o Relator quando afirma que o juízo a quo negou jurisdição ao não homologar o pedido de divórcio, imediatamente...(...).

  A jurisprudência do divorcio post-mortem como um direito potestativo tem os precedentes do Tribunal de Justiça paulista, valendo referir os julgados mais recentes:

 “Divórcio litigioso. Falecimento do cônjuge.

- Sentença de extinção sem julgamento do mérito. Apelo do autor. A morte de um dos cônjuges no curso da ação não acarreta a perda de seu objeto se já manifesta a vontade de um dos cônjuges de se divorciar. Direito potestativo ao qual a parte contrária não pode opor qualquer resistência.

- Possibilidade de decreto do divórcio post mortem, com efeitos retroativos à data do ajuizamento da ação, de forma excepcional.      - Precedente. Ação procedente. Recurso provido”.

(TJ-SP - AC: 10002887020208260311 SP 1000288-70.2020.8.26.0311, Relator: Desa. Mary Grün, Data de Julgamento: 02/10/2020, 7ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 02/10/2020)


“(...) Princípio da ruptura do afeto. Direito cujo exercício somente depende da manifestação de vontade de qualquer interessado.

- Hipótese constitucional de uma rara verdade jurídico-absoluta, a qual materializa o direito civil-constitucional, que, em última reflexão, firma o divórcio liminar. Particularidade que suprime a possibilidade de oposição de qualquer tese de defesa, salvo a inexistência do casamento, fato incogitável. Detalhe que excepciona, inclusive, a necessidade de contraditório formal.

- Possibilidade de decreto do divórcio post mortem, com efeitos retroativos à data do ajuizamento da ação, de forma excepcional. Precedentes. Ação procedente. Recurso provido.

(TJ-SP - AC: 10325357420208260224 SP 1032535-74.2020.8.26.0224, Relator: Des. Rômolo Russo, Data de Julgamento: 28/07/2021, 7ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 28/07/2021)

 Divórcio litigioso. Falecimento de cônjuge após o ajuizamento da ação (Divórcio post mortem). Decretação do divórcio com eficácia retroativa a data do requerimento da petição inicial. Cabimento. Iniciativa de dissolução matrimonial adveio da parte recorrida. Existência de separação de corpos pelo prazo de três anos.

- A morte de um dos cônjuges no curso da ação não acarreta a perda de seu objeto se já manifesta a vontade dos cônjuges de se divorciarem. Divórcio é direito potestativo (Emenda Constitucional 66/2010).

- Ilegitimidade de parte. Afastada. Exercício matrimonial já exaurido pelos cônjuges. Parte recorrente é o espólio do de cujus. Falta de interesse de agir. Afastada. Existência de consequências sucessórias no inventário dos bens da falecida. Impossibilidade jurídica do pedido. Afastada.

- Divórcio é aperfeiçoado desde o ajuizamento da ação com a manifestação de vontade. Sentença reformada. Recurso provido.

(TJ-SP - AC: 10245041020198260577 SP 1024504-10.2019.8.26.0577, Relator: Des. Jair de Souza, Data de Julgamento: 27/07/2020, 10ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 28/07/2020)

Pois bem. Não se descura de que o pedido de divórcio que compete aos cônjuges com exclusividade (art. 1.582, do CC), constitui um direito potestativo de cada um deles, tudo a não exigir contraditório ou dilações indevidas, em garantia de eficiente prestação de justiça.

 Bem de ver diante da origem etimológica do vocábulo potestativo, o seu significado latino de poder: potestas, potestatis; de onde se extrai a qualidade potestativa, pelo exercício do poder que o direito confere, ou mais precisamente, um direito revestido de poder - potestativus. A doutrina tem se empenhado para além de definir o direito potestativo, em apresentá-lo como um rico instituto jurídico que ganha a sua frequente aplicação jurisprudencial, ensejadora de maior segurança jurídica (04).

O divórcio é uma das constatações mais importantes das características do direito potestativo, merecendo, por isso mesmo, uma prática mais intensa de sua aplicação liminar.

 Em outro giro, retenha-se, afinal, como ponderação maior, os efeitos da E.C. 66/2010, que afastaram as exigências temporais da separação de fato, mormente aquela por mais de dois anos, como dispunha o art. 1.580, § 2º do Código Civil. Serviria, antes da Emenda Constitucional, como elemento jurígeno para o divórcio direto.

 Os atuais efeitos da separação de fato são instantes e colimam para os fins da união estável, independentemente do divórcio decretado, como situação jurídica consolidada que obsta a confusão de bens. Ou seja, o "status" de união estável tem sido admitido, quando pessoa casada tiver rompido a sociedade conjugal, estando separada de fato, não obstante esta mesma sociedade venha somente ser dissolvida pela separação judicial, a teor do ditame vetusto do art. 1.571, inciso III, do Código Civil.

 Lado outro, de igual diretiva, a mesma separação de fato, em igual prazo (o de mais de dois anos), não conferindo direito sucessório ao cônjuge sobrevivente, salvo se essa convivência se tornara impossível sem sua culpa (art. 1.830 do Código Civil).

 De tudo se observa urgente, portanto, não apenas se admitir o divórcio post-mortem, sob a mirada processual da não perda do objeto da ação ajuizada, diante da morte superveniente de um dos cônjuges, no curso do processo, como principalmente, o cabimento da ação de divórcio post-mortem diante da separação de fato preexistente.

 Essa maior latitude tem sido defendida por Rodrigo Pereira da Cunha quando sublinha que a inexistência da lide não desnatura o fato jurídico fundamental e determinante, o da separação de fato com os seus efeitos jurídicos inafastáveis, de modo a permitir, diante da incontroversa realidade fática e jurídica, a possibilidade do pedido do divórcio após a morte. Com pertinência ímpar, para a maior segurança jurídica do direito das partes e dos herdeiros e da defesa de interesses patrimoniais

 Eis a questão aqui posta: os precedentes e a melhor doutrina recepcionam, com exatidão, o divórcio post-mortem, na vida do direito.

 Referências:

(01) ALVES, Jones Figueirêdo. Divórcio post-mortem? In: Diário de Pernambuco Coluna Direito de Família, 11.11.2007, Cad. Vida Urbana, p. C-4, Recife (PE);

(02) TJ-MG - AI: 10000200777423004 MG, Relator: Dárcio Lopardi Mendes, Data de Julgamento: 05/08/2021, Câmaras Cíveis / 4ª Câmara Cível, Data de Publicação: 06/08/2021;

(03) Valor Econômico, 20.08.2021. TJ-MG garante divórcio mesmo após morte de marido; matéria de Cibelle Bouças;

(04) Por todos: LEMOS FILHO, Flávio Pimentel de. Direito Potestativo. Atualizado com a Lei nº 10.406/2002 e a Lei nº 13.105/2015. Rio de Janeiro: Lumn Juris Direito, 2017, 100 p.

 Fonte: Consultor Jurídico, 22.08.2021

Jones Figueirêdo Alves é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL). Integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont)

 

Os artigos assinados aqui publicados são inteiramente de responsabilidade de seus autores e não expressam posicionamento institucional do IBDFAM

https://ibdfam.org.br/artigos/1743/Div%C3%B3rcio+%22post-mortem%22%2C+um+direito+potestativo

Comissão da Câmara aprova projeto que permite monitoramento eletrônico de agressor de mulher

 08/09/2021

Fonte: Assessoria de comunicação do IBDFAM (com informações da Agência Câmara de Notícias)

Nesta semana, a Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 4.827/2019 que autoriza o juiz, em caso de violência doméstica e familiar, a submeter o agressor à monitoração eletrônica, por meio de dispositivo dotado de recurso que permita alertar de maneira automática a vítima, seus familiares e os órgãos de segurança pública quando da aproximação e violação de perímetro de segurança. O texto será analisado agora, em caráter conclusivo, pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania.

O texto aprovado é o substitutivo da relatora, deputada Norma Ayub (DEM-ES), com mais de dez propostas apensadas. O projeto altera a Lei Maria da Penha (11.340/2006) para conferir maior efetividade às medidas protetivas de urgência. Para isso, deverá ser fornecido à ofendida dispositivo móvel, aplicativo ou qualquer meio que viabilize conexão constante com unidade policial, de modo a permitir o envio imediato de alertas de ameaça ou de outra violação de direitos – o chamado "botão do pânico".

A relatora ressaltou que a utilização do “botão do pânico” já é adotada em diversos estados brasileiros. "O fornecimento de dispositivo de segurança que possibilite à ofendida emitir um alerta imediato às autoridades policiais, quando houver tentativa de aproximação do agressor, revela-se fundamental para a garantia de sua segurança em caso de risco iminente à sua saúde ou à sua integridade física."

Segundo a parlamentar, "os dispositivos de monitoramento eletrônico permitem que se localize o agressor, bem como viabilizam a verificação mais efetiva do cumprimento das medidas protetivas impostas, como a determinação de não frequentar determinados lugares ou de não se aproximar da vítima".

A Câmara já aprovou o Projeto de Lei 10.024/2018, do Senado, que trata do mesmo tema e torna obrigatório o fornecimento, para as mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, de dispositivo móvel, aplicativo ou outro meio de conexão constante com a polícia. O texto retornou para análise do Senado, já que foi modificado na Câmara.

Leia mais: Comissão do Senado aprova inclusão de violência por meios eletrônicos na Lei Maria da Penha


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