segunda-feira, 24 de março de 2014

É preciso definir a função do Supremo Tribunal Federal

O Supremo Tribunal Federal é o órgão de cúpula do Poder Judiciário. Essa frase, tão repetida e acatada, está de tal modo assimilada pela cultura jurídica brasileira, que chega a ser acaciano iniciar com ela esta coluna do Observatório Constitucional.
Entretanto, o óbvio pode suscitar questionamentos, as platitudes nunca são plenamente estremes de dúvidas. O que significa, afinal, dizer que o STF é o órgão de cúpula do Poder Judiciário? Tal pergunta requer, para uma adequada resposta, a compreensão prévia do que se entende por Poder Judiciário; o que pode ser sintetizado na obra clássica — e ainda muito atual — de Pedro Lessa, Do Poder Judiciário, de 1915:
“§ 1º. O poder judiciário é o que tem por missão aplicar contenciosamente a lei a casos particulares.
A três se reduzem os principais caracteres distintivos do poder judiciário: 1º as suas funções são as de um árbitro; para que possa desempenhá-las, importa que surja um pleito, uma contenda; 2º só se pronuncia acerca de casos particulares, e não em abstrato sobre normas ou preceitos jurídicos, e ainda menos sobre princípios; 3º não tem iniciativa, agindo – quando provocado, o que é mais uma conseqüência da necessidade de uma contestação para poder funcionar”.[1]
Assim, dizer que o STF é o órgão de cúpula do Poder Judiciário é afirmar que tal tribunal, impondo-se sobre os demais, tem a função de, de modo definitivo, aplicar contenciosamente a lei a casos particulares, observando que, para repetir as palavras de Pedro Lessa, deve haver uma contenda a ser arbitrada, deve levar em consideração casos particulares e deve ser provocado.
Qualquer pessoa que acompanha o dia a dia do Supremo e o desenvolvimento de sua jurisprudência pode perceber, sem maiores reflexões, que essa descrição do órgão de cúpula do Poder Judiciário não é a mais adequada, não é a que expressa com mais acuidade a atual quadra vivida pelo mais importante órgão jurisdicional brasileiro.
O Supremo Tribunal Federal cada vez mais abandona sua função de árbitro máximo das contendas particulares, nas quais discussões específicas são travadas, para adquirir um perfil de definidor de padrões amplos e abstratos de conduta, a serem seguidos por uma generalidade de pessoas e não somente pelas partes de um determinado processo.
É verdade que esse movimento se iniciou há muito, desde a regulamentação mais ampla da antiga representação de inconstitucionalidade e, depois, com o incremento do modelo abstrato de controle de constitucionalidade promovido pela Constituição de 1988.
Entretanto, ainda que temperado por esses institutos, a função do Tribunal permanecia a de órgão de cúpula do Poder Judiciário, resolvendo as controvérsias concretas que lhe eram submetidas pelas partes.
Prova disso é o rol de competências previsto no artigo 102 da Constituição Federal, que majoritariamente contempla atribuições típicas de um órgão judiciário nos termos expostos por Pedro Lessa em 1915.
De alguns anos para cá, porém, a ênfase da Corte foi alterada. Aquelas competências, que se apresentam como majoritárias no rol do artigo 102, transformaram-se em melancólicas minorias nas pautas de julgamento do Plenário do Supremo. As sessões do Pleno (com específicas exceções, como a da AP 470) são cada vez mais voltadas para as funções hoje consideradas pelos ministros como mais nobres, quais sejam, as funções de controle concentrado e abstrato, que caracterizariam o Supremo Tribunal Federal como o Tribunal Constitucional brasileiro.
Esse novo padrão de atuação fez com que a doutrina mitigasse a afirmação tradicional de que o STF é o órgão de cúpula do Poder Judiciário. André Ramos Tavares, por exemplo, afirma que o Supremo Tribunal Federal é o “órgão de cúpula do Poder Judiciário brasileiro, exercendo, em tempo parcial, as funções próprias de um tribunal constitucional, já que também desempenha as funções de tribunal comum, resolvendo litígios concretos”.[2]
Tal análise é a projeção, na doutrina, do fato de que o STF se autoproclama como o Tribunal Constitucional brasileiro, como a Corte Constitucional a guardar o texto de 1988.
Essa constatação já basta para colocar em xeque a afirmação com que se iniciou — de modo supostamente óbvio — este artigo. Isso porque é sabido que um dos traços próprios dos tribunais constitucionais é sua autonomia. Kelsen registra que o órgão encarregado de exercer a jurisdição constitucional deve ser independente de “qualquer outra autoridade estatal”[3], inclusive do Poder Judiciário.
Esse aspecto da construção teórica do modelo de tribunal constitucional fica claro na seguinte análise de Roger Stiefelmann Leal:
“A primeira característica básica dos Tribunais Constitucionais reside na sua própria autonomia em relação aos demais poderes do Estado. (...) O Tribunal Constitucional deve, portanto, compor uma magistratura independente do aparato jurisdicional ordinário e das estruturas dos demais poderes. Nesse sentido, configura um poder autônomo, distinto e organicamente independente do Poder Legislativo, do Poder Executivo e do Poder Judiciário. É este, segundo Favoreu, o atributo que diferencia um Tribunal Constitucional de um Tribunal Supremo de última instância”.[4]
Assim, quando o STF se afirma Corte Constitucional, apresenta-se como estranho ao Poder Judiciário. E estando alheio ao Poder Judiciário, está também alheio aos limites tradicionais desse poder, expressos nos caracteres arrolados por Pedro Lessa.
A análise dos julgados nos quais o STF se intitula Corte Constitucional é prova desse movimento de descolamento entre o Poder Judiciário e seu pretenso órgão de cúpula. A simples leitura dos precedentes em que o Supremo se põe expressamente como Tribunal Constitucional demonstra, de ordinário, a ocorrência de situação em que algum aspecto da tradicional função jurisdicional está sendo desvirtuado.
Isso pode ser verificado, por exemplo, no acórdão do Mandado de Injunção 708, (rel. min. Gilmar Mendes, DJ de 31/10/2008), por meio do qual o Supremo instaurou um regime jurídico genérico para a greve dos servidores públicos;[5] ou em decisões que admitem a manifestação de amici curiae nos processos de controle concentrado de constitucionalidade.[6]
É evidente que, nesse último caso, extrapolando o limite das partes, o Tribunal busca a articulação de um consenso legitimador de suas decisões. Exatamente porque essas decisões — agora gerais e abstratas — precisam da mesma legitimação que caracteriza as decisões gerais e abstratas tomadas pelo Poder responsável pela construção do consenso, qual seja, o Legislativo. Isso fica patente na Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.677 (rel. min. Gilmar Mendes, DJ 12/06/2006.[7]
Exatamente por atuar em função análoga à do Parlamento, o STF — em sua face Tribunal Constitucional — deve buscar os instrumentos legitimadores da atividade parlamentar, e os amici curiae parcialmente cumpririam essa tarefa, assim como cumpririam essa função as audiências públicas, previstas no artigo 9º da Lei 9.868/1999.
O STF também se apresenta como Tribunal Constitucional quando afirma o efeito vinculante de suas decisões[8], afastando-se de suas tradicionais funções de Corte Suprema.
A produção do Parlamento, dentro da lógica da tripartição clássica, orienta a atuação dos demais poderes, já que o Executivo aplica a lei de ofício e o Judiciário contenciosamente. A lei, portanto, é naturalmente vinculante.
O Tribunal Constitucional, afastando-se da missão típica do Judiciário, que é aplicar a lei contenciosamente, também produz provimentos que devem gozar da mesma força vinculante da lei. Mais uma vez aqui, o Tribunal Constitucional, por estar fora do Poder Judiciário, tem poderes estranhos ao Poder Judiciário.
Por outro lado, cabe lembrar que a via processual mais importante da Suprema Corte — enquanto verdadeiro órgão de cúpula do Poder Judiciário — adquiriu contornos novos, no que se tem chamado de “objetivação do recurso extraordinário”.
Esse fenômeno é perceptível na repercussão geral, introduzido no ordenamento constitucional pela Emenda 45, de 2004.[9] Com o advento desse instituto, não é mais a demanda particular e concreta que importa para o STF quando do julgamento do recurso extraordinário, mas sim características objetivamente consideradas na controvérsia dos autos, as quais permitem identificar sua repercussão geral. O provimento jurisdicional no extraordinário passa a ser um provimento geral e abstrato, que repercute, nas instâncias inferiores, em todos os casos análogos. E essa repercussão automática já é, certamente, um ensaio de um efeito vinculante a ser reconhecido nas decisões proferidas em recurso extraordinário.
E tanto o provimento é geral e abstrato com força similar à de lei, que o STF — também nos casos de repercussão geral — busca a legitimação de suas decisões por meio da admissão de manifestações de amici curiae.[10]
Mesmo fora da dinâmica da repercussão geral, já há discussões no Supremo acerca dos efeitos das decisões em controle difuso de constitucionalidade. Exemplo disso é a tese, defendida pelo ministro Gilmar Mendes, de que o artigo 52, X, da Constituição Federal não mais se aplica, tendo ocorrido verdadeiro desuetudo. A perda da eficácia da norma declarada inconstitucional em controle difuso decorreria do próprio provimento do STF e não mais seria necessária a manifestação do Senado Federal.[11]
Esse entendimento demonstra como a lógica exorbitante do Tribunal Constitucional tem invadido as funções da Suprema Corte, afastando o STF cada vez mais de sua posição de órgão de cúpula do Poder Judiciário.
Entretanto, o Supremo continua a se apresentar como órgão de cúpula do Poder Judiciário. E o faz, principalmente, na defesa de questões institucionais suas e na defesa dos interesses corporativos da magistratura.
É verdade que a expressão “órgão de cúpula do Poder Judiciário” tem rareado nas decisões do Supremo Tribunal Federal. Uma pesquisa no site do STF demonstrará que, nos últimos anos, foi a expressão utilizada num único julgado de destaque.
Cuida-se da ADI 3.367 (rel. min. Cezar Peluso, DJ de 22/09/2006, por meio da qual a AMB questionou a constitucionalidade da criação, pela EC 45/2004, do Conselho Nacional de Justiça.
O STF afirmou, nesse julgado, que a existência de um órgão de controle do Poder Judiciário não afeta a separação de poderes, mas que o poder do Conselho não se aplica ao próprio STF.[12] A redação do artigo 103-B não permite, com o devido respeito, essa conclusão. Todo o Poder Judiciário deveria ser alvo do controle efetuado pelo CNJ; e a presença de um ministro do STF na sua presidência poderia ser tomada, inclusive, como uma tentativa de legitimação do conselho em sua atuação perante a Suprema Corte.
Mas o Tribunal Constitucional brasileiro, no exercício de uma de suas funções típicas, julgando uma ação direta, atribuiu-se a condição de órgão de cúpula do Poder Judiciário, exatamente para afirmar que não é Poder Judiciário para fins de fiscalização do Conselho Nacional de Justiça.
Trata-se da decretação expressa de sua libertação, de sua autonomia em relação ao Poder Judiciário, que continua — como Poder do Estado — submetido ao CNJ. Ou seja, a retórica do “órgão de cúpula” serviu exatamente para afirmar uma característica do modelo clássico do Tribunal Constitucional, sua autonomia institucional em relação à jurisdição ordinária.
Nesse contexto, é possível afirmar que, do ponto de vista de modelos ideais, há uma indefinição na atuação do STF, cujo perfil institucional varia, conforme a oportunidade, entre o Tribunal Constitucional e o “órgão de cúpula do Poder Judiciário”.
E nessa indefinição, as discussões acerca do aprimoramento do modelo brasileiro de controle de constitucionalidade ganham relevo, como adquirem dimensão as propostas de emenda à Constituição que revisam do papel do STF; em debate que necessariamente acrescentará um ponto de interrogação à frase que abre este artigo: o Supremo Tribunal Federal é o órgão de cúpula do Poder Judiciário?
Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio). 

[1] Pedro Lessa. Do Poder Judiciário, edição fac-similar, Brasília: Senado Federal, 2003, p. 1.
[2] André Ramos Tavares. “Supremo Tribunal Federal”. Dicionário brasileiro de direito constitucional, Dimitri Dimoulis (coordenador-geral), São Paulo: Saraiva – Instituto Brasileiro de Estudos Constitucionais, 2007, p. 370.
[3] Hans Kelsen. “A garantia jurisdicional da constituição”. Jurisdição constitucional, São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 150.
[4] Roger Stiefelmann Leal. O efeito vinculante na jurisdição constitucional, São Paulo: Saraiva, 2006, p. 59-60.
[5] Lê-se no acórdão em questão: “3.3. Tendo em vista as imperiosas balizas jurídico-políticas que demandam a concretização do direito de greve a todos os trabalhadores, o STF não pode se abster de reconhecer que, assim como o controle judicial deve incidir sobre a atividade do legislador, é possível que a Corte Constitucional atue também nos casos de inatividade ou omissão do Legislativo”.
[6] “A admissão de terceiro, na condição de amicus curiae, no processo objetivo de controle normativo abstrato, qualifica-se como fator de legitimação social das decisões da Suprema Corte, enquanto Tribunal Constitucional, pois viabiliza, em obséquio ao postulado democrático, a abertura do processo de fiscalização concentrada de constitucionalidade, em ordem a permitir que nele se realize, sempre sob uma perspectiva eminentemente pluralística, a possibilidade de participação formal de entidades e de instituições que efetivamente representem os interesses gerais da coletividade ou que expressem os valores essenciais e relevantes de grupos, classes ou estratos sociais. Em suma: a regra inscrita no art. 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/99 - que contém a base normativa legitimadora da intervenção processual do amicus curiae - tem por precípua finalidade pluralizar o debate constitucional” (ADI nº 2.130-MC, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 02.02.2001).
[7] “Essa construção jurisprudencial sugere a adoção de um modelo procedimental que ofereça alternativas e condições para permitir, de modo cada vez mais intenso, a interferência de uma pluralidade de sujeitos, argumentos e visões no processo constitucional. Essa nova realidade pressupõe, além de amplo acesso e participação de sujeitos interessados no sistema de controle de constitucionalidade de normas, a possibilidade efetiva de o Tribunal Constitucional contemplar as diversas perspectivas na apreciação da legitimidade de um determinado ato questionado”.
[8] E isso pode ser verificado no julgamento da AC 258-MC, Min. Cezar Peluso, DJ 07.12.2004: “Observe-se, ademais, que, se entendermos que o efeito vinculante da decisão está intimamente vinculado à própria natureza da jurisdição constitucional em um dado Estado Democrático e à função de guardião da Constituição desempenhada pelo tribunal, temos de admitir, igualmente, que o legislador ordinário não está impedido de atribuir, como, aliás, fez por meio do art. 28, parágrafo único, da Lei n. 9.868, essa proteção processual especial a outras decisões de controvérsias constitucionais proferidas pela Corte. Em verdade, o efeito vinculante decorre do particular papel político-institucional desempenhado pela Corte ou pelo Tribunal Constitucional, que deve zelar pela observância estrita da Constituição nos processos especiais concebidos para solver determinadas e específicas controvérsias constitucionais”.
[9] Art. 102, § 3º, da Constituição: “§ 3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros”.
[10] Tal como se pode verificar, por exemplo, no RE 566.471, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 20.05.2009; no RE 583.955, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJ de 24.03.2009; e no RE 567.110, Rel. Minª Cármen Lúcia, DJ de 1º.04.2009.
[11] Essa tese chegou a seu extremo na apreciação, pelo Plenário do Supremo, da Rcl 4.335, Rel. Min. Gilmar Mendes, cujo julgamento foi concluído no último dia 20 de março.
Neste caso, o reclamante pedia a cassação de uma decisão de um Juiz de Execução Penal do Acre que não seguira a orientação fixada pelo STF no julgamento do HC 82.959, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 1º.09.2006, no qual fora declarada a inconstitucionalidade da Lei dos Crimes Hediondos, no ponto que impedia a progressão de regime.
Em suma, o reclamante buscava o reconhecimento do efeito vinculante do decido pela Corte em controle difuso de constitucionalidade, operado em sede de habeas corpus. O Relator e o Ministro Eros Grau reconheceram esse efeito vinculante.
Na conclusão do julgamento, a maioria, seguindo o voto do Ministro Teori Zavascki, considerou que a decisão da Justiça acreana violava a Súmula Vinculante 26, ainda que proferida mais de três anos antes de sua edição. Ver: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=262988
[12] A ementa do julgado, na parte que nos interessa, tem o seguinte teor: “4. PODER JUDICIÁRIO. Conselho Nacional de Justiça. Órgão de natureza exclusivamente administrativa. Atribuições de controle da atividade administrativa, financeira e disciplinar da magistratura. Competência relativa apenas aos órgãos e juízes situados, hierarquicamente, abaixo do Supremo Tribunal Federal. Preeminência deste, como órgão máximo do Poder Judiciário, sobre o Conselho, cujos atos e decisões estão sujeitos a seu controle jurisdicional. Inteligência dos art. 102, caput, inc. I, letra "r", e § 4º, da CF. O Conselho Nacional de Justiça não tem nenhuma competência sobre o Supremo Tribunal Federal e seus ministros, sendo esse o órgão máximo do Poder Judiciário nacional, a que aquele está sujeito”.

Carlos Bastide Horbach é advogado em Brasília, professor doutor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP e professor do programa de mestrado e doutorado em Direito do UniCEUB.
Revista Consultor Jurídico, 22 de março de 2014, 8h01
http://www.conjur.com.br/2014-mar-22/observatorio-constitucional-preciso-definir-funcao-supremo-tribunal-federal

STJ: Enfermidade mental não justifica interdição, mas motiva internação.

Sem a real noção das regras sociais, limites individuais, dor e sofrimento de outras pessoas, um sociopata — pessoa que apresenta comportamento antissocial — que comete atos de violência pode ser interditado para acompanhamento psiquiátrico. Isso ocorre porque tal comportamento coloca a vida do próprio cidadão e de outras pessoas em risco, o que demanda acompanhamento e restrição à liberdade, dependendo do quadro. Com base nesse entendimento, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça acolheu Recurso Especial do Ministério Público de Mato Grosso e determinou a interdição de um jovem que, aos 16 anos, assassinou a mãe de criação, o padrasto e o irmão.
Após cometer os crimes, ele passou três anos cumprindo medida socioeducativa em diversas instituições, nas quais foi apontada a insanidade mental e vontade de continuar matando. Isso levou o MP-MT, em 2009, a apresentar Ação de Interdição, negada em primeira instância sob a alegação de que a situação não se enquadra nas previstas no artigo 1.767 do Código Civil. Segundo a sentença, para a interdição é necessária a constatação de que a doença retirou da pessoa em questão “o necessário discernimento para os atos da vida civil, não bastando qualquer tipo de enfermidade”. Houve Apelação ao TJ-MT, rejeitada com argumento semelhante, pois não foi "comprovada a incapacidade da pessoa para gerir atos da vida civil e bens, não há falar-se em interdição".
Relatora do Recurso Especial levado ao Superior Tribunal de Justiça, a ministra Nancy Andrighi apontou a condição do jovem como transtorno não especificado da personalidade. De acordo com ela, “a mera presença de comportamentos antissociais e/ou agressivos, podem não refletir uma personalidade sociopática, mas na verdade, tratar-se de reflexos do meio no qual o indivíduo foi criado”, aumentando a complexidade da situação. Citando especialistas na área, ela informou que o melhor tratamento é o terapêutico, por remédios ou de forma psicoterapêutica. A impossibilidade de qualquer dos dois tratamentos “gera o inevitável questionamento sobre a possibilidade de recorrência comportamental, que leve aquele que já praticou um determinado ilícito a fazê-lo novamente no futuro”, sendo esse o cerne da questão, disse a ministra.
Entre a sanidade mental e a loucura há uma zona fronteiriça, continuou. Quando as medidas legais não garantem a proteção e uma vida digna ao sociopata, buscam-se “alternativas, dentro do arcabouço legal para, de um lado, não vulnerar as liberdades e direitos constitucionalmente assegurados a todos e, de outro turno, não deixar a sociedade refém de pessoas, hoje, incontroláveis nas suas ações, que tendem à recorrência criminosa”, informou Nancy. Isso é necessário porque não há como controlar completamente o comportamento dos sociopatas violentos, e “a reincidência comportamental é quase uma certeza”.
Para a ministra, a questão opõe o direito à liberdade após o cumprimento da medida socioeducativa e a garantia à sociedade de que tais atos não se repetirão. Como não é possível prever o comportamento de tais pessoas, apontou, é preciso buscar uma solução plausível e possível para o caso. A base para o entendimento adotado pela ministra é o artigo 1.767, inciso III, do Código Civil, pois nele permite-se a interdição — ainda que parcial — de viciados em drogas e alcoólatras. Nesses casos, informou Nancy, há prejuízo incontrolável à capacidade civil da pessoa, “com riscos para si, que extrapolam o universo da patrimonialidade, e que podem atingir até a sua própria integridade física”. Mesmo oculto, há também risco para a sociedade, especialmente nos casos com violência prévia.
Como é impossível controlar a psicopatia — e a sociopatia — de forma total, é preciso “albergar esse sociopata em rede de proteção social multidisciplinar, que inclui um curador designado, o Estado-Juiz, o Ministério Público, profissionais da saúde mental e outros mais que se façam necessários”, apontou a ministra. Isso não vale para demonstrações genéricas de sociopatia, mas sim para casos com histórico de tal prática e de desrespeito às regras sociais, continuou. Baseando-se na possibilidade de internação compulsória, medida de internação psiquiátrica autorizada pela Lei 10.216/2001, Nancy Andrighi votou por dar provimento ao Recurso Especial, determinando a internação do homem. Ela foi acompanhada pelos ministros Sidnei Beneti e Paulo de Tarso Sanseverino, ficando vencido o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva.
Clique aqui para ler a decisão.
http://www.conjur.com.br/2014-mar-22/enfermidade-mental-nao-justifica-interdicao-motiva-internacao-stj

Paternidade socioafetiva não afasta direitos sucessórios

 Imagem: Revista Isto É.
 
A paternidade socioafetiva, mantida com o pai registral, não afasta os direitos decorrentes da paternidade biológica, sob pena de violar o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Além disso, o registro não pode servir de obstáculo para que o filho queira investigar sua origem genética, com todos os efeitos daí decorrentes.

Com este entendimento, a 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul manteve sentença que julgou procedente Ação Investigatória de Paternidade, cumulada com Petição de Herança, ajuizada contra um espólio. O caso foi parar no colegiado porque os três herdeiros legítimos do falecido se insurgiram contra a decisão que reconheceu os direitos hereditários/sucessórios do filho-autor, nascido fora do casamento. O acórdão foi lavrado na sessão de 27 de fevereiro.

Os desembargadores entenderam que, uma vez reconhecida a paternidade, em exame de DNA, é cabível o pedido de herança. E, aí, os sucessores do investigado não têm legitimidade para propor a prevalência da paternidade socioafetiva sobre a biológica, sobretudo quando o próprio pai registral concordou com o pleito do autor.

Para o relator dos recursos, desembargador Ricardo Moreira Lins Pastl, se o próprio autor foi que buscou o reconhecimento do vínculo biológico, assim que completou 18 anos, não é razoável que seja imposta a prevalência da paternidade socioafetiva, a fim de impedir sua pretensão. ‘‘O fato de o autor haver ocasionalmente afirmado na seara fática uma relação socioafetiva com seu pai registral e de haver bem usufruído desse relacionamento, [tal] não tem força para obstar a declaração de sua verdade biológica, o que é direito seu — e para todos os fins’’, destacou no acórdão.

Por fim, ao se referir à jurisprudência, o relator citou a ementa do Recurso Especial 1.274.240/SC, julgado em outubro de 2013 pela ministra Nancy Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça. ‘‘A paternidade traz em seu bojo diversas responsabilidades, sejam de ordem moral ou patrimonial, devendo ser assegurados os direitos sucessórios decorrentes da comprovação do estado de filiação. Todos os filhos são iguais, não sendo admitida qualquer distinção entre eles, sendo desinfluente a existência, ou não, de qualquer contribuição para a formação do patrimônio familiar’’.

Clique aqui para ler o acórdão.
Jomar Martins é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio Grande do Sul.
Revista Consultor Jurídico, 23 de março de 2014
 http://www.conjur.com.br/2014-mar-23/descoberta-pai-biologico-desconstituir-paternidade-socioafetiva