A noção de filiação dentro do contexto amplo da família sofreu, ao
longo dos séculos, uma gradativa modificação, a ponto de o legislador
colocar, cada vez mais, a subjetividade na sua formação tendo por conta
os anseios sociais trazidos com a relativização constante de conceitos
restritos de tal instituto.[37]
Com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil de
1988, o Direito aproximou-se das relações sociais, deixando de se fazer
constante seu caráter meramente político, abordando também direitos
individuais e de cunho social, afirmando a formação de uma “nova e
fecunda teoria constitucional”.[38]
Uma questão que devemos ter bastante clara na análise da Constituição
Federal de 1988, no que se refere à família, é que ela apenas reconheceu
a aevolução que já estava latente na sociedade brasileira. Não foi a
partir dela que a mudança na família brasileira ocorreu.
Constitucionalizaram-se valores que estavam impregnados e disseminados
no seio da sociedade. Dos fatos e valores caminhou-se para as normas,
tardiamente, é verdade. O texto constitucional de 1988 contemplou e
abrigou uma evolução fática anterior da família e do Direito de Família
que estava represado na doutrina e na jurisprudência. A Constituição de
1988, estimulada pela emenda Nelson Carneiro, mostrou que esses novos
valores já conhecidos na sociedade não iriam causar trauma algum à
nação. Albergou-se no plano constitucional o que já se tinha
desenvolvido no plano sociológico da família.[39]
Paulo Bonavides[40] nos coloca a formação da
constitucionalização dos princípios em duas fases: a programática e a
não programática, que tem concepção objetiva. “Nesta última, a
normatividade constitucional dos princípios ocupa um espaço onde releva
de imediato a sua dimensão objetiva e concretizadora, a positividade de
sua aplicação direta e imediata.”
Explica ainda que há uma espécie de peregrinação normativa da efetiva
aplicação de princípios, que tiveram por origem na formação nos Códigos,
acabando nas Constituições, tendo por fundamento a sua correspondência
àqueles gerais de Direito. [41]
Assim, havendo a aplicada Constituição de estabelecer normas gerais de
Direito que tutelem conceitos amplos de origem/respaldo social, tais
como os de família, se coloca a aplicação prática dos princípios,
constituindo “proposições genéricas que servem de substrato para a
organização de um ordenamento jurídico”[42].
Os princípios são normas jurídicas que se distinguem das regras não só
porque tem alto grau de generalidade, mas também por serem mandatos de
otimização. Possuem um colorido axiológico mais acentuado que as regras,
desvelando mais nitidamente os valores jurídicos e políticos que
condensam. Devem ter conteúdo de validade universal. Consagram valores
generalizantes e servem para balizar todas as regras, as quais não podem
afrontar as diretrizes contidas nos princípios. [43]
À prática da feitura do texto constitucional, aduz Caio Mário da Silva Pereira que:
No âmbito do debate que envolve a constitucionalização do Direito Civil, mencione-se ainda o §1º do art. 5º do Texto Constitucional, que declara que as normas definidoras dos direitos e das garantias fundamentais têm aplicação imediata. Considero, no entanto, que não obstante preceito tão enfaticamente estabelecido, ainda assim, algumas daquelas normas exigem a elaboração de instrumentos adequados à sua fiel efetivação.[44]
Segundo o mesmo autor, os institutos citados são condicionados,em
alguns casos, a mecanismos outros além dos princípios jurídicos
constitucionais, dizendo respeito à seara processual,compondo a
subjetividade do Direito.
[...] o direito subjetivo como faculdade de querer, porém dirigida a determinado fim. O poder abstrato é incompleto, desfigurado. Corporifica-se no instante em que o elemento volitivo encontra uma finalidade prática de atuação. Esta finalidade é o interesse de agir. [45]
Tendo grande relevância a aplicação dos princípios à norma
infraconstitucional posta, não deixando de perceber a própria
normatização social dentro da Carta Maior, a juridicidade prática
principiológicafaz com que o trabalho do intérprete do caso concreto
leve em conta não só a feitura seca do texto legislativo, mas que se
atenha, também, a valores e interesses abarcados nesta premissa.[46]
Daí a necessidade de revisitar os institutos de direito das famílias,
adequando suas estruturas e conteúdo à legislação constitucional,
funcionalizando-os para que se prestem à afirmação dos valores mais
significativos da ordem jurídica. Assim, cabe trazer alguns dos
princípios norteadores do direito das famílias, ainda que não se
pretenda delimitar números nem esgotar seu elenco. [47]
Dentro dessa principiologia familiar, destaca-se a presença de uma que
serve de base para todas as outras, tal seja, a dignidade da pessoa
humana. Sendo esta objetivo fundamental da República Federativa do
Brasil, conforme preconiza o artigo 1º, III, da referida legislação, a
preservação da dignidade humana atua em todas as vertentes do sistema
normativo-jurídico, havendo de ser observado tanto nas relações públicas
quanto nas privadas.[48]
Assim, as relações jurídicas privadas familiares devem sempre se
orientar pela proteção da vida e da integridade biopsíquica dos membros
da família, consubstanciada no respeito e asseguramento dos seus
direitos de personalidade.[49]
Falar de Dignidade da Pessoa Humana é falar do “mais universal de todos os princípios”. Nos dizeres de Maria Berenice Dias[50]é
um macroprincípio do qual se irradiam todos os demais: liberdade,
autonomia privada, cidadania, igualdade e solidariedade, uma coleção de
princípios éticos.
A Constituição Federal de 1988 ao fixar a dignidade da pessoa humana
como princípio central do Estado, jurisdicizando o valor humanista,
disciplinou a matéria ao longo do texto através de um conjunto de
princípios, subprincípios e regras, que procuram concretizá-lo
evidenciando os efeitos que deste devem ser extraídos. [51]
Carlos Roberto Gonçalves classifica o Direito de Família como “o mais
humano de todos os ramos do Direito”. A assertiva se dá pela
correspondência da “evolução do conhecimento científico, dos movimentos
políticos e sociais do século XX e o fenômeno da globalização” que
“provocaram mudanças profundas na estrutura da família e nos
ordenamentos jurídicos de todo o mundo.”[52]
Enfatiza Rodrigo da Cunha Pereira:
Todas essas mudanças trouxeram novos ideais, provocaram um ‘declínio do patriarquismo’ e lançaram bases de sustentação e compreensão dos Direitos Humanos, a partir da noção da dignidade da pessoa humana, hoje insculpida em quase todas as constituições democráticas. [53]
A crise instada ao instituto familiar inexiste, segundo Maria Helena
Diniz, e dá a impressão de efetividade pelas maçantes transformações a
que se passa, tendo por conta a ‘despatriarcalização’ do ordenamento
jurídico-familiar.[54]A dignidade da pessoa
humana como base para a formação da atual República denota e reitera o
viés social a que nos submetemos à moderna constituinte.
Dentro da premeditação social da norma, adentremos num dos pilares da
presente nuance fática da filiação dentro do ordenamento: a da igualdade
entre os filhos, independentemente da sua origem de parentalidade.
Dispõe o art. 227, § 6º da Constituição da República Federativa do
Brasil: que “os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por
adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer
designações discriminatórias relativas à filiação”[55]
Até o advento da aplicada Codificação Civil, datada do ano de 2002,
havia a inaplicação expressa do disposto quando da classificação
filiativa, porquanto o que colocava-se em evidência quando da existência
do artigo 358 do Código Civil de 1916[56], que aduz a impossibilidade de reconhecimento dos filhos incestuosos e adulterinos.
A partir dessas ideias vale afirmar que todo e qualquer filho gozará
dos mesmos direitos e proteção, seja em nível patrimonial, seja mesmo na
esfera pessoal. Com isso, todos os dispositivos legais que, de algum
modo, direta ou indiretamente, determine tratamento discriminatório
entre os filhos terão de ser repelido do sistema jurídico. [57]
Com a promulgação do Código Civil de 2002, viu-se a reiteração do
disposto constitucionalmente na legislação infra. Tal disposição
encontra guarida aos artigos 1.596 a 1.629, dos capítulos que tratam da
filiação, do reconhecimento dos filhos e da adoção.[58]
Por fim, não menos importante, reitera-se o conteúdo do princípio da
solidariedade familiar, com expressão ratificada pelos artigos 3º, I e
229, da Constituição da República Federativa do Brasil, dando por conta a
“superação do individualismo jurídico e busca a construção de uma
sociedade livre, justa e solidária, a qual se origina nos vínculos de
afetividade que marcam as relações familiares, abrangendo os conceitos
de fraternidade e reciprocidade”.[59]
Indica a solidariedade como um vínculo de sentimentos que concorrem
para a realização do indivíduo e o desenvolvimento de sua personalidade.
No núcleo familiar, evidenciam-se os deveres de mútua assistência entre
os cônjuges, de proteção da criança e do adolescente (A Convenção
Internacional sobre os Direitos da Criança inclui a solidariedade entre
os seus princípios, presente também no Estatuto da Criança e do
Adolescente em seu artigo 4º) e amparo aos idosos, previstos nos artigos
226 a 230 da Constituição Federal.[60]
O princípio da solidariedade familiar encontra respaldo noutro
princípio constitucional, tal seja o da solidariedade social. Há dois
aspectos a que devem ser vislumbrados: o externo, quando desemboca no
Poder Público o ônus de garantir a aplicabilidade de seu preceito e o
interno, que diz respeito à constrição de políticas de atendimento por
parte da sociedade civil diante da disposição pelo Estado de medidas que
atendam às necessidades familiares dos “menos abastados e dos
marginalizados”.[61]
Logicamente, a solidariedade familiar é construída sob valores traçados
pelos ascendentes em favor dos descendentes. E, estes, por seu turno,
acabarão por trilhar caminho parecido aquele que lhes foi ensinado.
Muito embora o parâmetro de solidariedade interna sofra uma oscilação de
uma entidade familiar para outra em virtude dos padrões culturais
vigentes e da procedência de cada entidade, há um mínimo a ser
preservado: os direitos personalíssimos de cada integrante da família,
sua subsistência e a concessão de auxílio para que se possa ter a
oportunidade de se atingir o nível de desenvolvimento esperado pelo
interessado. Enfim, a assistência material e imaterial entre os membros
da entidade familiar devem sempre se fazer presentes nas relações
jurídicas existentes. [62]
A aplicação do princípio retro torna evidente a existência intrínseca doutro, tal seja, o da afetividade.
Mesmo que a Constituição tenha enlaçado o afeto no âmbito de sua
proteção, a palavra afeto não está no texto constitucional. Ao serem
reconhecidas como entidade familiar merecedora da tutela jurídica as
uniões estáveis, que se constituem sem o selo do casamento, tal
significa que o afeto, que une e enlaça duas pessoas, adquiriu
reconhecimento e inserção no sistema jurídico. Houve a
constitucionalização de um modelo de família eudemonista e igualitário,
com maior espaço para o afeto e a realização individual.[63]
Imperiosa se faz a citação da existência doutros princípios
constitucionais aplicáveis ao Direito de Família, que aparecem na
doutrina de acordo com a corrente adotada pelo doutrinador a que se
pese. Ademais, procurou-se abordar, no presente trabalho monográfico,
aqueles que têm ligação direta com o Direito Filiativo, e que contribuem
diretamente para a construção lógica da seara argumentativa deste.
Assim, conclui-se que havendo a igualdade entre filhos, destacando o
sentido social da aplicada Constituição, subsiste a obrigação posterior
em compatibilizar o cuidado destes para com os que lhe educaram o que,
por sua vez, deve ser respaldado na afetividade, no sentido de buscar o
elo maior que os une, o estado de filiação, tal como veremos com
criteriosa especificidade no capítulo seguinte, quando trataremos das
espécies existentes em nosso ordenamento jurídico.
BARCELOS, Daniel Gilson. A formação do estado filiativo na socioafetividade e o direito sucessório por sua decorrência . Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3498, 28jan.2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/23563>. Acesso em: 1 fev. 2013.
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