sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

A principiologia constitucional aplicada à filiação

A noção de filiação dentro do contexto amplo da família sofreu, ao longo dos séculos, uma gradativa modificação, a ponto de o legislador colocar, cada vez mais, a subjetividade na sua formação tendo por conta os anseios sociais trazidos com a relativização constante de conceitos restritos de tal instituto.[37]
Com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o Direito aproximou-se das relações sociais, deixando de se fazer constante seu caráter meramente político, abordando também direitos individuais e de cunho social, afirmando a formação de uma “nova e fecunda teoria constitucional”.[38]
Uma questão que devemos ter bastante clara na análise da Constituição Federal de 1988, no que se refere à família, é que ela apenas reconheceu a aevolução que já estava latente na sociedade brasileira. Não foi a partir dela que a mudança na família brasileira ocorreu. Constitucionalizaram-se valores que estavam impregnados e disseminados no seio da sociedade. Dos fatos e valores caminhou-se para as normas, tardiamente, é verdade. O texto constitucional de 1988 contemplou e abrigou uma evolução fática anterior da família e do Direito de Família que estava represado na doutrina e na jurisprudência. A Constituição de 1988, estimulada pela emenda Nelson Carneiro, mostrou que esses novos valores já conhecidos na sociedade não iriam causar trauma algum à nação. Albergou-se no plano constitucional o que já se tinha desenvolvido no plano sociológico da família.[39]
Paulo Bonavides[40] nos coloca a formação da constitucionalização dos princípios em duas fases: a programática e a não programática, que tem concepção objetiva. “Nesta última, a normatividade constitucional dos princípios ocupa um espaço onde releva de imediato a sua dimensão objetiva e concretizadora, a positividade de sua aplicação direta e imediata.”
Explica ainda que há uma espécie de peregrinação normativa da efetiva aplicação de princípios, que tiveram por origem na formação nos Códigos, acabando nas Constituições, tendo por fundamento a sua correspondência àqueles gerais de Direito. [41]
Assim, havendo a aplicada Constituição de estabelecer normas gerais de Direito que tutelem conceitos amplos de origem/respaldo social, tais como os de família, se coloca a aplicação prática dos princípios, constituindo “proposições genéricas que servem de substrato para a organização de um ordenamento jurídico”[42].
Os princípios são normas jurídicas que se distinguem das regras não só porque tem alto grau de generalidade, mas também por serem mandatos de otimização. Possuem um colorido axiológico mais acentuado que as regras, desvelando mais nitidamente os valores jurídicos e políticos que condensam. Devem ter conteúdo de validade universal. Consagram valores generalizantes e servem para balizar todas as regras, as quais não podem afrontar as diretrizes contidas nos princípios. [43]
À prática da feitura do texto constitucional, aduz Caio Mário da Silva Pereira que:
No âmbito do debate que envolve a constitucionalização do Direito Civil, mencione-se ainda o §1º do art. 5º do Texto Constitucional, que declara que as normas definidoras dos direitos e das garantias fundamentais têm aplicação imediata. Considero, no entanto, que não obstante preceito tão enfaticamente estabelecido, ainda assim, algumas daquelas normas exigem a elaboração de instrumentos adequados à sua fiel efetivação.[44]
Segundo o mesmo autor, os institutos citados são condicionados,em alguns casos, a mecanismos outros além dos princípios jurídicos constitucionais, dizendo respeito à seara processual,compondo a subjetividade do Direito.
[...] o direito subjetivo como faculdade de querer, porém dirigida a determinado fim. O poder abstrato é incompleto, desfigurado. Corporifica-se no instante em que o elemento volitivo encontra uma finalidade prática de atuação. Esta finalidade é o interesse de agir. [45]
Tendo grande relevância a aplicação dos princípios à norma infraconstitucional posta, não deixando de perceber a própria normatização social dentro da Carta Maior, a juridicidade prática principiológicafaz com que o trabalho do intérprete do caso concreto leve em conta não só a feitura seca do texto legislativo, mas que se atenha, também, a valores e interesses abarcados nesta premissa.[46]
Daí a necessidade de revisitar os institutos de direito das famílias, adequando suas estruturas e conteúdo à legislação constitucional, funcionalizando-os para que se prestem à afirmação dos valores mais significativos da ordem jurídica. Assim, cabe trazer alguns dos princípios norteadores do direito das famílias, ainda que não se pretenda delimitar números nem esgotar seu elenco. [47]
Dentro dessa principiologia familiar, destaca-se a presença de uma que serve de base para todas as outras, tal seja, a dignidade da pessoa humana. Sendo esta objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, conforme preconiza o artigo 1º, III, da referida legislação, a preservação da dignidade humana atua em todas as vertentes do sistema normativo-jurídico, havendo de ser observado tanto nas relações públicas quanto nas privadas.[48]
Assim, as relações jurídicas privadas familiares devem sempre se orientar pela proteção da vida e da integridade biopsíquica dos membros da família, consubstanciada no respeito e asseguramento dos seus direitos de personalidade.[49]
Falar de Dignidade da Pessoa Humana é falar do “mais universal de todos os princípios”. Nos dizeres de Maria Berenice Dias[50]é um macroprincípio do qual se irradiam todos os demais: liberdade, autonomia privada, cidadania, igualdade e solidariedade, uma coleção de princípios éticos.
A Constituição Federal de 1988 ao fixar a dignidade da pessoa humana como princípio central do Estado, jurisdicizando o valor humanista, disciplinou a matéria ao longo do texto através de um conjunto de princípios, subprincípios e regras, que procuram concretizá-lo evidenciando os efeitos que deste devem ser extraídos. [51]
Carlos Roberto Gonçalves classifica o Direito de Família como “o mais humano de todos os ramos do Direito”. A assertiva se dá pela correspondência da “evolução do conhecimento científico, dos movimentos políticos e sociais do século XX e o fenômeno da globalização” que “provocaram mudanças profundas na estrutura da família e nos ordenamentos jurídicos de todo o mundo.”[52]
Enfatiza Rodrigo da Cunha Pereira:
Todas essas mudanças trouxeram novos ideais, provocaram um ‘declínio do patriarquismo’ e lançaram bases de sustentação e compreensão dos Direitos Humanos, a partir da noção da dignidade da pessoa humana, hoje insculpida em quase todas as constituições democráticas. [53]
A crise instada ao instituto familiar inexiste, segundo Maria Helena Diniz, e dá a impressão de efetividade pelas maçantes transformações a que se passa, tendo por conta a ‘despatriarcalização’ do ordenamento jurídico-familiar.[54]A dignidade da pessoa humana como base para a formação da atual República denota e reitera o viés social a que nos submetemos à moderna constituinte.
Dentro da premeditação social da norma, adentremos num dos pilares da presente nuance fática da filiação dentro do ordenamento: a da igualdade entre os filhos, independentemente da sua origem de parentalidade.
Dispõe o art. 227, § 6º da Constituição da República Federativa do Brasil: que “os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”[55]
Até o advento da aplicada Codificação Civil, datada do ano de 2002, havia a inaplicação expressa do disposto quando da classificação filiativa, porquanto o que colocava-se em evidência quando da existência do artigo 358 do Código Civil de 1916[56], que aduz a impossibilidade de reconhecimento dos filhos incestuosos e adulterinos.
A partir dessas ideias vale afirmar que todo e qualquer filho gozará dos mesmos direitos e proteção, seja em nível patrimonial, seja mesmo na esfera pessoal. Com isso, todos os dispositivos legais que, de algum modo, direta ou indiretamente, determine tratamento discriminatório entre os filhos terão de ser repelido do sistema jurídico. [57]
Com a promulgação do Código Civil de 2002, viu-se a reiteração do disposto constitucionalmente na legislação infra. Tal disposição encontra guarida aos artigos 1.596 a 1.629, dos capítulos que tratam da filiação, do reconhecimento dos filhos e da adoção.[58]
Por fim, não menos importante, reitera-se o conteúdo do princípio da solidariedade familiar, com expressão ratificada pelos artigos 3º, I e 229, da Constituição da República Federativa do Brasil, dando por conta a “superação do individualismo jurídico e busca a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a qual se origina nos vínculos de afetividade que marcam as relações familiares, abrangendo os conceitos de fraternidade e reciprocidade”.[59]
Indica a solidariedade como um vínculo de sentimentos que concorrem para a realização do indivíduo e o desenvolvimento de sua personalidade. No núcleo familiar, evidenciam-se os deveres de mútua assistência entre os cônjuges, de proteção da criança e do adolescente (A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança inclui a solidariedade entre os seus princípios, presente também no Estatuto da Criança e do Adolescente em seu artigo 4º) e amparo aos idosos, previstos nos artigos 226 a 230 da Constituição Federal.[60]
O princípio da solidariedade familiar encontra respaldo noutro princípio constitucional, tal seja o da solidariedade social. Há dois aspectos a que devem ser vislumbrados: o externo, quando desemboca no Poder Público o ônus de garantir a aplicabilidade de seu preceito e o interno, que diz respeito à constrição de políticas de atendimento por parte da sociedade civil diante da disposição pelo Estado de medidas que atendam às necessidades familiares dos “menos abastados e dos marginalizados”.[61]
Logicamente, a solidariedade familiar é construída sob valores traçados pelos ascendentes em favor dos descendentes. E, estes, por seu turno, acabarão por trilhar caminho parecido aquele que lhes foi ensinado. Muito embora o parâmetro de solidariedade interna sofra uma oscilação de uma entidade familiar para outra em virtude dos padrões culturais vigentes e da procedência de cada entidade, há um mínimo a ser preservado: os direitos personalíssimos de cada integrante da família, sua subsistência e a concessão de auxílio para que se possa ter a oportunidade de se atingir o nível de desenvolvimento esperado pelo interessado. Enfim, a assistência material e imaterial entre os membros da entidade familiar devem sempre se fazer presentes nas relações jurídicas existentes. [62]
A aplicação do princípio retro torna evidente a existência intrínseca doutro, tal seja, o da afetividade.
Mesmo que a Constituição tenha enlaçado o afeto no âmbito de sua proteção, a palavra afeto não está no texto constitucional. Ao serem reconhecidas como entidade familiar merecedora da tutela jurídica as uniões estáveis, que se constituem sem o selo do casamento, tal significa que o afeto, que une e enlaça duas pessoas, adquiriu reconhecimento e inserção no sistema jurídico. Houve a constitucionalização de um modelo de família eudemonista e igualitário, com maior espaço para o afeto e a realização individual.[63]
Imperiosa se faz a citação da existência doutros princípios constitucionais aplicáveis ao Direito de Família, que aparecem na doutrina de acordo com a corrente adotada pelo doutrinador a que se pese. Ademais, procurou-se abordar, no presente trabalho monográfico, aqueles que têm ligação direta com o Direito Filiativo, e que contribuem diretamente para a construção lógica da seara argumentativa deste.
Assim, conclui-se que havendo a igualdade entre filhos, destacando o sentido social da aplicada Constituição, subsiste a obrigação posterior em compatibilizar o cuidado destes para com os que lhe educaram o que, por sua vez, deve ser respaldado na afetividade, no sentido de buscar o elo maior que os une, o estado de filiação, tal como veremos com criteriosa especificidade no capítulo seguinte, quando trataremos das espécies existentes em nosso ordenamento jurídico.

BARCELOS, Daniel Gilson. A formação do estado filiativo na socioafetividade e o direito sucessório por sua decorrência . Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3498, 28jan.2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/23563>. Acesso em: 1 fev. 2013.

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