terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Sobre o véu da freira: deus, Estado e segurança

Saiu na Folha de sexta (10/02/12):
Uma freira de Cascavel (478 km de Curitiba) conseguiu na Justiça o direito de usar o véu na foto da carteira de motorista.
A decisão, emitida no final de janeiro, se baseia na Constituição Federal, que determina que ‘ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política’.
A irmã Kelly Cristina Favaretto, 33, já havia feito sua primeira habilitação, em 2006, com o véu, mas foi impedida de usar o hábito quando tentou renovar a carteira, em agosto do ano passado.
O motivo, segundo o Detran-PR, foi uma resolução do Contran (Conselho Nacional de Trânsito), de 2006 - posterior à primeira habilitação de Favaretto -, que determina que o motorista não pode utilizar ‘óculos, bonés, gorros, chapéus ou qualquer outro item de vestuário que cubra parte do rosto ou da cabeça’ na foto (...)
Foi só no TRF (Tribunal Regional Federal) da 4ª Região, em Porto Alegre, que a freira conseguiu reverter a decisão. O acórdão do TRF acolheu um parecer do Ministério Público Federal, que afirma que o uso do véu está relacionado à convicção religiosa da freira, protegida pela Constituição Federal.
‘[A norma do Contran] Restringe uma liberdade religiosa para o fim de, supostamente, permitir a visibilidade do motorista e a segurança em geral", afirma o procurador Januário Paludo. ‘É uma exigência um tanto rigorosa. Se a freira está obrigada pela ordem a que pertence e por convicção própria a usar o véu, ela não é obrigada a retirá-lo.’

A separação entre Estado e Igreja é relativamente recente na história da humanidade, e ainda é objeto de muitas controvérsias.

No Brasil, essa separação aconteceu oficialmente após a proclamação da República, em 1889, e da promulgação da Constituição de 1891. Até então, propriedades e sacerdotes da Igreja Católica eram mantidos com recursos do Estado brasileiro.

A Constituição de 1824 (quando ainda éramos uma monarquia) dizia que a Igreja Católica Apostólica Romana era a religião oficial do Império, e bania outros cultos públicos (eles eram permitidos somente em ambientes privados). A nossa primeira Constituição republicana (1891), por outro lado, vedou aos Estados e à União estabelecer, subvencionar ou dificultar o exercício de cultos religiosos.

Também já vimos aqui que, embora desde 1891 o Estado tenha se tornado laico, apenas duas constituições (a de 1891 e a de 1937) não invocavam deus em seu preâmbulo.

A atual Constituição brasileira, de 1988, afirma que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos” (art. 5º, inciso VI), mas diz em seu preâmbulo que “representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático (…) promulgamos, sob a proteção de Deus (...)

A principal referência histórica nessa questão foi a Revolução Francesa, de 1789. Até então, todos os reais franceses – assim como a maior parte dos reis e imperadores em outros países, inclusive no Brasil – diziam que eram reis porque deus assim queria. Eram escolhidos por deus e o representava na Terra, e isso era confirmado pela Igreja (no caso, Católica). Por outro lado, a Igreja se beneficiava das graças do Estado, com terras, tributos etc. Logo, uma das primeiras providências dos revolucionários foi por um fim à essa relação simbiótica entre igrejas e Estado.

Por isso a França talvez seja um dos países ocidentais mais preocupados com a manutenção do Estado laico, ou seja, o Estado sem religião oficial. Em 2010-11, por exemplo, houve uma polêmica lá após uma lei proibir o uso da hijab (o véu islâmico) em lugares públicos. Os defensores da lei alegam estar defendendo o caráter laico do Estado francês; os críticos da lei dizem que a laicidade é um atributo do Estado, e não dos indivíduos, e por isso a Constituição francesa garante liberdade individual de credo, o que incluiria a livre manifestação pública de expressões religiosas. Lá, venceu o argumento contra a hijab.

Embora o Brasil, em teoria, tenha adotado uma política no mesmo sentido, o assunto ainda gera muita tensão e decisões contraditórias.


A Constituição diz que o Estado é laico, mas há vários lugares na própria Constituição nos quais igrejas e religiosos são tratados de forma diferenciada. Por exemplo, há pouco tempo discutimos a constitucionalidade do uso de crucifixos em repartições e locais públicos no Brasil. No caso do Judiciário, o Conselho Nacional de Justiça decidiu pela manutenção dos símbolos pois, segundo ele, esses símbolos não ofendem o caráter laico do Estado e da justiça no Brasil, ao mesmo tempo em que reproduzem um aspecto cultural e histórico relevante, que é a importância do cristianismo em nossa formação social. Não dá para saber como a questão seria julgada se fossem pendurados na parede símbolos do candomblé ou de uma escola de samba – outros dois aspectos culturais e históricos relevantes em nossa formação social. Outros dois exemplos: templos religiosos são imunes a impostos, e os eclesiásticos não são obrigados a prestarem o serviço militar obrigatório.

No caso da matéria acima, o Judiciário entendeu que o direito constitucional de livre expressão religiosa se sobrepõe a uma resolução administrativa do Contran. O interessante é que, se seguirmos a lógica do argumento, essa decisão abre brechas para sikis usarem seus turbantes em fotos oficiais e mulheres muçulmanas usarem véus e até mesmo burcas nesses mesmos documentos. E aí temos um segundo ponto de tensão: como evitar que criminosos também se valham disso?

Para os curiosos: em muitos países onde cobrir parte ou totalidade do rosto é a norma, como na Arábia Saudita, por exemplo, as fotos do passaporte são sem véu, mas as mulheres usam filas diferentes, na qual são atendidas por outras mulheres.

http://direito.folha.com.br/1/post/2012/02/sobre-o-vu-da-freira-deus-estado-e-segurana.html

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