quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

O débito e crédito conjugal (Rolf Hanssen Madaleno)

Os cônjuges e conviventes quando celebram sua união exteriorizam socialmente a sua estável relação afetiva e movimentam o inquestionável propósito de conferir estrutura social e jurídica ao seu vínculo de amor. Eles externam paixão e amor numa só carne, num consórcio proposto para constituir família, perpetuar a espécie, ajudar-se mediante socorros mútuos a suportar o peso da vida e para compartir seu destino comum. Cônjuges e conviventes doam muito de seu tempo e o extremo de sua atenção à unidade afetiva formada com o propósito de permanência, exclusividade e com renúncia à primitiva liberdade antes desfrutada. Surgem entre os parceiros direitos e deveres de conteúdo ético, jurídico, econômico e moral, que se tornam regras obrigatórias para os partícipes dessa relação sustentada no afeto. Não se trata de dizer que marido e esposa têm os mesmos direitos e deveres em razão da sua união, até porque, ambos devem ser destinatários de paritário tratamento jurídico e social. A crescente valorização das pessoas que se unem em sociedade conjugal inspira a sua existência, e se surgir alguma decepção pessoal que implique no término da união, que o casal se afaste sem traumas, sem cobranças, com dignidade e sem nenhum ressentimento pessoal capaz de conduzi-los a uma tola e desnecessária dramatização da sua separação. Os casados ou conviventes têm vínculos jurídicos, morais e sociais que brotam como condutas indissociáveis de qualquer par afetivo. Na contabilidade do relacionamento conjugal, ou de convivência estável os amantes atuam simultaneamente, como sujeitos ativos e passivos de um preconcebido regramento de conduta matrimonial.

O balancete matrimonial
A unidade e a conservação da família faziam com que a sociedade e a lei preferissem entregar a chefia da sociedade conjugal ao marido, supondo o legislador que a experiência do homem fora do lar e seu melhor tirocínio no mundo dos negócios, o habilitavam naturalmente ao exercício da chefia da sociedade conjugal. Em contrapartida, a mulher melhor dirigia suas prendas e seus dotes para as atividades domésticas, para com os cuidados na boa educação e na formação cultural da prole familiar. E assim se relacionavam homem e mulher envoltos nessas habituais diferenças nascidas de secular cultura social, que empurrava a mulher para uma posição de incontestável inferioridade jurídica e social. Na contabilidade conjugal os valores do gênero feminino outorgavam mais direitos ao marido e mais deveres para a mulher, tolerando ela os erros e os deslizes do homem e tendo ele baixíssima tolerância com as faltas, os erros e os desvios da mulher. Sendo pessoa dependente economicamente, a mulher tinha atuação e liberdade limitadas que restringiam sua capacidade de ação, em relação nada saudável a gerar mal-estar e frustração. A sociedade brasileira tolerou por diversas gerações a exploração psíquica da fragilidade sexual da mulher, apenas por sua falta de recursos financeiros, que a tornou materialmente improdutiva e economicamente dependente.
O débito e crédito conjugal
O dilema que enfrentavam as sociedades conjugais inspiradas na forma cristã do casamento para toda a vida, e por toda a vida dependente do dinheiro conquistado pelo homem parece haver cedido para o vigente texto constitucional, que ao menos no plano jurídico não mais deixa qualquer dúvida da plenitude da igualdade do par convivente ou conjugal. O amor e o sexo foram domesticados, sistema de autoritarismo marital singrou para formulações conjuntas, projetando o diálogo como natural porto de partida rumo à verdadeira felicidade nupcial, sem chefes nem caciques, sem privilégios ou opressões, numa contabilidade onde o homem não dispõe de créditos que contabiliza ao seu critério, e com os seus números, deixando a mulher sempre em completo débito conjugal. A contar da Carta Federal de 1988, homem e mulher são considerados iguais para a contabilidade do matrimônio e cresce o papel da mulher a caminho da equalização com o homem. Qualquer desconsideração dos deveres e direitos dos casais importa em infração nupcial que serve como causa para a litigiosa separação. Surge nova tábua de valores da sociedade conjugal e da união de afetos da estável convivência, devendo tudo ser decidido de comum acordo. Diferente de ontem, o afeto é o acalanto da felicidade e interage de modo livre, sem qualquer interferência espúria no ajuste do fiel equilíbrio do balancete que analisa os débitos e créditos da relação conjugal.

A co-participação da sociedade conjugal
Não há espaço e nem trânsito para a prestação forçada do débito da esposa e do incondicional crédito conjugal do varão. A relação dos cônjuges e daqueles casados na união informal está edificada numa saudável convivência, indiferente à culpa que pudesse ser extraída dos erros de percurso dos casados conjugais, e independente do eventual desequilíbrio econômico que pudesse fazer questionar sobre diferenças, a recriarem o oculto e insidioso poder do dinheiro nas relações amorosas. Devendo a mulher também se dedicar ao trabalho externo, homem e mulher qualificam suas relações motivadas tão-só pelas razões de espírito, sem espaço e paciência para antigas inclinações de subserviência, que já não mais se encaixam nessa nova contabilidade conjugal. É seguro deduzir que somente o amor deve seguir servindo como diuturno acalanto da vida conjugal. Portanto, a vida cotidiana ensina e a doutrina ensaia, que direitos e deveres de conteúdo espiritual e econômico, caminham rigorosamente entrosados, partilhando igualdades e respeito comum, sem lugar para privilégios ou primazias. Homem e mulher se liquefazem e se completam, fundindo-se numa só alma, num só corpo e num só espírito, que irradia respeito recíproco, que transforma preceitos de débito e de crédito num desejo espontâneo de atrair corações apaixonados para o saudável e pródigo exercício de uma vitoriosa e estável relação conjugal.

Jornal Carta Forense, quarta-feira, 1 de abril de 2009

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