sábado, 17 de dezembro de 2011

A relação jurídica processual na alienação judicial de imóvel hipotecado

O processo não pode ser considerado um fim em si mesmo, pois tem por finalidade a pacificação de conflitos e a produção de Justiça social. Com base nessa premissa, torna-se importante investigar a figura do devedor hipotecário no contexto do processo de execução.

Isso porque, de regra, o processo executório é configurado por relação jurídica formado entre credor e devedor, tão-somente. Há hipóteses, contudo, em que terceiros devem, necessariamente, figurar na lide, a fim de resguardar a validade dos atos judiciais.

Exemplo dessa situação é aquela em que há penhora de imóvel hipotecado de terceiro. Nesse caso, é correta a conclusão de que os garantidores hipotecários materializam a condição de responsáveis patrimoniais secundários e, portanto, legitimados extraordinários para o processo executivo, haja vista que seus bens encontram-se sujeitos à constrição judicial para a satisfação da obrigação exigida em juízo.
Nesse sentido é a posição de Neves:
"Sendo o sujeito responsável por dívida que não é sua - responsabilidade patrimonial secundária -, é natural que seja considerado parte na demanda executiva, visto que será o maior interessado em apresentar defesa para evitar a expropriação de seu bem. O devedor, que também deverá estar na demanda como litisconsórcio passivo, poderá não ter tanto interesse na apresentação da defesa, imaginando que, em razão da propriedade do bem penhorado, naquele momento o maior prejudicado será o responsável secundário e não ele.
Trata-se de legitimação extraordinária, porque o responsável secundário estará em juízo em nome próprio e na defesa de interesse de outrem, o devedor. Além de extraordinária, parece que tal legitimação permite que os responsáveis secundários sejam demandados já inicialmente, em litisconsórcio inicial com o devedor, em especial quando a própria lei expressamente prevê sua legitimidade, como ocorre com o fiador judicial e o responsável patrimonial. Caso tal litisconsórcio não seja formado no início da demanda, penhorado o bem de sujeito que até então não participa como parte na demanda judicial, a ciência desse ato processual deverá se realizar por meio de sua citação, o que o integrará à relação jurídica executiva supervenientemente.
Para os responsáveis patrimoniais que não têm legitimidade passiva expressamente prevista em lei, a legitimação extraordinária apresenta uma particularidade interessante, considerando-se que para esses sujeitos ela só surgirá no caso concreto quando ocorrer a efetiva constrição judicial do bem do responsável secundário." [01]
A hipoteca, como instituto jurídico de direito real de garantia (artigos 1473/1495 do Código Civil), guarda contornos próprios, sabidamente graves. Ora bem, a liberalidade do credor/exequente não pode chegar ao ponto de, excluindo da lide os devedores/garantidores hipotecários, transformar o processo em injusto meio, desconsiderando os valores mais comezinhos do contraditório e da par conditio, e, ainda, de que "a ciência moderna repudia a falsa idéia de um processo civil do autor". [02]

Assim, inegavelmente, os garantidores hipotecários devem figurar na relação jurídica processual, dado que, como adverte Neves: "No momento processual da penhora o responsável secundário é um terceiro, mas sofrendo a constrição judicial deverá ser citado na demanda executiva, passando a integrar o polo passivo como parte". [03]

A imprescindibilidade da participação dos garantidores hipotecários na lide executiva é, de igual modo, referendada pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO POR TÍTULO EXTRAJUDICIAL. GARANTIA HIPOTECÁRIA PRESTADA POR TERCEIROS. PENHORA SEM QUE OS HIPOTECANTES FIGUREM NO PÓLO PASSIVO DA EXECUÇÃO. INADMISSIBILIDADE.
A lei considera o contrato de garantia real como título executivo.

Logo, o terceiro prestador da garantia pode ser executado, individualmente. Todavia, se a execução é dirigida apenas contra o devedor principal, é inadmissível a penhora de bens pertencentes ao terceiro garante, se este não integra a relação processual executiva.

Recurso a que se dá provimento. [04]

E, ainda:
PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO AJUIZADA CONTRA O DEVEDOR. PENHORA QUE RECAI SOBRE BEM DADO EM GARANTIA HIPOTECÁRIA. AUSÊNCIA DE CITAÇÃO DO TERCEIRO GARANTIDOR. NULIDADE DA PENHORA.
1. É indispensável que o garantidor hipotecário figure como executado, na execução movida pelo credor, para que a penhora recaia sobre o bem dado em garantia, porquanto não é possível que a execução seja endereçada a uma pessoa, o devedor principal, e a constrição judicial atinja bens de terceiro, o garantidor hipotecário.
2. Recurso especial provido. [05]
Colhe-se de trecho do voto-condutor do REsp 472769, citação de Humberto Theodoro Junior (in Curso de Direito Processual Civil. V. II, 44ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 201), em que o processualista assevera:
"(...) Ressalta-se que é totalmente inadmissível pretender-se executar apenas o devedor principal e fazer a penhora recair sobre o bem de terceiro garante. Se a execução vai atingir o bem dado em caução real pelo não-devedor, este forçosamente terá de ser parte na relação processual executiva, quer isoladamente, quer em litisconsórcio como o devedor. Jamais poderá suportar a expropriação executiva sem ser parte no processo, como é obvio. (...)"
Certo é que a alienação direta de imóvel penhorado – ou por intermédio de praça/leilão –, efetivando ato executivo sobre bem daquele que sequer figura na relação jurídica processual - macula e viola a garantia fundamental do devido processo legal prevista no inciso LIV do art. 5º da Constituição, seja em sua feição formal (ao desrespeitar o procedimento legalmente e previamente estabelecido), seja na sua perspectiva substancial (porquanto dos Poderes Públicos exigem-se condutas razoáveis que assegurem o respeito aos direitos fundamentais inclusive em sua dimensão objetiva).

Vale-se, quanto ao tema, da transcrição da ementa do seguinte julgado do Supremo Tribunal Federal, relator o Ministro CELSO DE MELLO:

E M E N T A: CADIN - INCLUSÃO, NESSE CADASTRO FEDERAL, DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, POR EFEITO DE NÃO RECOLHIMENTO DE CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS, AINDA EM DISCUSSÃO NA ESFERA ADMINISTRATIVA, REFERENTES A PARCELAS DE CARÁTER NÃO REMUNERATÓRIO (ABONO-FAMÍLIA, AUXÍLIO-TRANSPORTE, AUXÍLIO-CRECHE E VALE-REFEIÇÃO) - IMPOSIÇÃO, AO ESTADO-MEMBRO, EM VIRTUDE DE ALEGADO DESCUMPRIMENTO DAS RESPECTIVAS OBRIGAÇÕES, DE LIMITAÇÕES DE ORDEM JURÍDICA - A QUESTÃO DOS DIREITOS E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS, NOTADAMENTE AQUELES DE CARÁTER PROCEDIMENTAL, TITULARIZADOS PELAS PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PÚBLICO - POSSIBILIDADE DE INVOCAÇÃO, PELAS ENTIDADES ESTATAIS, EM SEU FAVOR, DA GARANTIA DO "DUE PROCESS OF LAW" - LITÍGIO QUE SE SUBMETE À ESFERA DE COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - HARMONIA E EQUILÍBRIO NAS RELAÇÕES INSTITUCIONAIS ENTRE O ESTADO-MEMBRO E A UNIÃO FEDERAL - O PAPEL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL COMO TRIBUNAL DA FEDERAÇÃO - POSSIBILIDADE, NA ESPÉCIE, DE CONFLITO FEDERATIVO - PRETENSÃO DE ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA JURISDICIONAL FUNDADA NA ALEGAÇÃO DE TRANSGRESSÃO À GARANTIA DO "DUE PROCESS OF LAW" - SITUAÇÃO DE POTENCIALIDADE DANOSA AO INTERESSE PÚBLICO - TUTELA ANTECIPADA DEFERIDA - DECISÃO DO RELATOR REFERENDADA PELO PLENÁRIO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. CONFLITOS FEDERATIVOS E O PAPEL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL COMO TRIBUNAL DA FEDERAÇÃO. - A Constituição da República confere, ao Supremo Tribunal Federal, a posição eminente de Tribunal da Federação (CF, art. 102, I, "f"), atribuindo, a esta Corte, em tal condição institucional, o poder de dirimir controvérsias, que, ao irromperem no seio do Estado Federal, culminam, perigosamente, por antagonizar as unidades que compõem a Federação. Essa magna função jurídico-institucional da Suprema Corte impõe-lhe o gravíssimo dever de velar pela intangibilidade do vínculo federativo e de zelar pelo equilíbrio harmonioso das relações políticas entre as pessoas estatais que integram a Federação brasileira. A aplicabilidade da norma inscrita no art. 102, I, "f", da Constituição estende-se aos litígios cuja potencialidade ofensiva revela-se apta a vulnerar os valores que informam o princípio fundamental que rege, em nosso ordenamento jurídico, o pacto da Federação. Doutrina. Precedentes. A QUESTÃO DOS DIREITOS E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS, NOTADAMENTE AQUELES DE CARÁTER PROCEDIMENTAL, TITULARIZADOS PELAS PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PÚBLICO. - A imposição de restrições de ordem jurídica, pelo Estado, quer se concretize na esfera judicial, quer se realize no âmbito estritamente administrativo, supõe, para legitimar-se constitucionalmente, o efetivo respeito, pelo Poder Público, da garantia indisponível do "due process of law", assegurada, pela Constituição da República (art. 5º, LIV), à generalidade das pessoas, inclusive às próprias pessoas jurídicas de direito público, eis que o Estado, em tema de limitação ou supressão de direitos, não pode exercer a sua autoridade de maneira abusiva e arbitrária. Doutrina. Precedentes. LIMITAÇÃO DE DIREITOS E NECESSÁRIA OBSERVÂNCIA, PARA EFEITO DE SUA IMPOSIÇÃO, DA GARANTIA CONSTITUCIONAL DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. - A Constituição da República estabelece, em seu art. 5º, incisos LIV e LV, considerada a essencialidade da garantia constitucional da plenitude de defesa e do contraditório, que ninguém pode ser privado de sua liberdade, de seus bens ou de seus direitos sem o devido processo legal, notadamente naqueles casos em que se viabilize a possibilidade de imposição, a determinada pessoa ou entidade, seja ela pública ou privada, de medidas consubstanciadoras de limitação de direitos. - A jurisprudência dos Tribunais, especialmente a do Supremo Tribunal Federal, tem reafirmado o caráter fundamental do princípio da plenitude de defesa, nele reconhecendo uma insuprimível garantia, que, instituída em favor de qualquer pessoa ou entidade, rege e condiciona o exercício, pelo Poder Público, de sua atividade, ainda que em sede materialmente administrativa ou no âmbito político-administrativo, sob pena de nulidade da própria medida restritiva de direitos, revestida, ou não, de caráter punitivo. Doutrina. Precedentes. BLOQUEIO DE RECURSOS FEDERAIS CUJA EFETIVAÇÃO PODE COMPROMETER A EXECUÇÃO, NO ÂMBITO LOCAL, DE PROGRAMA ESTRUTURADO PARA VIABILIZAR A IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS. - O Supremo Tribunal Federal, nos casos de inscrição de entidades estatais, de pessoas administrativas ou de empresas governamentais em cadastros de inadimplentes, organizados e mantidos pela União, tem ordenado a liberação e o repasse de verbas federais (ou, então, determinado o afastamento de restrições impostas à celebração de operações de crédito em geral ou à obtenção de garantias), sempre com o propósito de neutralizar a ocorrência de risco que possa comprometer, de modo grave e/ou irreversível, a continuidade da execução de políticas públicas ou a prestação de serviços essenciais à coletividade. Precedentes." [grifado] [06]

A posição de Dinamarco não discrepa:

"No sistema processual, ordinariamente as normas que instituem e regem os procedimentos são portadoras de suficientes oportunidades de participação em contraditório e esse é o fator que as legitima. Elas próprias não teriam legitimidade quando deixassem de oferecer reais oportunidades de participar. Por isso, é falsa a impressão de que a observância dos procedimentos estabelecidos em lei fosse em si mesma um fator de legitimação dos atos de poder (sentenças, ordem de entrega do bem na execução forçada). Em substância, o que legitima a outorga da tutela jurisdicional é a participação que o procedimento propiciou, em associação com a observância da legalidade inerente à garantia do devido processo legal. Um processo não será justo e equo quando os sujeitos não puderam participar adequadamente ou quando, por algum modo, haja o juiz avançado além de seus poderes ou transgredindo regras inerentes à disciplina legal do processo (due process of Law)". [07]

Diante dessas considerações, não é crível supor que o Poder Judiciário, garantidor das liberdades públicas, venha a sujeitar o patrimônio (bem), de quem quer que seja, à injusta restrição, sob pena de violar o devido processo legal (formal e substancial) que deve servir de esteio à ampla defesa e ao contraditório, a par de sua natureza dialógica.

Nesse contexto, conclui-se que é indispensável a participação do devedor hipotecário na relação jurídico-processual formada com o objeto de satisfazer a dívida materializada no aludido direito real de garantia.

SCHULZE, Clenio Jair; ANDERLE, Vitor Hugo. A relação jurídica processual na alienação judicial de imóvel hipotecado. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 3089, 16 dez. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/20671/a-relacao-juridica-processual-na-alienacao-judicial-de-imovel-hipotecado>.

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