Saiu na Folha de domingo (27/3/11):
"Donos de cães com leishmaniose lutam na Justiça para livrá-los da eutanásia. Para o Ministério da Saúde, os animais devem ser sacrificados logo após o diagnóstico para evitar a contaminação de pessoas e outros animais.
A doença, causada por protozoário e transmitida pela picada do mosquito-palha, pode matar. Especialistas garantem, porém, que é possível controlá-la com remédio.
O problema é que não há drogas veterinárias aprovadas no Brasil para esse fim, e os ministérios da Saúde e da Agricultura proíbem o tratamento de cães com medicamentos destinados a humanos desde 2008. O objetivo, afirmam, é evitar que o protozoário se torne resistente.
Há duas vacinas cadastradas no Ministério da Agricultura e Pecuária para prevenir o contágio, mas não estão disponíveis na rede pública.
Em meio à polêmica, a psicóloga Márcia de Jesus, 45, de Belo Horizonte, tratou o pitbull Vlad, de oito anos, com um remédio usado para combater uma doença reumatológica em humanos.
Ela conseguiu mostrar à Justiça que o cão não tem mais sinais da doença, contraída há seis anos, e não representa perigo. Venceu a ação
Em Presidente Prudente (a 558 km de SP), a dona de casa Angela Maria da Silva, 50, ainda aguarda uma sentença que pode salvar Pluto, um SRD (sem raça definida) de sete anos, da morte.
Pluto está no canil municipal desde agosto do ano passado, sob ordem judicial. Antes disso, foi tratado com um antifúngico usado em gestantes com leishmaniose.
O Ministério da Saúde não sabe quantos cães são sacrificados por ano no Brasil por causa da doença.
O secretário nacional de Vigilância em Saúde, Jarbas Barbosa, afirma que a eutanásia é indispensável para cães doentes. "’ratá-los significa usar em larga escala os poucos medicamentos que temos para leishmaniose e, com isso, reduzir a eficácia dos produtos em humanos’".
Você já se perguntou por que animais com doenças ou problemas físicos são sacrificados, e por que seres humanos sofrendo de doenças terminais não podem ter ajuda para se matarem (eutanásia)?
A razão é que animais, para o direito brasileiro, são objetos de direito, enquanto seres humanos são sujeitos de direito. Objeto de direito é literalmente o que a palavra diz: é um objeto. Uma cadeira ou uma calça são objetos. Já o sujeito de direito é a pessoa que tem direitos e obrigações em relação a um objeto e em relação a outros sujeitos. Essas pessoas podem ser física (seres humanos) ou jurídica (empresas, associações etc) de direito privado ou público (governo).
Essa diferença é importante para entendermos porque animais podem ser sacrificados e porque seres humanos não podem sofrer a eutanásia, pelas leis brasileiras, ainda que digam com todas as palavras que querem se submeter a ela.
O principal objeto das leis é preservar nossos direitos. E nenhum direito é mais importante do que o direito à vida. Sem vida, não há como exercer qualquer outro direito. É daí, por exemplo, que vem o direito à legítima defesa, que já vimos aqui.
Mas em relação aos objetos, o pensamento é diferente. Segundo a nossa lei, eles existem para servir aos sujeitos de direito (há limitações a esse ‘servir’, que vamos ver adiante). Se sua existência gera mais risco do que segurança, mais dano do que benefício, o objeto pode ser destruídos para preservar os sujeitos de direito (as pessoas). Se uma árvore ameaça cair em cima de uma casa, ela pode ser removida pela prefeitura. Se um barraco no morro ameaça desabar, ele pode ser destruído. Eles são objetos.
É por isso que, no caso da matéria acima, os animais podem ser sacrificados pelo governo. Uma pessoa sofrendo de uma doença contagiosa não seria sacrificada pelo governo: seria submetida a uma quarentena. (para quem gosta de ficção, se a doença realmente for muito contagiosa e a pessoa se recusar a ficar em quarentena, e acaba pondo em risco a vida de outras pessoas, o governo pode 'abatê-la'). Já um animal que esteja espalhando a mesma doença pode ser sacrificado porque ele é um objeto de direito e não um sujeito de direito. Isso porque o custo de mantê-lo em quarentena não justificaria o riso de ele vir a ser a causa da morte de seres humanos.
Ora, se é assim, você pode matar o cachorro da vizinha que passa o dia inteiro latindo? Não. Os animais são objetos de direito mas, como seres vivos, são protegidos pela lei. Não porque tenham direitos, mas porque seus donos e o resto da sociedade têm direitos conectados a eles. Direitos como o da propriedade (o cachorro pertence a sua vizinha. Se você matá-lo, estará diminuindo o valor do patrimônio da vizinha e causando-lhe um dano emocional, pelos quais você terá a obrigação de pagar) e à moralidade (em uma sociedade civilizada, os animais podem até não ter direitos, mas os padrões de moralidade exigem que tais animais sejam tratados de forma adequada, não porque tenham direitos, mas porque maltratá-los desrespeitaria os parâmetros de moralidade em relação às outras pessoas). É por isso, por exemplo, que as faculdades de veterinária e os laboratórios farmacêuticos são submetidos a regras claras sobre como tratarem suas cobaias.
E o cavalo que é sacrificado porque quebrou a perna? Ele é sacrificado porque (a) a moralidade da sociedade (e isso varia ao longo do tempo e de lugar para lugar) diz que seria imoral forçá-lo a uma existência de dor e (aí entra a diferença em relação aos seres humanos em estado vegetativo) (b) não há justificativa moral ou financeira para não sacrificá-lo.
Controverso? Sim. Tanto é assim que a matéria acima dá dois exemplos de donos de animais que tentam provar que seus animais já não representam perigo e, portanto, sacrificá-los seria moralmente injustificável. E vez por outra aparece na TV alguém que foi preso por ter sacrificado seu cavalo que quebrou a perna.
Aliás, um último pensamento: você já reparou que nosso sentimento de moralidade é maior quanto mais próxima é nossa proximidade biológica com o ser em questão? Nos sentimos especialmente próximos aos demais primatas. Depois deles, outros mamíferos. Mas somos menos ligados emocionalmente a outras classes. Vemos sempre campanhas para salvar mamíferos, mas com muito menos frequência campanhas para salvar peixes ou répteis, ainda que o percentual de espécies ameaçadas dentro de cada uma dessas três classes seja idêntico: 21%. Situação ainda pior é a dos anfíbios, na qual uma em cada três espécies está ameaçada. Ou dos vermes, na qual mais de 4 em cada cinco espécies está ameaçada. A lista de espécies ameaçadas, compilada pelo IUCN (International Union for Conservation of Nature and Natural Resources) está abaixo.
"Donos de cães com leishmaniose lutam na Justiça para livrá-los da eutanásia. Para o Ministério da Saúde, os animais devem ser sacrificados logo após o diagnóstico para evitar a contaminação de pessoas e outros animais.
A doença, causada por protozoário e transmitida pela picada do mosquito-palha, pode matar. Especialistas garantem, porém, que é possível controlá-la com remédio.
O problema é que não há drogas veterinárias aprovadas no Brasil para esse fim, e os ministérios da Saúde e da Agricultura proíbem o tratamento de cães com medicamentos destinados a humanos desde 2008. O objetivo, afirmam, é evitar que o protozoário se torne resistente.
Há duas vacinas cadastradas no Ministério da Agricultura e Pecuária para prevenir o contágio, mas não estão disponíveis na rede pública.
Em meio à polêmica, a psicóloga Márcia de Jesus, 45, de Belo Horizonte, tratou o pitbull Vlad, de oito anos, com um remédio usado para combater uma doença reumatológica em humanos.
Ela conseguiu mostrar à Justiça que o cão não tem mais sinais da doença, contraída há seis anos, e não representa perigo. Venceu a ação
Em Presidente Prudente (a 558 km de SP), a dona de casa Angela Maria da Silva, 50, ainda aguarda uma sentença que pode salvar Pluto, um SRD (sem raça definida) de sete anos, da morte.
Pluto está no canil municipal desde agosto do ano passado, sob ordem judicial. Antes disso, foi tratado com um antifúngico usado em gestantes com leishmaniose.
O Ministério da Saúde não sabe quantos cães são sacrificados por ano no Brasil por causa da doença.
O secretário nacional de Vigilância em Saúde, Jarbas Barbosa, afirma que a eutanásia é indispensável para cães doentes. "’ratá-los significa usar em larga escala os poucos medicamentos que temos para leishmaniose e, com isso, reduzir a eficácia dos produtos em humanos’".
Você já se perguntou por que animais com doenças ou problemas físicos são sacrificados, e por que seres humanos sofrendo de doenças terminais não podem ter ajuda para se matarem (eutanásia)?
A razão é que animais, para o direito brasileiro, são objetos de direito, enquanto seres humanos são sujeitos de direito. Objeto de direito é literalmente o que a palavra diz: é um objeto. Uma cadeira ou uma calça são objetos. Já o sujeito de direito é a pessoa que tem direitos e obrigações em relação a um objeto e em relação a outros sujeitos. Essas pessoas podem ser física (seres humanos) ou jurídica (empresas, associações etc) de direito privado ou público (governo).
Essa diferença é importante para entendermos porque animais podem ser sacrificados e porque seres humanos não podem sofrer a eutanásia, pelas leis brasileiras, ainda que digam com todas as palavras que querem se submeter a ela.
O principal objeto das leis é preservar nossos direitos. E nenhum direito é mais importante do que o direito à vida. Sem vida, não há como exercer qualquer outro direito. É daí, por exemplo, que vem o direito à legítima defesa, que já vimos aqui.
Mas em relação aos objetos, o pensamento é diferente. Segundo a nossa lei, eles existem para servir aos sujeitos de direito (há limitações a esse ‘servir’, que vamos ver adiante). Se sua existência gera mais risco do que segurança, mais dano do que benefício, o objeto pode ser destruídos para preservar os sujeitos de direito (as pessoas). Se uma árvore ameaça cair em cima de uma casa, ela pode ser removida pela prefeitura. Se um barraco no morro ameaça desabar, ele pode ser destruído. Eles são objetos.
É por isso que, no caso da matéria acima, os animais podem ser sacrificados pelo governo. Uma pessoa sofrendo de uma doença contagiosa não seria sacrificada pelo governo: seria submetida a uma quarentena. (para quem gosta de ficção, se a doença realmente for muito contagiosa e a pessoa se recusar a ficar em quarentena, e acaba pondo em risco a vida de outras pessoas, o governo pode 'abatê-la'). Já um animal que esteja espalhando a mesma doença pode ser sacrificado porque ele é um objeto de direito e não um sujeito de direito. Isso porque o custo de mantê-lo em quarentena não justificaria o riso de ele vir a ser a causa da morte de seres humanos.
Ora, se é assim, você pode matar o cachorro da vizinha que passa o dia inteiro latindo? Não. Os animais são objetos de direito mas, como seres vivos, são protegidos pela lei. Não porque tenham direitos, mas porque seus donos e o resto da sociedade têm direitos conectados a eles. Direitos como o da propriedade (o cachorro pertence a sua vizinha. Se você matá-lo, estará diminuindo o valor do patrimônio da vizinha e causando-lhe um dano emocional, pelos quais você terá a obrigação de pagar) e à moralidade (em uma sociedade civilizada, os animais podem até não ter direitos, mas os padrões de moralidade exigem que tais animais sejam tratados de forma adequada, não porque tenham direitos, mas porque maltratá-los desrespeitaria os parâmetros de moralidade em relação às outras pessoas). É por isso, por exemplo, que as faculdades de veterinária e os laboratórios farmacêuticos são submetidos a regras claras sobre como tratarem suas cobaias.
E o cavalo que é sacrificado porque quebrou a perna? Ele é sacrificado porque (a) a moralidade da sociedade (e isso varia ao longo do tempo e de lugar para lugar) diz que seria imoral forçá-lo a uma existência de dor e (aí entra a diferença em relação aos seres humanos em estado vegetativo) (b) não há justificativa moral ou financeira para não sacrificá-lo.
Controverso? Sim. Tanto é assim que a matéria acima dá dois exemplos de donos de animais que tentam provar que seus animais já não representam perigo e, portanto, sacrificá-los seria moralmente injustificável. E vez por outra aparece na TV alguém que foi preso por ter sacrificado seu cavalo que quebrou a perna.
Aliás, um último pensamento: você já reparou que nosso sentimento de moralidade é maior quanto mais próxima é nossa proximidade biológica com o ser em questão? Nos sentimos especialmente próximos aos demais primatas. Depois deles, outros mamíferos. Mas somos menos ligados emocionalmente a outras classes. Vemos sempre campanhas para salvar mamíferos, mas com muito menos frequência campanhas para salvar peixes ou répteis, ainda que o percentual de espécies ameaçadas dentro de cada uma dessas três classes seja idêntico: 21%. Situação ainda pior é a dos anfíbios, na qual uma em cada três espécies está ameaçada. Ou dos vermes, na qual mais de 4 em cada cinco espécies está ameaçada. A lista de espécies ameaçadas, compilada pelo IUCN (International Union for Conservation of Nature and Natural Resources) está abaixo.
Fonte: http://direito.folha.com.br/1/post/2011/04/voc-j-se-perguntou-por-que-animais-podem-ser-sacrificados-e-seres-humanos-no.html
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