terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Pode configurar perturbação do sossego (silêncio) dentro do horário permitido?


Direito de vizinhança, os ruídos excessivos dentro do horário permitido, há de ser tolerado?

Publicado por Raphael Faria

É inevitável que o exercício do direito de propriedade, por mais amplo que seja, há restrições e limitações fundadas em interesses de ordem pública e de ordem privada. Não basta o interesse social em torno da propriedade descrito constitucionalmente, a coexistência de vários prédios próximos, a vizinhança a coletividade, a disciplina urbana traduz parte dessas restrições.

O Código Civil, sob o título, do uso anormal da propriedade, dispõe no artigo 1.277:

Art. 1.277. O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha.

Parágrafo único. Proíbem-se as interferências considerando-se a natureza da utilização, a localização do prédio, atendidas as normas que distribuem as edificações em zonas, e os limites ordinários de tolerância dos moradores da vizinhança.

As interferências ou atos prejudi­ciais à segurança, ao sossego e à saúde capaz de causar conflitos de vizinhança podem ser classificados em três espécies: ilegais, abusivos e lesivos.

Abusivos são os atos que, embora o causador do incômodo se mantenha nos limites de sua propriedade, mesmo assim vem a prejudicar o vizinho, muitas vezes sob a forma de barulho excessivo. Consideram-se abusivos não só os atos praticados com o propósito deliberado de prejudicar o vizinho, senão também aqueles em que o titular exerce o seu direito de modo irregular, em desacordo com a sua finalidade social.

Ilegais são os atos ilícitos que obrigam à composição do dano, nos termos do art. 186 do Código Civil, como, por exemplo, atear fogo no prédio vizinho. Ainda que não existisse o supratranscrito art. 1.277, o prejudicado estaria protegido pela norma do art. 186, combinada com o art. 927, caput, do mesmo diploma, que lhe garantem o direito à indenização. Se o vizinho, por exemplo, danifica as plantações de seu confinante, o ato é ilegal e sujeita o agente à obrigação de ressarcir o prejuízo causado.

Esclarece Orlando Gomes que:“o conceito de uso nocivo da propriedade determina-se relativamente, mas não se condiciona à intenção do ato praticado pelo proprietário. O propósito de prejudicar, ou incomodar, pode não existir e haver mau uso da propriedade”.[1]

É importante perceber, de pleno, que os chamados direitos de vizinhança são direitos de convivência decorrentes da proximidade ou interferência entre prédios, não necessariamente da contiguidade (lado a lado/ superior ou inferior). Os danos e desassossegos ocasionados por um prédio a outro decorrem, de fatos ou atos jurídicos.

As regras de vizinhança têm por objetivo harmonizar a vida em sociedade e o bem-estar, sem deixar margem as finalidades do direito de propriedade. Assim sendo, o artigo 1.277 já acima citado, atingem o proprietário, possuidores detentores e usuários em geral.

Tratando-se de situação presente e continuativa de prejuízo à segurança, sossego e a saúde do vizinho, e que se trata de ação é tipicamente de vizinhança, nos termos do artigo 1.277 do Código Civil.

Para o ministro Sidnei Beneti, da 3ª turma do STJ, "a casa é, em princípio, lugar de sossego e descanso, se o seu dono assim o desejar". Apesar disso, interferências sempre haverá. Algumas dessas interferências precisam ser toleradas para que o convívio entre vizinhos não vire uma guerra. Entretanto, nem todos têm a noção de que, para viver bem em comunidade, é necessário agir pensando no coletivo. De acordo com a ministra Nancy Andrighi, também da 3ª turma, "nosso ordenamento coíbe o abuso de direito, ou seja, o desvio no exercício do direito, de modo a causar dano a outrem".

O remédio processual será ação de obrigação de fazer ou não fazer, com cominação de multa diária (ação de efeito cominatório), resumindo-se em uma indenização final dos prejuízos, pedido indenizatório esse que pode vir cumulado. Pede-se cessação dos fatos ou atos perturbadores e a indenização pelos prejuízos já causados.

No chamado conflito de vizinhança, é sempre necessário que um ato praticado pelo possuidor de um prédio ou estado de coisas por ele mantido vá exercer seus efeitos sobre o imóvel vizinho, causando prejuízo ao próprio imóvel ou incômodo a seu morador[2]. Como percebemos nesse conceito, o festejado monografista, ao se refletir a estado de coisas mantido pelo vizinho, reporta-se inelutavelmente aos fatos jurídicos por nós mencionados causadores do incomodo ou danos. Assim, os efeitos do ato ou do fato atingem diretamente o próprio imóvel, desvalorizando-o, colocando em risco de ruina ou impedindo sua utilização normal, problemas cujos reflexos incidem, em última análise, sobre seu proprietário, morador ou usuário.

Portanto, têm sempre em mira a necessidade de conciliar o exercício do direito de propriedade com relação a vizinhança, uma vez que sempre é possível o advento de conflitos entre os confinantes.

Como bem esclarece Washington de Barros Monteiro:“Os direitos de vizinhança constituem limitações impostas pela boa convivência social, que se inspira na lealdade e na boa-fé. A propriedade deve ser usada de tal maneira que se torne possível a coexistência social. ”[3]

Os direitos de vizinhança são obrigações propter rem, porque vinculam os confinantes, acompanhando a coisa. Obrigações dessa natureza só existem em relação à situação jurídica do obrigado, de titular do domínio ou de detentor de determinada coisa, e, portanto, de vizinho.

Como acontece com toda obrigação propter rem, a decorrente das relações de vizinhança se transmite ao sucessor a título particular. Por se transferir a eventuais novos ocupantes do imóvel (ambulat cum domino), é também denominada obrigação ambulatória.

Podemos distinguir, entre as limitações impostas aos vizinhos, as regras que geram a obrigação de permitir a prática de certos atos, sujeitando o proprietário a uma invasão de sua esfera dominial, das que criam o dever de se abster da prática de outros.

Dentre as limitações, notam-se as regras que determinam uma abstenção, apontam-se a proibição imposta ao proprietário de fazer mau uso de seu prédio, suscestível de prejudicar a saúde, o sossego ou a segurança do vizinho, conforme o artigo art. 1.277 supracitado.

Como se observa, o critério de verificação é eminentemente objetivo, descabendo alegação de erro ou ignorância. É o fato, por si só, “condição necessária e suficiente para dar ensejo à verificação do direito subjetivo de vizinhança apto a implicar a cessação de interferência. Afasta-se, pois, uma verificação dos motivos ou razões para esse efeito, qual seja, o de constatação quanto à existência da situação jurídica respectiva”[4].

A teoria do abuso do direito é, hoje, acolhida em nosso direito, como se infere do art. 187 do Código Civil, que permite considerar ilícitos os atos praticados no exercício irregular de um direito.

São lesivos os atos que causam dano ao vizinho, embora o agente não esteja fazendo uso anormal de sua propriedade e a atividade tenha sido até autorizada por alvará expedido pelo Poder Público.

Os atos ilegais e abusivos estão abrangidos pela norma do aludido art. 1.277, pois neles há o uso anormal da propriedade. O dispositivo em apreço confere não só ao proprietário como também ao possuidor o direito de fazer cessar as interferências ilegais ou abusivas provocadas pela utilização da propriedade vizinha, em detrimento de sua segurança, de seu sossego e de sua saúde.

Ruído

No senso comum, a palavra ruído significa barulho, ou som indesejado por assim dizer, uma poluição sonora[5].

Embora o barulho, ou ruído seja realizado dentro do horário permitido, não anula os transtornos e as aflições sofridas pelos moradores que sofrem tal perturbação.

Um exemplo que pode ser dado, é em um condomínio, o morador, proprietário, etc; sofre perturbações em seu lar devido a quadra de esportes do condomínio se situar sobre seu teto. Mesmo nos horários permitidos, tais ruídos de jogos, excessivamente altos, causam perturbações aflitivas aquele que reside abaixo da quadra esportiva.

Bem sabemos que os art. 1.335 e 1.336, deve ser respeitado no condomínio, que se impõe ônus normais a todos os condôminos do prédio. Todos esses fatos e certezas necessários, previsíveis e esperados pelos moradores vizinhos são reputados como normais, devendo por isso serem aceitos e tolerados por ele. Os atos aqui colocados em discussão são os não tolerados, os que excederam á normalidade dos ruídos esperados, sendo por isso considerados irregulares, anormais e reprimíveis nas relações de vizinhança.

Ao tratar dos direitos de vizinhança, Carlos Roberto Gonçalves preleciona: “que as situações que não podem ser aplicadas à expressão mau uso da propriedade, prevista no artigo 1.277 do Código Civil, por existir uso não abusivo dela, as havendo prejuízo do vizinho, devem ser solucionadas pela jurisprudência”. Acrescenta: “a vida em sociedade impe às pessoas a obrigação de suportar incômodos, desde que não ultrapassem os limites do razoável e do tolerável, constituindo ofensas ao sossego, ruídos exagerados, gritarias, festas ruidosas etc.”. Ao se referir a Sá Pereira, citado por Carvalho Santos nos informa: “O ruído ensurdecedor de uma ou mais forjas, certo que perturba o sossego e prejudica a atividade do espírito”. Mais adiante, acrescenta: “É reprimível o incomodo anormal e intolerável, pois excedem as medidas da normalidade”[6].

Ao tratar da responsabilidade civil por danos a vizinhos e a terceiros, o mesmo autor preleciona: “que estes danos hão de ser ressarcidos por quem causa e por quem aufere os proveitos da construção”. (...) “que a jurisprudência pátria tem entendido que a responsabilidade solidária do construtor e proprietário decorre da simples nocividade da obra, independentemente da culpa de qualquer deles. (...) e porque é solidária, aquele que pagar sozinho a indenização terá direito de exigir o outro a sua quota, cabendo ação regressiva do proprietário contra o construtor culpado, para haver dele o que pagou”[7].

Assim sendo, a responsabilidade independe de culpa, decorrendo do próprio direito de vizinhança. (TA-RS, Ap. 190.003.418, Rel. Emane Graeff, ac. 26.04.1990, Revista Jurídica 158/92).

Uso anormal é tanto o ilícito como o abusivo, em desacordo com sua finalidade econômica ou social, a boa-fé ou os bons costumes. Preleciona Washington de Barros Monteiro que, “se normal, regular, ordinário e comum o uso da propriedade, sem que se lhe increpe qualquer excesso malicioso ou intencional, se tem como justo e jurídico; se, porém, nele se vislumbra qualquer exorbitância, qualquer exagero, suscetível de ser remediado ou atenuado, mas não foi, o uso será nocivo, ilícito, condenado pelo direito”[8].

Como acentua Hely Lopes Meirelles, “que tudo em derredor se imobilize e se cale. O que a lei confere ao vizinho é o poder de impedir que os outros o incomodem em excesso, com ruídos intoleráveis, que perturbem o sossego natural do lar, do escritório, da escola, do hospital, na medida da quietude exigível para cada um destes ambientes”[9].

Evidencia-se Alvino Lima[10] “em que a teoria da immissio sob o critério da anomalia, ou intolerância, em virtude do dano excessivo sofrido pelo proprietário vizinho é a consagração da responsabilidade sem culpa, não se indagando nem se admitindo a escusa da responsabilidade sem culpa, não se indagando nem se admitindo a escusa da responsabilidade sob o fundamento de que todas as precauções foram tomadas para evitar qualquer lesão do direito alheio, finalizando que o critério da anormalidade e da intolerância e objetivo, atendendo ao local, situação e natureza do imóvel”. Assim independe do horário, da permissão, da convenção do condomínio, sendo os ruídos anormais, intoleráveis aos vizinhos, trazendo danos a eles, e proveito a aquele que ocasiona o barulho (ruído), há de ser cessado o barulho, e quaisquer atividades oriundo deste. E assim, os vizinhos que foram perturbados, deverão ser indenizados.

Mesmo que os ruídos, seja exercido dentro do horário permitido, vindo a causar dano ao vizinho caracteriza-se uso excepcional e anormal da propriedade, em que a relação de equilíbrio entre os vizinhos, foi rompida, estando a responsabilidade civil, e a obrigação de fazer para que cesse o incomodo, evidenciado, tendo por incomodo excepcional e anormal sofrido pelo vizinho e não motivada pela prática de ato nocivo (ilegal).

Assim, a responsabilidade civil do proprietário, possuidor, inquilino, usuário, etc., relativa à reparação dos danos sofridos, nas relações de vizinhança, vem buscando fundamentos, na doutrina e na jurisprudência, a serem justificados pela responsabilidade objetiva, numa tentativa, de alertar os vizinhos dos limites dos seus direitos, que implicam no respeito aos critérios da razoabilidade nas relações de vizinhança, independentemente de análise subjetiva da conduta do agente, causador dos danos aos vizinhos.

Assim, conclui-se que qualquer ruído, barulho mesmo dentro do horário permitido, se caracteriza como imissão ou interferência, pois, socialmente houve uma alteração incomoda na vida dos vizinhos que sofreram perturbação em seu lar, visto que foi produzida por elementos que penetraram no interior de seu apartamento por atividades de seu vizinho agente do dano, que podem ser configurados em danos patrimoniais e extrapatrimoniais.

Sendo este ruído/barulho, mesmo nos horários permitidos, ser excessivos, constantes e diários, causados pelo vizinho- causador, trazendo aflição, desconforto embarca, que este vizinho que sofre abalo, poderá ser reparado civilmente quer por danos morais e/ou patrimoniais, tendo em vista a proteção da Constituição, em seu artigo , V e X.

Assim, aquele que sofre perturbação em seu lar, por barulhos, ruídos, mesmo dentro do horário permitido (06-22 horas dias de semana/ 08-21 horas em finais de semana e feriado), podem ingressar com ação, conforme citado acima, buscando compensação pelos danos morais e materiais, posto que o direito de vizinhança, nessas circunstâncias, protege as situações de dano, objetivamente, não tendo que se valer para a solução dos conflitos, de critérios da responsabilidade subjetiva, pautados em análise da culpa.

A ação apropriada para a tutela dos direitos mencionados é a cominatória, na qual se imporá ao réu a obrigação de se abster da prática dos atos prejudiciais ao vizinho, ou a de tomar as medidas adequadas para a redução do incômodo, sob pena de pagamento de multa diária.

A ação em apreço tem sido admitida também contra interferências prejudiciais nos casos de mau uso da propriedade vizinha, que prejudique o sossego, a segurança e a saúde do proprietário ou inquilino de um prédio. Veja-se: “Direito de vizinhança. Ação de dano infecto. Direito do proprietário ou inquilino de prédio, de impedir que o mau uso da propriedade vizinha venha a causar prejuízos quanto à segurança, ao sossego e à saúde. Possibilidade de o proprietário exigir que o dono do prédio vizinho lhe preste caução pelo dano iminente”[11].

[1] Direitos reais, p. 224.

[2] DANTAS, San Tiago. Conflito de vizinhança e sua composição. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1972. P. 20.

[3] Curso de direito civil, v. 3, p. 135.

[4] Luiz Edson Fachin, Comentários ao Código Civil, v. 15, p. 3.

[5] som de pouca intensidade, confuso; som produzido pelo choque entre objetos; estrondo; estrépito; qualquer som sem harmonia; boato; som desordenado de muitas vozes; alvoroço; tumulto; ato que atrai o público; escândalo; grande pompa; ostentação; som indesejado ou impertinente à música

[6] Direito das Coisas- Doutrina, jurisprudência, Seleções, 1979, p. 178-179, 181, 184).

[7] Op. Cit. Responsabilidade Civil, Saraiva, 1995, p. 296 a 298.

[8] Curso, cit., v. 3, p. 137.

[9] Direito de construir, p. 21.

[10] Culpa e risco, 2ª Ed. Aualizada por Ovídio Rocha Barros Sandoval, RT, 1988, p. 167 a 178 e 310/11.

[11] RT, 814/338.


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