sábado, 28 de janeiro de 2012

A classificação dos programas de Rádio e TV (André Ramos Tavares)

Encontra-se em julgamento pendente no Supremo Tribunal Federal a ADIn nº 2404, sob a relatoria do Ministro Dias Toffoli, cujo polêmico objeto diz respeito ao dilema entre liberdade e tutela estatal direta, mais especificamente, entre a liberdade de comunicação versus a proteção da criança e do adolescente em face da classificação de horário dos programas de rádio e TV de acordo com seu conteúdo, conforme o Ministério de Justiça.
Essa ação que tramita no S.T.F. desde fevereiro de 2001 foi proposta pelo Partido Trabalhista Brasileiro, tendo sido admitidos na qualidade de  amicus curiae: Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT), Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI), Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), Instituto Alana e Conectas Direitos Humanos realçando a relevância e repercussão do tema.
O pedido da ADI nº 2404 é a declaração de inconstitucionalidade do trecho "em horário diverso do autorizado" do art. 254 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8069/90) que dispõe:
"Art. 254. Transmitir, através de rádio ou televisão, espetáculo em horário diverso do autorizado ou sem aviso de sua classificação:
Pena - multa de vinte a cem salários de referência; duplicada em caso de reincidência a autoridade judiciária poderá determinar a suspensão da programação da emissora por até dois dias".
Foram apresentados como fundamentação da inconstitucionalidade os arts. 5º, IX, 220 e 21, XVI da Constituição brasileira, que representam a liberdade de expressão, a comunicação livre de censura ou de licença e a atribuição meramente indicativa à União para classificar os programas transmitidos pelas emissoras de rádio e televisão.
Foi arguida uma preliminar pela Presidência da República e pela Procuradoria-Geral da República consistente em supostamente não ter sido impugnado todo o complexo normativo do tema, já que este seria composto - além do art. 254, efetivamente indicado na petição inicial - também pelos arts. 74 a 76 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Mas o relator a afastou, por considerar que, apesar de os outros dispositivos mencionados se referirem ao mesmo âmbito protetivo, o art. 254 seria dotado de autonomia suficiente para ser isoladamente objeto de controle.
Diante do dilema entre a tutela e intervenção estatal e as liberdades, o relator identifica no sistema de classificação indicativa o "ponto de equilíbrio tênue, e ao mesmo tempo tenso, adotado pela Carta da República para compatibilizar esses dois axiomas, velando pela integridade das crianças e dos adolescentes sem deixar de lado a preocupação com a garantia da liberdade de expressão".
Buscou no direito comparado outros sistemas de proteção com base na autorregulação e em tecnologias que permitem o controle, pelos pais da programação a ser assistida pelas crianças e adolescentes, deixando claro que não se trata de afastar das emissoras a responsabilidade por sua programação e o respeito às crianças e adolescentes, mas sublinhando, ao contrário, que pela autorregulação amplia-se essa responsabilidade, apenas retirando-se do Estado essa responsabilidade e poder de ditar o horário da programação. Restaria a função indicativa, que norteará os responsáveis na educação das crianças e adolescentes, faceta esta ancorada nos arts. 220, §3º e 221 da Constituição brasileira, que destina à pessoa e à família a defesa de programas de rádio e televisão que contrariem os princípios constitucionais da produção e programação das emissoras, além de propaganda de produtos nocivos.
Embora a Constituição brasileira tenha destinado ao Estado a classificação indicativa, o Ministro relator realçou que "O modelo de classificação eminentemente estatal, como o brasileiro, está distante das tendências dos marcos regulatórios de muitas democracias ocidentais", e diante do dilema afirmou que "Toda a lógica constitucional da liberdade de expressão, da liberdade de comunicação social, volta-se para a mais absoluta vedação dessa atuação estatal".
No mérito, o Ministro votou pela procedência da ação direta, cominando à expressão "em horário diverso do autorizado" contida no art. 254 do Estatuto da Criança e do Adolescente, a nota da inconstitucionalidade.
Os Ministros Luiz Fux, Cármen Lúcia e Ayres Britto acompanharam o relator frisando que a Constituição optou por reconhecer ao Estado a classificação meramente indicativa, determinando à família seu efetivo controle. O Ministro Joaquim Barbosa pediu vista, suspendendo, assim, o julgamento.
O tema, como se percebe, é de grande alcance e merece a atenção de todos operadores do Direito, bem como da sociedade e, particularmente, da família brasileira. Se o ponto de equilíbrio entre "valores" constitucionais diversos é delicado, a decisão apontada, ainda que seja a mais adequada na perspectiva constitucional, não significará, necessariamente, no plano prático, o equacionamento de todas dificuldades envolvidas nessa temática, que haverá de passar, ainda, pela consolidação, no Brasil, do sentido e da efetividade de uma autorregulação, bem como pela responsabilidade social e educativa da famíla.

Jornal Carta Forense, terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Prova pericial médica: proposta de atenuação da regra do art. 434 do CPC para maior eficiência do sistema

Recebo a notícia de que o Ministério Público ajuizou no dia 17/8 ação civil pública em desfavor do Instituto de Medicina Social e de Criminologia (IMESC), em razão da excessiva demora na realização de perícias médicas em favor dos beneficiários da assistência judiciária gratuita.
Segundo o que se noticiou, a demanda é resultado de inquérito civil instaurado para apurar as condições de funcionamento daquele órgão (autarquia estadual paulista), a partir de informações de atrasos no atendimento às requisições judiciais provenientes de processos em que as partes eram beneficiárias da gratuidade. Teria havido tentativa de celebração de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) que, contudo, não chegou a se concretizar.
A demanda busca seja imposto o dever de finalizar perícias requisitadas até o final do ano de 2010, nos seguintes prazos: todos os casos de 2006 deverão estar concluídos até 30 de novembro de 2011; e todos os casos de 2007, 2008, 2009 e 2010 deverão estar concluídos até 31 de dezembro de 2012. Também se pede que a Justiça obrigue o IMESC a manter, durante o período dedicado ao atendimento das requisições atrasadas, a rotina estabelecida para todos os casos novos, tanto de investigação de paternidade como de medicina legal, cumprindo em prazos razoáveis as requisições judiciais de agendamento de perícias e de emissão de laudos, inclusive de complementação de quesitos.  Também há notícia de pedido para que o Executivo destine os recursos orçamentários e financeiros necessários para que o órgão possa realizar as perícias em tempo compatível com os prazos pedidos na demanda.
Sem comentar o conteúdo do processo (até porque é feito em andamento), a notícia é relevante porque envolve discussão acerca do estabelecimento de verdadeira política pública, ainda que de forma reflexa ou indireta: embora o resultado pretendido seja "processual", é fato que as decisões judiciais têm um caráter instrumental e se destinam à efetivação de direitos ligados à integridade moral e física dos cidadãos. A atividade do IMESC não deixa, em certo sentido, de integrar o sistema de saúde pública e, portanto, as importantes questões relativas à fixação judicial de políticas públicas pelo Judiciário deverão emergir nesse processo.
Mas, aproveito a notícia para levantar outra questão, que me parece igualmente relevante.
Embora a notícia se refira apenas a casos de Justiça gratuita, é fato que, mesmo quando isso não ocorre e diante da regra do art. 434 do CPC, a nomeação de peritos médicos recai essencialmente sobre integrantes de estabelecimentos oficiais; no caso de São Paulo, do IMESC.
Justificar-se-ia a opção do Legislador no elevado grau de especialização de profissionais atuantes em referidos órgãos, na consideração de que aí se exercita função pública - a sugerir maior grau de isenção e de segurança técnica - e no barateamento dos custos.
Contudo, já defendi a superação da regra nas hipóteses em que as partes têm condições de suportar os custos da prova (Cf. Antecipação da prova pericial médica sem o requisito da urgência: análise à luz da regra do art. 434 do CPC, in Direito à Vida e à Saúde - Impactos Orçamentário e Judicial, organizadores: Ana Carla Bliacheriene e José Sebastião dos Santos, São Paulo, Atlas, 2010) e, ao ensejo do fato noticiado, tomo a liberdade de reiterar aqui os argumentos - em algumas passagens de forma literal ao que já foi escrito - para defender a conveniência, nesses casos, de nomeação de peritos fora dos quadros estatais.
Primeiro, sem desconsiderar a importância da qualificação técnica do perito, também é preciso levar em conta a confiança que o juiz deposita no experto. E isso pode ocorrer com a mesma intensidade quando se trata de técnico não estatal.
Segundo, ainda que seja correto presumir que os técnicos admitidos a prestar serviços em órgãos públicos tenham elevado grau de especialização, isso não exclui que igual ou até superior excelência seja encontrada em profissionais que desempenham sua atividade no âmbito privado.  

Terceiro, o exercício da função pública não é, só por si, garantia de isenção, assim como a origem privada do perito não é apta a colocar em dúvida sua imparcialidade. Essa última não depende da vinculação funcional do técnico porque, num primeiro momento, importa que ele seja isento sob a ótica objetiva e subjetiva. Aliás, a depender das partes envolvidas - por exemplo, litígios envolvendo a Fazenda Pública - a condição de funcionário público poderia até mesmo configurar um óbice à isenção do técnico.
Quarto, o argumento da redução de custos é relativo porque o fato de o Estado suportar os respectivos encargos naturalmente não os faz desaparecer. Nem mesmo existe a garantia de que, prestado o serviço pelo órgão público, a tarefa será cumprida de forma mais rápida e eficiente. A propositura da supra referida ação civil pública é prova cabal do contrário.
Quinto, não colhe o argumento de que as matérias mencionadas pelo art. 434 do CPC teriam tal relevância que isso justificaria restringir a perícia a órgãos públicos. A relevância desta ou daquela matéria é relativa. Para as partes, por exemplo, ela sempre será a mais relevante. Mas, mesmo sob a ótica estatal, questões técnicas em outras searas podem ser tão ou mais relevantes para o interesse público: é pensar, por exemplo, em perícia de engenharia que busca determinar se houve, ou não, superfaturamento em obra pública.
Tudo isso, enfim, justifica dizer que, não obstante a regra do art. 434 do CPC recomende a preferência, isso não vincula o juiz, que tem a liberdade de nomear perito fora do âmbito restrito previsto pelo dispositivo legal. Então, firmada a premissa de que se trata de faculdade - e não de dever - do magistrado, é lícito exortar o Poder Judiciário a dar à regra do art. 434 do CPC uma interpretação em consonância com a idéia de universalidade do direito à prova e efetivo acesso à Justiça. E isso pode e deve ocorrer mediante a nomeação de peritos que atuam no âmbito privado, tal como reiteradamente ocorre, por exemplo, em perícias de engenharia e contábeis, apenas para lembrar duas das mais importantes e corriqueiras.  

Flávio Luiz Yarshell
Jornal Carta Forense, sexta-feira, 2 de setembro de 2011