quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

O débito e crédito conjugal (Rolf Hanssen Madaleno)

Os cônjuges e conviventes quando celebram sua união exteriorizam socialmente a sua estável relação afetiva e movimentam o inquestionável propósito de conferir estrutura social e jurídica ao seu vínculo de amor. Eles externam paixão e amor numa só carne, num consórcio proposto para constituir família, perpetuar a espécie, ajudar-se mediante socorros mútuos a suportar o peso da vida e para compartir seu destino comum. Cônjuges e conviventes doam muito de seu tempo e o extremo de sua atenção à unidade afetiva formada com o propósito de permanência, exclusividade e com renúncia à primitiva liberdade antes desfrutada. Surgem entre os parceiros direitos e deveres de conteúdo ético, jurídico, econômico e moral, que se tornam regras obrigatórias para os partícipes dessa relação sustentada no afeto. Não se trata de dizer que marido e esposa têm os mesmos direitos e deveres em razão da sua união, até porque, ambos devem ser destinatários de paritário tratamento jurídico e social. A crescente valorização das pessoas que se unem em sociedade conjugal inspira a sua existência, e se surgir alguma decepção pessoal que implique no término da união, que o casal se afaste sem traumas, sem cobranças, com dignidade e sem nenhum ressentimento pessoal capaz de conduzi-los a uma tola e desnecessária dramatização da sua separação. Os casados ou conviventes têm vínculos jurídicos, morais e sociais que brotam como condutas indissociáveis de qualquer par afetivo. Na contabilidade do relacionamento conjugal, ou de convivência estável os amantes atuam simultaneamente, como sujeitos ativos e passivos de um preconcebido regramento de conduta matrimonial.

O balancete matrimonial
A unidade e a conservação da família faziam com que a sociedade e a lei preferissem entregar a chefia da sociedade conjugal ao marido, supondo o legislador que a experiência do homem fora do lar e seu melhor tirocínio no mundo dos negócios, o habilitavam naturalmente ao exercício da chefia da sociedade conjugal. Em contrapartida, a mulher melhor dirigia suas prendas e seus dotes para as atividades domésticas, para com os cuidados na boa educação e na formação cultural da prole familiar. E assim se relacionavam homem e mulher envoltos nessas habituais diferenças nascidas de secular cultura social, que empurrava a mulher para uma posição de incontestável inferioridade jurídica e social. Na contabilidade conjugal os valores do gênero feminino outorgavam mais direitos ao marido e mais deveres para a mulher, tolerando ela os erros e os deslizes do homem e tendo ele baixíssima tolerância com as faltas, os erros e os desvios da mulher. Sendo pessoa dependente economicamente, a mulher tinha atuação e liberdade limitadas que restringiam sua capacidade de ação, em relação nada saudável a gerar mal-estar e frustração. A sociedade brasileira tolerou por diversas gerações a exploração psíquica da fragilidade sexual da mulher, apenas por sua falta de recursos financeiros, que a tornou materialmente improdutiva e economicamente dependente.
O débito e crédito conjugal
O dilema que enfrentavam as sociedades conjugais inspiradas na forma cristã do casamento para toda a vida, e por toda a vida dependente do dinheiro conquistado pelo homem parece haver cedido para o vigente texto constitucional, que ao menos no plano jurídico não mais deixa qualquer dúvida da plenitude da igualdade do par convivente ou conjugal. O amor e o sexo foram domesticados, sistema de autoritarismo marital singrou para formulações conjuntas, projetando o diálogo como natural porto de partida rumo à verdadeira felicidade nupcial, sem chefes nem caciques, sem privilégios ou opressões, numa contabilidade onde o homem não dispõe de créditos que contabiliza ao seu critério, e com os seus números, deixando a mulher sempre em completo débito conjugal. A contar da Carta Federal de 1988, homem e mulher são considerados iguais para a contabilidade do matrimônio e cresce o papel da mulher a caminho da equalização com o homem. Qualquer desconsideração dos deveres e direitos dos casais importa em infração nupcial que serve como causa para a litigiosa separação. Surge nova tábua de valores da sociedade conjugal e da união de afetos da estável convivência, devendo tudo ser decidido de comum acordo. Diferente de ontem, o afeto é o acalanto da felicidade e interage de modo livre, sem qualquer interferência espúria no ajuste do fiel equilíbrio do balancete que analisa os débitos e créditos da relação conjugal.

A co-participação da sociedade conjugal
Não há espaço e nem trânsito para a prestação forçada do débito da esposa e do incondicional crédito conjugal do varão. A relação dos cônjuges e daqueles casados na união informal está edificada numa saudável convivência, indiferente à culpa que pudesse ser extraída dos erros de percurso dos casados conjugais, e independente do eventual desequilíbrio econômico que pudesse fazer questionar sobre diferenças, a recriarem o oculto e insidioso poder do dinheiro nas relações amorosas. Devendo a mulher também se dedicar ao trabalho externo, homem e mulher qualificam suas relações motivadas tão-só pelas razões de espírito, sem espaço e paciência para antigas inclinações de subserviência, que já não mais se encaixam nessa nova contabilidade conjugal. É seguro deduzir que somente o amor deve seguir servindo como diuturno acalanto da vida conjugal. Portanto, a vida cotidiana ensina e a doutrina ensaia, que direitos e deveres de conteúdo espiritual e econômico, caminham rigorosamente entrosados, partilhando igualdades e respeito comum, sem lugar para privilégios ou primazias. Homem e mulher se liquefazem e se completam, fundindo-se numa só alma, num só corpo e num só espírito, que irradia respeito recíproco, que transforma preceitos de débito e de crédito num desejo espontâneo de atrair corações apaixonados para o saudável e pródigo exercício de uma vitoriosa e estável relação conjugal.

Jornal Carta Forense, quarta-feira, 1 de abril de 2009

Indenização por abandono afetivo: possibilidade (Rolf Hanssen Madaleno)

A importância do afeto
Volta e meia, juízes e tribunais têm se deparado com demandas buscando atribuir valor venal à negligência do afeto em postulações fundadas no inarredável princípio da dignidade da pessoa humana, e no valor supremo de uma paternidade responsável, sobretudo, quando também é dever primordial da família, da sociedade e do Estado colocar a criança e o adolescente a salvo de toda a forma de negligência, crueldade ou opressão.
A omissão injustificada de qualquer dos pais no provimento das necessidades físicas e emocionais dos filhos sob o poder parental tem propiciado o sentimento jurisprudencial e doutrinário de proteção e de reparo ao dano psíquico causado pela privação do afeto na formação da personalidade da pessoa.  
O amor que molda a estrutura psíquica da prole é construído no cotidiano dos relacionamentos e é particularmente favorecido pela unidade afetiva dos pais, sabendo-se que a separação gera para os filhos dolorosas mudanças na reconstrução afetiva dos pais.
Não é nada incomum deparar com casais apartados, usando os filhos como moeda de troca, agindo na contramão de sua função parental e pouco se importando com os nefastos efeitos de suas ausências; suas omissões e propositadas inadimplências dos seus deveres. Terminam os filhos experimentando vivências de abandono, mutilações psíquicas e emocionais causadas pela rejeição de um dos pais, refletindo na auto-estima e o amor próprio do filho enjeitado pela incompreensão dos pais.  
Um olhar no passado
Ao tempo do Código Civil de 1916 pertencia ao esposo o poder diretivo de toda a família e à mulher e aos filhos, competia tão-somente aceitar que deviam obediência ao pater familiae, a bem da paz, da harmonia e da felicidade familiar.
Os tempos remodelaram a estrutura familiar e nos dias de hoje, não existe mais espaço para modelos que outorguem ao pai a livre decisão de se ausentar como genitor, porquanto a família tem como essência e razão de existência a sua comunhão espiritual, onde mulher e homem trabalham em igualdade de direitos, princípios, valores e oportunidades, em uma atmosfera que visa o crescimento e a fortificação da unidade familiar.
O revogado pátrio poder
O pai era o patrão dos filhos e deles tinha o direito de exigir obediência e respeito, e seria inimaginável pensar em impor qualquer espécie de dano por agravo moral intrafamiliar, em um contexto de absoluta hierarquia e de incontestável subordinação ao provedor da família, que estava habilitado por lei e pela realidade sócio-familiar a exercer com exclusiva a sua autoridade.   
Uma nova legislação brasileira passou a valorizar o indivíduo dentro do núcleo familiar e a tutelar a dignidade humana da pessoa, passando a impor o dano com fundamento no abuso de direito e não mais no mero ato ilícito.
O abuso do direito
Os filhos têm o direito à convivência com os pais e têm a necessidade inata do afeto do seu pai e da sua mãe, porque cada genitor tem uma função específica no desenvolvimento da estrutura psíquica da prole. 
Em razão disso, tem gravíssima repercussão negativa qualquer injustificada frustração ao exercício do direito de visitas e do poder parental, quando os pais se omitem deste fundamental ditame da consciência e da natureza, cuja ausência consciente implica assumir a responsabilidade por irreparáveis efeitos negativos no resto da vida dos filhos, com sintomas de depressão, ansiedade, tristeza, insegurança e complexo de inferioridade na comparação com seus conhecidos e amigos.
Deixou a família de ser imune ao direito de danos, encontrando o pedido de indenização o seu fundamento não exatamente no ato ilícito, mas no abuso do direito previsto no art. 187 do Código Civil brasileiro, ainda que exclusivamente moral.
O abuso do direito independe da culpa, pois sua noção extrapola a teoria da responsabilidade civil. Trata da imposição de restrições éticas ao exercício de direitos subjetivos, tendo em conta que no âmbito do conteúdo do direito de visitas e na obrigação de comunicação com seus filhos, existem espaços que não podem ser relegados e barreiras que não podem ser ultrapassadas.
E no abuso do direito a pessoa justamente excede as fronteiras do exercício de seu direito, sujeitando-se às sanções civis, que passam pelas perdas e danos aferíveis em dinheiro. Existe uma linha tênue entre o abuso do direito (art. 187 do CC), e o abuso do poder familiar (art. 1.630 do CC), sendo difícil e arriscado generalizar seus diagnósticos, pois cada situação exige um detido exame e talvez seu único denominador em comum seja que, de uma maneira ou de outra, em todas as hipóteses de abuso sempre estará sendo comprometido o bem-estar psíquico e o interesse do menor.          
Abusa do direito de visitas o genitor que se omite do filho; que não tem afeto pela prole nem lhe proporciona proteção, vestuário e alimentação adequada, afastando-se do dever que tem de transmitir aos filhos carinho e orientação.
Danos e prejuízos
Foi-se o tempo dos equívocos das relações familiares gravitarem exclusivamente na autoridade do pai, como se ele estivesse acima do bem e do mal apenas por sua antiga função provedora, sem perceber que deve prover seus filhos muito mais de carinho do que de dinheiro, ou vantagens patrimoniais. Têm os pais o dever expresso e a responsabilidade de obedecerem às determinações judiciais ordenadas no interesse do menor, como disso é exemplo o dever de convivência e de visitação, que há muito deixaram de representar mera faculdade do genitor não guardião, causando a irracional omissão dos pais irreparáveis prejuízos de ordem moral e psicológica à prole.
Há vozes que se posicionam em contrário à reparação do afeto que foi negado aos filhos, temendo que o pai condenado à pena pecuniária por sua ausência jamais tornará a se aproximar daquele rebento, em nada contribuindo pedagogicamente o pagamento da indenização para restabelecer o amor.
A indenização pecuniária visa a reparar o agravo psíquico sofrido pelo filho que foi rejeitado pelo genitor durante o seu crescimento, tendo a paga monetária a função de compensar o mal causado, preenchendo o espaço e o vazio deixados com a aquisição de qualquer outro bem material que o dinheiro da indenização possa comprar.
Subsistem razões para discordar da vertente que nega a reparação material pela omissão do afeto parental, e ao contrário do que é afirmado, a indenização não tem nenhum propósito de compelir o restabelecimento do amor, já desfeito pelo longo tempo transcorrido diante da total ausência de contato e de afeto paterno ou materno.
Decisões judiciais buscando reparar com indenizações pecuniárias a dilaceração da alma de um filho em fase de formação de sua personalidade, cujos pais se abstêm de todo e qualquer contato e deixam os seus filhos em total abandono emocional, não condenam a reparar a falta de amor, ou o desamor, nem tampouco a preferência de um pai sobre um filho e seu descaso sobre o outro, mas penalizam a violação dos deveres morais contidos nos direitos fundados na formação da personalidade do filho rejeitado.  
Penalizam o dano à dignidade humana do filho em estágio de formação, mas não com a intenção de recuperar o afeto não desejado pelo ascendente, mas principalmente, por seu poder dissuasório a demonstrar que, doravante, este velho sentimento de impunidade tem seus dias contados e que possa no futuro desestabilizar quaisquer outras inclinações de irresponsável abandono, se dando conta pelos exemplos jurisprudenciais, que o afeto tem um preço muito caro na nova configuração familiar.

Jornal Carta Forense, domingo, 12 de fevereiro de 2012

Indenização por abandono afetivo: Impossibilidade (Murilo Sechieri Costa Neves)

Está em tramitação, inclusive, projeto de lei pelo qual se pretende incluir no ECA a previsão de que seria "conduta ilícita, sujeita a reparação de danos, sem prejuízo de outras sanções cabíveis, a ação ou a omissão que ofenda direito fundamental de criança ou adolescente (...), incluindo os casos de abandono moral". De acordo com a proposta, aos pais competiria, além dos deveres já consagrados, "prestar aos filhos assistência moral, seja por convívio, seja por visitação periódica, que permitam o acompanhamento da formação psicológica, moral e social" do filho menor. Assistência moral consistiria na "a orientação quanto às principais escolhas e oportunidades profissionais, educacionais e culturais; a solidariedade e apoio nos momentos de intenso sofrimento ou dificuldade; a presença física espontaneamente solicitada pela criança ou adolescente e possível de ser atendida" (PL n. 700/2007, Autoria do Sen. Marcelo Crivella).

Mesmo diante da ausência de previsão expressa, tem sido defendida, através de argumentos sedutores e consistentes, a tese da reparabilidade dos danos decorrentes de abandono afetivo.

Os fundamentos normalmente apontados são os princípios da dignidade da pessoa humana, da solidariedade, da parentalidade responsável e da afetividade nas relações familiares.

Embora sejam respeitáveis os argumentos utilizados em abono da tese da responsabilização, não parece ser acertada tal conclusão. 

A responsabilidade civil é a obrigação que recai sobre alguém de reparar o dano injusto sofrido por outrem, como decorrência do descumprimento de um dever jurídico. Não basta que tenha havido dano, mas é indispensável que tenha havido uma conduta antijurídica e nexo de causalidade entre ela e a lesão sofrida.

A questão é saber se no abandono afetivo estão reunidos os requisitos da responsabilidade civil, e se a imposição do dever de indenizar atingiria as finalidades buscadas pelo instituto. Ao que parece, ambas as respostas são negativas.      

Não se nega que o abandono afetivo seja causa danos anímicos aos filhos, danos esses cuja intensidade vai variar de acordo com as características pessoais de quem sofreu, e sofre, pela ausência alheia. A dignidade da pessoa humana do filho parece apontar no sentido da indenização.

O dano, por si só, não gera o dever de indenizar. É indispensável que tenha havido descumprimento de um legítimo dever jurídico pelo pai, identificado, na hipótese, como o dever de destinar afeto amoroso ao filho. Se existir tal dever, os filhos terão o correlato direito subjetivo a uma convivência afetiva satisfatória.

O tema não pode ser tratado de forma simplista. A questão é tão complexa, como o são as relações humanas. O amor é algo que acontece, ou não, inclusive nas relações entre pais e filhos. A constatação pode parecer cruel - e talvez o seja - mas o fato é que não tem qualquer fundamento a crença, que permeia o senso comum, de que o amor parental seria natural e incondicional.

Não se pode acreditar que o ordenamento jurídico seja capaz de regular as intrincadas relações afetivas entre as pessoas, como se houvesse um modo correto de agir nesse campo, ou como se houvesse algum tipo de padrão de comportamento afetivo considerado como adequado.

O afeto não é passível de coerção, verdade essa que é incontestável.

Está assegurado o direito dos menores à educação, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar. Diante disso, pode ser reconhecido o dever do genitor de ter o filho em sua companhia. Aliás, a visitação tem sido encarada mesmo como um direito/dever. Não se pode, contudo, impor o dever de que a qualidade afetiva da convivência entre eles seja aquela que poderia ser considerada como ideal.
Proteção à dignidade da pessoa humana não é sinônimo de garantia de uma existência plena de satisfação e isenta de frustrações ou de sofrimento. Nas relações afetivas há naturalmente muita expectativa, e onde há muita expectativa, certamente há frustração, em particular porque a idealização dos vínculos não corresponde à vivência deles.

O ideal de uma família plenamente feliz faz sentido nos anúncios publicitários. Não se pode concluir, no entanto, que a efetiva fruição desse modelo fantasioso represente uma garantia jurídica aos indivíduos. Fomentar essa ilusão não parece ser o mais adequado.

A negativa de afeto pode decorrer de infindáveis motivos, tendo em vista a diversidade e complexidade existencial de cada uma das pessoas. No campo dos sentimentos humanos há espaço, inclusive, para o incompreensível. Muitas vezes, nem o mesmo o próprio agente é capaz de encontrar razão aparente para certos comportamentos seus.

A verdade é que nem todos têm capacidade de amar, ou nem sempre estão disponíveis para doar afeto a outrem. Não se exigir algo de quem não o pode dar.

Assim, não parece razoável que a indenização seja fixada com a finalidade de punir o pai ausente, porque não se pode dizer que o distanciamento afetivo tenha sido intencional, consciente.

A função indenizatória também não se mostra viável nesses casos, porque não pode acreditar que o recebimento de uma certa quantia em dinheiro seja capaz de apagar as cicatrizes que tenham sido causadas pela falta de afeto. Ao contrário, qualquer tipo de litígio entre pai e filho a esse respeito, seja qual for a solução encontrada, só serve para alargar o abismo afetivo entre eles.

Afastadas as funções de reparação e de punição da responsabilidade civil, resta saber se a indenização por abandono afetivo desempenharia satisfatoriamente a função pedagógica ou dissuasória. Parece que não.

Se já havia uma relação deteriorada - ou até mesmo falta de relação - entre os sujeitos, após o pleito indenizatório, acolhido ou rejeitado o pedido, é praticamente impossível que sejam estabelecidos laços que gerem uma convivência saudável entre as pessoas. A simples existência de litígio judicial a esse respeito, na qual são verbalizadas mágoas tão intensas e profundas, é suficiente para sepultar, em definitivo, qualquer esperança de que a relação entre tais pessoas pudesse vir a ser transformada positivamente.

Argumenta-se, ainda, que nas relações entre cônjuges, companheiros, ou até mesmo entre noivos, não se reconhece o direito à indenização pelo sofrimento causado pelo rompimento unilateral do relacionamento, ainda que acompanhado de descumprimento dos deveres recíprocos. Não se indeniza a dor, o sofrimento, a frustração, porque essas são contingências das relações afetivas. Só é fixado o dever de indenizar se a conduta adotada por aquele que rompeu a relação tiver sido manifestada através de comportamento vexatório, humilhante, gravemente ofensivo à dignidade do outro.

Nas relações entre pais e filhos, a solução deve ser a mesma. A frustração ao desejo de receber afeto dos pais não pode ser, por si, motivo para o direito à indenização. Por outro lado, se for possível identificar que houve abuso por parte do genitor que praticou atos que foram capazes de causar ofensa aos direitos da personalidade do filho, é perfeitamente aplicável a disciplina da responsabilidade civil, também nesse campo. 

Há um último ponto a ser questionado. O eventual reconhecimento judicial de que houve indevida falta de afeto pelo genitor pode ser, por si só, causa de agravamento dos danos causados. A condenação do genitor confirma de maneira irrefutável para o filho a sua posição de vítima. Do ponto de vista psicológico, há um reforço na crença de abandono, no sentimento de rejeição e desamparo. Diante disso, é possível que sejam maiores as dificuldades do filho para a superação das conseqüências da lamentável falta de sorte de não ter tido pais que tivessem condições atender aos idealizados padrões de afetividade. 

Por fim, o eventual reconhecimento judicial de que houve indevida falta de afeto pelo genitor pode ser causa de agravamento dos danos causados. A condenação do genitor confirma, de maneira irrefutável, para o filho a sua posição de vítima. Do ponto de vista psicológico, há um reforço na crença de abandono, no sentimento de rejeição e desamparo. Diante disso, é possível que sejam maiores as dificuldades do filho para a superação das conseqüências da lamentável falta de sorte de não ter tido pais que tivessem condições atender aos idealizados padrões de afetividade.

Jornal Carta Forense, domingo, 12 de fevereiro de 2012

Os contratos de locação em shopping center

Os contratos de locação em shopping center prevêm três modalidades de prestação pecuniária a serem suportadas pelo lojista: aluguel mínimo, aluguel percentual e aluguel dobrado no mês de dezembro, cada qual com suas características.

2.2.1. Aluguel mínimo

O aluguel mínimo é a “prestação pecuniária reajustável periodicamente com indexação preestabelecida, a ser cumprida independentemente de qualquer outra circunstância”, na lição de Orlando Gomes (1984, p. 90). Não há qualquer controvérsia doutrinária sobre o estabelecimento da renda fixa, nem tampouco do “critério contratual de actualização da renda”,  nas palavras de Jorge Pinto Furtado (1998, p. 46).

O aluguel mínimo tem por finalidade assegurar ao empreendedor a renda do empreendimento, na hipótese de ser baixo o movimento das lojas locadas, segundo Rubens Requião (1984, p. 141).

2.2.2.  Aluguel percentual

O aluguel percentual – ou renda variável – é uma percentagem calculada sobre o faturamento bruto do lojista[11]. Tal renda somente é devida quando exceder o aluguel mínimo e na parte que o ultrapassar. Ana Afonso (2003, p. 327) expõe que a renda variável é referida em alguns contratos como sendo “a contrapartida dos serviços de gestão prestados”, explicando, mais à frente, que tal forma de remuneração não encontra qualquer obstáculo frente à legislação portuguesa[12].

Gladston Mamede (2000, p. 96-97) alerta para abusos encontrados em alguns contratos: a cobrança do aluguel percentual sobre o faturamento bruto, mesmo no caso de vendas a prazo, entendendo que o lojista deverá ter direito a crédito em valores futuros, no caso de inadimplência do consumidor ou de cancelamento da venda.

2.2.3. Aluguel em dobro no mês de dezembro

Outra cláusula típica dos contratos de locação em centros comerciais é a que prevê o pagamento de aluguel em dobro no mês de dezembro. O montante devido pelo lojista é o dobro do aluguel mínimo, na hipótese de o aluguel percentual não ultrapassar essa quantia.

A doutrina brasileira, no geral, entende pela legalidade desta cláusula, ante o permissivo previsto no art. 54 da Lei de Locações (Lei n° 8.245/1991). Nesse sentido está a posição de Guilherme Gama (2008, p. 90):
“Tem-se considerado válida tal cláusula, sendo freqüente em shopping center, porquanto exatamente no mês de dezembro há maiores despesas com a administração do empreendimento a cargo do locador, como as decorrentes de contratação de alguns empregados temporários para exercerem funções de limpeza, de segurança, de organização e de bom funcionamento do empreendimento, o pagamento de décimo-terceiro salário aos empregados permanentes da empresa administradora, e maiores despesas com promoções das festividades de final de ano, além daquelas inerentes ao maior número de consumidores nas suas dependências”.
Em sentido contrário, posiciona-se Gladston Mamede (2000, p. 54), entendendo que o décimo-terceiro salário é “ônus do próprio empreendimento e não um serviço extra: todo e qualquer empregador, em virtude da legislação trabalhista, está a ele obrigado, constituindo parte de seus custos”; igualmente com relação às verbas de publicidade, na medida em que estas “provêm de um fundo específico, o fundo de promoção, como se verá, para o qual contribuem todos os lojistas”.

2.3.  Fiscalização da contabilidade

Admitindo-se como válida a cláusula de aluguel percentual, é de ser considerada legítima, também, a fiscalização da contabilidade do lojista pelo empreendedor. Mamede entende que tal cláusula é perfeitamente válida, “constituindo mecanismo que visa a preservar os interesses do empreendedor; sem ele, o organizador ficaria à mercê do lojista”. Como afirma Darcy Lemke (1999, p. 137-138), a fiscalização é “decorrência normal da fixação do aluguel num percentual do faturamento bruto”. Ainda segundo o autor,
“poderá o empreendedor controlar a entrada e saída de mercadorias do estabelecimento comercial do locatário, colocar alguém de sua confiança junto ao caixa, controlar as fitas da caixa registradora da empresa, conferir a extração de notas fiscais, examinar livros contábeis e fiscais de qualquer natureza”.
Guilherme Gama (2008, p. 89-90) considera razoável e justificável “a cláusula de fiscalização das contas do lojista, desde que não se causem embaraços à atividade do lojista”, apontando, mais à frente um caso em que a fiscalização por parte do empreendedor somente teve início após o lojista ter promovido ação renovatória de locação, caracterizando-se como “medida de retaliação, injustificável e abusiva a ensejar reprimenda e correção”.

2.4. Imutabilidade do ramo de comércio

É bastante comum a inserção de cláusula, nos contratos de locação, que proíba ao lojista a mudança do ramo de comércio ou prestação de serviços explorado ou, ainda, que condicione a alteração de atividade à prévia anuência do empreendedor. Justifica-se tal cláusula pela manutenção do tenant mix desenvolvido pelo empreendedor.

A doutrina amplamente majoritária entende que essa disposição é perfeitamente válida. Rubens Requião (1984, p. 153-154) explica que se “houvesse a possibilidade de determinação autônoma de cada um dos locatários lojistas no destino da loja locada, haveria logo o desfalque da atividade integrativa, quebrando a unidade desejada pelo ‘centro’”[14], concluindo, mais à frente, que tal cláusula “é perfeitamente lícita e se compreende integralmente na planificação e organização do centro”[15].

Nos contratos em haja cláusula que preveja a prévia anuência do empreendedor, a solução é basicamente a mesma: a cláusula é perfeitamente válida; segundo Mamede (2000, p. 109), contudo, eventual “recusa por parte do empreendedor deve ser motivada, listando todas as razões que justificam o impedimento da mudança ou da inclusão de um outro produto ou serviço”, cabendo ao lojista, discordando da decisão, recorrer ao judiciário.

2.5.  Proibição da cessão

Existem contratos que prevêm a proibição da sublocação, da transferência do estabelecimento empresarial (trespasse) ou, ainda, da cessão da participação societária da pessoa jurídica, sem anuência do empreendedor. A análise deve ser feita separadamente, em virtude da diversidade desses institutos.

2.5.1.  Sublocação

A proibição da sublocação encontra respaldo no Código Civil Português. A Lei brasileira de locações (Lei n° 8.245/1991), contudo, prevê a necessidade de anuência do locador para que a sublocação produza efeitos, devendo “ser considerada inválida cláusula que proíba a cessão do contrato de locação”, segundo Guilherme Gama (2008, p. 94). Apesar de art. 54 da Lei de Locações prever que existe liberdade de pactuação nos contratos de locação em shopping center, a cláusula proibitiva da sublocação contrariaria, diretamente, o disposto no art. 45 e, implicitamente, o estabelecido no art. 13.

Comentando o art. 54 da Lei de Locações, Gladston Mamede (2007, p. 304) esclarece que a liberdade de pactuação prevista no dispositivo refere-se apenas à prestação de serviços mercadológicos, não à locação da loja.

Eventual recusa por parte do empreendedor na sublocação, contudo, deve ser motivada e baseada em inidoneidade do sublocatário ou motivo relevante para o desenvolvimento da atividade do centro comercial, não sendo admissível a simples recusa com base no arbítrio do locador.
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CASTRO JÚNIOR, Armindo de. Shopping center - o contrato entre empreendedor e lojistas: natureza jurídica e cláusulas polêmicas. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3156, 21 fev. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/21114/shopping-center-o-contrato-entre-empreendedor-e-lojistas-natureza-juridica-e-clausulas-polemicas>.

O shopping center e a cláusula res sperata

É comum, nos contratos entre o empreendedor e o futuro lojista, a inserção de uma cláusula denominada res sperata (coisa esperada), em que o segundo se compromete a pagar, periodicamente, uma quantia ao primeiro, durante o período de construção do edifício, “como retribuição das vantagens de participação no centro comercial, dele usufruindo e participando de sua estrutura, enquanto durar seu contrato”, nas palavras de Álvaro Villaça Azevedo (1991, p. 29).

Em Portugal, tal cláusula é chamada de chave[5] ou valor de ingresso e significa, nas palavras de Ana Afonso (2003, p. 332),
“o pagamento de uma quantia inicial, de montante elevado, a título de remuneração pelo ‘acesso à estrutura técnica adequada ao funcionamento do centro comercial, desenvolvida pela gestora do centro’ e/ou pela ‘reserva de localização da loja’”.
A doutrina divide-se sobre a natureza jurídica da res sperata. Caio Mário da Silva Pereira (1984, p. 76) entende que a cláusula nada mais é que “‘direito de reserva’ de localização ou ‘garantia’ de entrega do local, como contraprestação pelos benefícios do futuro shopping center”[6].

Analisando de forma mais profunda o fundo de comércio – ou fundo de empresa, como prefere a moderna doutrina comercialista –, Ives Gandra da Silva Martins (1991, p. 83) entende que existem, no shopping center, dois fundos de comércios que se integram: o do lojista e o do próprio shopping center, que o autor denomina “sobrefundo de comércio”[7]. A res sperata teria, então, a natureza de luvas, na medida em que seria a retribuição paga pelo lojista pela cessão do sobrefundo de comércio colocado à sua disposição[8]. A doutrina brasileira rejeitou, a princípio, a natureza de luvas, uma vez que sua cobrança estava proibida pelo artigo 29[9] do Decreto n° 24.150/1934, que regulava as renovações dos contratos de locação comercial. Com a edição da Lei n° 8.245/1991, que revogou o citado decreto, o obstáculo legal à cobrança das luvas foi removido.

Esse entendimento merece críticas, especialmente por parte da doutrina portuguesa, pela existência da figura da cessão da exploração de estabelecimento comercial, prevista nos artigos 1.108° e seguintes do Código Civil, com redação dada pela Lei nº 6/2006, que institui o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU). Inocêncio Galvão Telles (1991, p. 525) é dessa posição, na medida em que não existe estabelecimento comercial a ser cedido. O autor assim fundamenta seu entendimento:
“Nesse espaço existe apenas uma loja, nua, vazia, local físico demarcado por paredes, sem qualquer recheio ou qualquer vida. O contrato faz-se precisamente para facultar a outra entidade a utilização do local com fins mercantis e assim permitir-lhe montar aí um estabelecimento.
Não há que confundir loja e estabelecimento comercial. A loja é apenas um lugar. O estabelecimento é muito mais do que isso. [...]”
Galvão Telles (1991, p. 525-526) admite que a cessão de exploração possa recair sobre um futuro estabelecimento, na medida em que o Código Civil Português assim o prevê, em seus artigos 399° e 880°, desde que “o futuro estabelecimento fosse criado e montado por conta do dono da loja, que dele ficasse titular”, o que não ocorre, como bem expõe Ana Afonso (2003, p. 119-121):
“O lojista é apenas cessionário de um espaço vazio, cabendo-lhe proceder, por sua própria conta e risco, à criação e manutenção do estabelecimento. O dono do centro comercial não criou, e nem sequer se vincula a criar ou a montar, um estabelecimento comercial, cuja exploração possa temporariamente ser cedida a outrem, que, por seu turno, ficaria obrigado à restituição do estabelecimento no fim do contrato”.
Certo é que a res sperata não é apenas um mero direito de reserva de localização, devendo ser levada em consideração a futura clientela[10] posta à disposição do lojista quando este se instalar no shopping center. A clientela é um dos elementos materiais do estabelecimento comercial mas, de per si, não caracteriza o contrato como de cessão de estabelecimento comercial, nem mesmo incompleto ou em formação, como sugere Pedro Malta da Silveira (1999, p. 185), na medida em que quem irá criar o estabelecimento e fazê-lo funcionar será o lojista.

Pode-se, por exclusão, definir a res sperata como sendo uma compensação paga pelo lojista ao empreendedor, por sua atividade de organização e planejamento, não tendo o locatário que formar, conseqüentemente e por si só, a clientela, como ocorre no comércio tradicional.
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CASTRO JÚNIOR, Armindo de. Shopping center - o contrato entre empreendedor e lojistas: natureza jurídica e cláusulas polêmicas. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3156, 21 fev. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/21114/shopping-center-o-contrato-entre-empreendedor-e-lojistas-natureza-juridica-e-clausulas-polemicas>.