sexta-feira, 28 de outubro de 2011

O devido processo legal e a razoabilidade temporal como garantias fundamentais

No tópico pertinente mencionou-se que, para alguns estudiosos, a boa-fé objetiva processual teria raiz e espeque na garantia fundamental do devido processo legal. Longe de adentrar essa discussão, é de reconhecer-se que a concepção contemporânea da cláusula imbrica-se com o próprio cerne da boa-fé na relação processual.

A cláusula tem nascedouro na Magna Charta de João Sem-Terra, no ano de 1215, ao se referir à Law of the land (art. 39). A expressão, contudo, due process of law surgiu tão-só na lei inglesa de 1354, denominada Statute of Westminster of the Liberties of London [39].

No século XVIII começou a vicejar nas Constituições das colônias da "Nova Inglaterra" e em algumas "Declarações de Direitos", sendo finalmente consagrada na Constituição Federal americana de 1787.

E nosso arcabouço constitucional a garantia limitadora de abusos e desproporcionalidade alberga-se no inciso LIV do art. 5º da Constituição Federal, atraindo-se para a sua deliberada elasticidade todas as garantias processuais – sem mencionar as substantivas – possíveis, encerrando (mas permanentemente aberto) e acabando o rol de remédios, garantias e direitos fundamentais [40].

Em análise mais detida percebe-se que o devido processo legal tem como escopo, dentre outros, conectar-se à garantia de acesso à justiça, legitimador do Estado Constitucional de Direito. Por isso que Nelson Nery Júnior (2009, p. 87) pontifica que "O direito à tutela jurisdicional adequada, garantido pela CF 5º, XXXV, pressupõe a existência e o desenvolvimento de um processo devido (fair procedure, faires Verfahren, giusto processo).

Nesse contexto, o devido processo legal, principalmente no direito norte-americano, ganha releitura ou faceta moderna para surgir como procedural fairness, muito mais ligado à realidade do que aos aspectos formais do procedimento. Tenciona não bitolar e manter no fluxo processual em lindes meramente formais, mas, antes de tudo, direcionar o processo para os escopos fixados, dentro das garantias fundamentais e como própria garantia fundamental.

Por esse prisma, que se afirma ser a boa-fé objetiva obrigação decorrente do devido processo legal (faires Verfahren, debido proceso, processo equitativo, proceso justo, proceso limpio, proceso équo e processo giusto) [41], como garantia que as partes possuem de obterem os resultados garantidos pelo direito material.

Então, por essa óptica atual, a garantia do processo legal é dos jurisdicionados e também contra eles e o próprio Estado-juiz, a quem cabe efetivá-lo e garantido dentro da relação pública que se trava no processo, valendo de toda a proficuidade da boa-fé objetiva para alcançar os fins e a utilidade instrumental do processo.

Plasme-se a observação de Brunela Vincenzi (2003, p. 47-48), verbatim:
(...) a garantia do devido processo legal, nos sistemas de civil law, tem por objetivo delinear uma norma genérica reguladora das garantias internas do processo – as que definem a forma do procedimento e o exercício das posições subjetivas das partes e do juiz na relação jurídica processual – e a principal garantia externa do processo, qual seja, a efetividade das decisões judiciais. Assegura-se, assim, de forma genérica, que deverá ser concretizada caso a caso, observando-se o limite das garantias mínimas, uma garantia processual de meio e de resultado, concedendo às partes os meios e os remédios adequados para o exercício do processo e da jurisdição, de modo a possibilitar a realização do direito de forma efetiva, ou seja, garantindo o processo civil de resultados.
A garantia do devido processo legal, portanto, abre espaço na sociedade contemporânea para o processo civil de resultados, pois, garantindo os meios adequados – garantias mínimas -, pugna pela realização eficaz e tempestiva da tutela jurisdicional.

Consigna, pois, a estudiosa que o devido processo legal deve ser compreendido também como elemento garantidor da própria instrumentalidade do processo civil, concedendo-se as garantias, deveres e proibições mínimas para a realização eficaz e tempestiva da tutela jurisdicional.

Dessa forma, atos que vulnerem a boa-fé objetiva edificando procrastinações, desvirtuamento de formas, abuso de situações processuais e tudo quanto mais desloque o processo de seu eixo instrumental deve ser visto como mortificação do due process of law, ataque direto a uma garantia fundamental.

É Fred Didier Jr. (2009a) quem relembra que o Supremo Tribunal Federal segue o entendimento de que o devido processo lega determina um processo de lealdade e orientado pela boa-fé. Em artigo sobre o tema (2009a) ele cita o trecho da fundamentação de certo aresto daquela Corte Constitucional, cujo teor autoriza a citação:
O princípio do devido processo legal, que lastreia todo o leque de garantias constitucionais voltadas para a efetividade dos processos jurisdicionais e administrativos, assegura que todo julgamento seja realizado com a observância das regras procedimentais previamente estabelecidas, e, além, representa uma exigência de fair trail, no sentido de garantir a participação equânime, justa, leal, enfim, sempre imbuída pela boa-fé e pela ética dos sujeitos processuais. (...) A máxima do fair trail é uma das faces do princípio do devido processo legal positivado na Constituição de 1988, a qual assegura um modelo garantista de jurisdição, voltado para a proteção efetiva dos direitos individuais e coletivos, e que depende, para seu pleno funcionamento, da boa-fé e a lealdade dos sujeitos que dele participam, condição indispensável para a correção e legitimidade do conjunto de atos, relações e processos jurisdicionais e administrativos.(...) Nesse sentido, tal princípio possui um âmbito de proteção alargado, que exige o fair trial não apenas dentre aquele que fazem parte da relação processual, ou que atuam diretamente no processo, mas de todo o aparato jurisdicional, o que abrange todos os sujeitos, instituição e órgão, públicos e privados, que exercem, direta ou indiretamente, funções qualificadas constitucionalmente como essenciais à Justiça.
E, no fim da citação, após apresentar outras fundamentações para a boa-fé objetiva, que já foram vertidas no item pertinente desse estudo, arremata o doutrinador:
Todas essas opções são dogmaticamente corretas. Adota-se a do STF, principalmente em razão de um aspecto prático: a caracterização do devido processo legal como uma cláusula geral é pacífica, muito bem construída doutrinariamente e aceita pela jurisprudência. É com base nesta garantia que, no Direito estadunidense, se construiu o dever de boa-fé processual como conteúdo da garantia do fair trial. É mais fácil, portanto, a argumentação da existência de um dever geral de boa-fé processual como conteúdo do devido processo legal. Afinal, convenhamos, o processo para ser devido (giusto, como dizem os italianos, equitativo, como dizem os portugueses) precisa ser ético e leal. Não se poderia aceitar como justo um processo pautado em comportamento desleais ou antiéticos (2009a)
Dessa forma, infere-se que a boa-fé objetiva no processo é realidade jurídica existente, clamando por reconhecimento e auto-aplicabilidade, uma vez que ligada a direito fundamental plasmado na Constituição, cuja extensão e conteúdo, por essência, devem ser traçados pelo magistrado no caso concreto, sempre em ponderação com demais garantias, com a lógica do sistema processual e sua evidente instrumentalidade.

Além disso, é possível reforçar a tese de que a boa-fé objetiva é instituto de intermediação e enlace entre os valores constitucionais e a legislação infraconstitucional, demonstrando a sua instrumentalidade com a garantia de duração razoável dos procedimentos judiciais [42] e administrativos.

Primeiramente, destaca-se que o art. 5º, LXXVIII [43] garante a todos, no âmbito judicial e administrativo, a razoável duração dos processos e os meios que necessários para tanto. Importa dizer, além da auto-aplicabilidade expressa das normas de direitos fundamentais, que todo meio jurídico é viável para impor garantir a prestação jurisdicional.

Nesse norte, CAPERNA (2005) assevera que "a concepção de ética no processo encontra suporte no delineamento de duração do mesmo de acordo com o uso racional do tempo processual, aliás, perspectiva essa bem desenvolvida pela doutrina italiana e tipificada no art.111 da Constituição peninsular.

Isso importa dizer que os meios para atingir a celeridade são também direitos fundamentais, dessumindo-se que a boa-fé objetiva, como meio para tanto, é também garantia constitucional por extensão normativa.

NASCIMENTO, José Moacyr Doretto. A boa-fé objetiva e o processo civil . Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 3039, 27 out. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/20311>.

A moderna função do juiz no processo civil

Há, hodiernamente, tendência de dotar o julgador de certa movimentação e atividade dentro da relação processual, rompendo com o paradigma, ainda atual, baseado no magistrado como mero observador do debate travado sob sua presidência.
Informa DIDIER JR. (2007, p.55) que essa concepção, baseada na cooperação, já está em desenvolvimento no direito alienígena, notadamente na Alemanha [32], França [33] e Portugal [34]. Tal autor, ao comentar o princípio processual da cooperação, pontifica que o julgador deve desvelar-se como "agente-colaborador do processo", participando materialmente do contraditório.

Contudo, essa visão, como alerta o estudioso, não se prende apenas no campo instrutório-probatório e na efetivação das ordens judiciais, nas quais se exaure nos dias coevos toda a noção de ativismo judicial.
Há que se dar mais um passo. O magistrado deve estar em constante e aberto diálogo com as partes e intervenientes, respondendo com eficiência e nitidez as os pedidos e dúvidas das partes, externando as suas próprias incertezas processuais e oportunizando que sejam sanadas, além de decisões e despachos pedagógicos e explicativos.

Essas idéias e paradigmas de conduta constituem-se mera dimensão da boa-fé objetiva forjando a conduta do Estado-julgador, na modalidade transparência e cooperação.

Por esse prisma, o processo deve ser visto como
"o produto de atividade cooperativa: cada qual com as suas funções, mas todos com o objetivo comum, que é a prolação do ato final (decisão do magistrado sobre o objeto litigioso). Traz-se o magistrado ao debate processual; prestigiam-se o diálogo e o equilíbrio. Trata-se de princípio que informa e qualifica o contraditório. A obediência ao princípio da cooperação é comportamento que impede ou dificulta a decretação de nulidades processuais – e, principalmente, a prolação do juízo de inadmissibilidade. O princípio da cooperação gera os seguintes deveres para o magistrado (seus três aspectos): a) deve de esclarecimento; b) dever de consultar; c) dever de prevenir (DIDIER JR, 2007,p. 56).
Dessa sorte, dimanando da boa-fé objetiva, caberia ao julgador o dever de esclarecimento, o dever de consultar e o dever de prevenir [35].

O dever de esclarecer traduz-se na imposição ao órgão julgado de se esclarecer perante os jurisdicionados, para que não venha a decidir a relação material com esteio em fundamentos fáticos e jurídicos equivocados e\ou percepções apressadas.

Esse dever fragmenta a concepção do magistrado como ser meramente observador, que julgará de acordo com o que lhe é apresentado pelas partes. O atual sistema processual impõe que a demonstração insuficiente de fatos e o manejo inábil de instrumentos processuais e argumentativos seja carreada apenas à parte, impedindo por vezes que o próprio magistrado interfira nesse ponto, à pretexto de não desequilibrar a paridade de armas.

É bem verdade, pensa-se, que o magistrado não deve descer à arena probatória, investigando pela parte de forma substitutiva, suprindo as provas e deficiências técnicas.

Todavia, o foco aqui é outro. Os verbos "suprir", "produzir", "investigar", usados pelos defensores do ativismo probatório, devem ser permutados por "esclarecer-se", "compreender", "inteirar-se", "ouvir" e "oportunizar"

Dessa maneira, por exemplo, deve o julgador, acasos dúvida quanto à existência de algum requisito processual de validade, ouvir as partes de maneira direta, clara e objetiva, e não aplicar de chofre a sanção processual para o caso, na hipótese, a extinção sem resolução [36].

Quando se menciona, cumpre insistir, em ouvir as partes de maneira direta e clara, quer-se dizer que o juiz, ao despachar para tanto, deve externar em palavras a sua dúvida e seu objetivo, repudiando despachos já encarnados na prática forense que denotam apenas o descompromisso e a indiferença do julgador, para não se dizer na sua pretensão deificação.

Um exemplo é o "Diga a parte", que nada esclarece, impondo ao jurisdicionado, vezes muitas, a repetição de tudo quanto já fora dito, deixando de incidir diretamente no ponto querido pelo magistrado. Nesses despachos, em razão da pletora insana de feitos, perde-se meses, dispêndio de forças humanas e de recurso matérias dirigidos para a procrastinação [37].

Já o dever de consultar é manifestação conjunta da boa-fé objetiva e do contraditório e ampla defesa, demonstrado a irmanação intensa entres esses princípios, que nós faz acreditar que este é decorrência daquele [38].

Por tal dever – o de consultar – o Estado-Julgador não pode decidir absolutamente nada, mesmo as questões ex officio, sem que as partes sejam intimadas a manifestar-se. Portanto, descoberta pelo juiz a ausência de algum requisito de admissibilidade do processo, deverá ouvir as partes antes de extinguir o feito.
A concepção cogente do contraditório e ampla defesa é robusta, em nosso espírito, quando a alegação é deduzida pela parte ex adversa. Todavia, há certa dificuldade em aceitar que a parte tem direito de ser ouvida previamente quando a matéria prejudicial advier de cognição direta do juiz. E é justamente isso que impõe o dever de consultar.

Convém trazer a anotação ad calcem de Fredie Didier Jr. (2007, p. 57, nota 96):
Muito interessante a ponderação de Rodrigo Mazzei: se o CPC impõe a ouvida do autor quanto o réu alega a falta de um requisito de admissibilidade (art. 327), dando ensejo ao contraditório, por que também não se exigir o contraditório quando a falta for "alegada" pelo juiz? ("O manejo dos declaratórios pelo terceiro prejudicado". Aspectos polêmicos e atuais sobre terceiros no processo civil e assuntos afins. Fredie Didier Jr. e Teresa Arruda Alvim Wambier (coord.). São Paulo: RT, 2004, p. 921-922, nota 127). Outro interessante exemplo do princípio da cooperação-dever de consulta, no direito positivo brasileiro, é a regra do art. 40, § 4º, da Lei federal n. 6.830/80 (Lei de execução Fiscal), que autoriza o magistrado a conhecer ex officio da prescrição tributária, mas impõe a prévia oitiva da Fazenda Pública.
Por fim, no que toca aos deveres decorrentes do princípio da cooperação, há o impositivo de prevenção.
O órgão julgador "tem o dever de apontar as deficiências das postulações das partes, para que possam ser supridas" (DIDIER JR., 2007, p.58), possuindo amplo espectro, uma vez que incide toda em qualquer circunstância na qual o êxito da ação, em favor de qualquer parte e interveniente, possa ser obstado por manejo deficiência ou insuficiente do instrumental.

Numa análise de tudo quanto se verberou nesse tópico, convém evidenciar que se cuidam de deveres do magistrado e não mera faculdade de agir. Assim como ao Estado-juiz pesa a incumbência de dar decisão, quando provocado, incide juntamente com esse dever vários outros que podem ser tidos como anexos, decorrendo da obrigação principal de julgar.

Deveras, todo o conjunto processual, defluido da Carta Política, volta-se, de forma ordenada, para a consecução de finalidades já talhadas nesse trabalho. Essas finalidades, no campo do direito público, devem ser o alvo constante de todos os poderes, agentes e prerrogativas, daí a instrumentalidade também dos poderes funcionais.

Em consonância com essa visão é a doutrina do publicista Celso Antônio Bandeira de Mello, cuja clareza de compreensão insiste na citação integral do excerto:
A ordenação normativa propõe uma série de finalidades a serem alcançadas, as quais se apresentam, para quaisquer agentes estatais, como obrigatória. A busca destas finalidades tem o caráter de dever (antes do que "poder"), caracterizando uma função, em sentido jurídico. Em Direito, esta voz-função quer designar um tipo de situação jurídica em que existe, previamente assinalada por um comando normativo, uma finalidade a cumprir e que deve ser obrigatoriamente atendida por alguém, mas no interesse de outrem, sendo este sujeito – o obrigado -, para desincumbir-se de tal dever, necessita manejar poderes indispensáveis à satisfação do interesse alheio que está a seu cargo prover. Daí uma distinção clara entre função e faculdade ou direito que alguém exercita a seu prol. Na função, o sujeito exercita um poder, porém o faz em proveito alheio, e exercita não porque acaso queira ou não queira. Exercita-o porque é um dever. Então, pode-se perceber que o eixo metodológico do Direito Público não gira em torno da idéia de poder, mas gira em torno da idéia de dever. (MELLO, p.13, 2007)
Dessa forma, por tais compreensões, dessume-se que ao magistrado é imposto e oponível o princípio da boa-fé objetiva, quer como presidente da relação processual, quer como agente e elemento desse liame público.

Por epítome, compreendendo que a boa-fé objetiva é, em sua versão original germânica, uma cláusula geral que, assumindo diferentes feições, impõe às partes o dever de colaborarem mutuamente para a consecução dos fins perseguidos (...) (TEPEDINO, 2005, p.32), dessume-se que aos sujeitos processuais cabe colaborar, como dever, para a consecução dos fins do processo e da jurisdição. Eis aqui o telos da boa-fé objetiva na relação processual.


NASCIMENTO, José Moacyr Doretto. A boa-fé objetiva e o processo civil . Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 3039, 27 out. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/20311>.

Escopos do processo e da jurisdição

O Estado, dentro da noção clássica de agrupamento social-político e juridicamente organizado para fins predeterminados, é detentor de determinado poder incontrastável dentro de seus limites, nominado soberania, cujo estudo pertence às ciências sociais, políticas e a Teoria Geral do Estado.

Esse poder, quando voltado para a decidibilidade de conflitos intersubjetivos com marca de definitividade e imposição, é compreendido como jurisdição. Eis a suma frugal de soberania e jurisdição.

Nessa ordem de idéias, acertando-se que o Estado visa a concreção de certos elementos e que a jurisdição é eflúvio da soberania, também alinhada para a consecução desses interesses, conclui-se que o poder jurisdicional volta-se realização de valores estatais altaneiros [28].

Com essa mesma compreensão, pode citar MEDINA (p.40, 2009):
A jurisdição, assim deve-se ocupar de dar fim à lide, pautando-se pelas premissas fixadas pela Constituição Federal. Esta deve, a nosso ver, ser a força motriz da atuação jurisdicional no Estado democrático de Direito, podendo-se mesmo dizer que, se o juiz não atua com o intuito de materializar esta aspiração, presta, quando muito, jurisdição na forma, mas não no conteúdo.
Por prisma parecido, Cândido Rangel Dinamarco (2008) conseguiu fixar quatro escopos primordiais da jurisdição: escopos sociais, políticos, jurídicos e processuais [29].

A essa idéia deve ser somada a noção de que o processo é instrumento de operacionalização da jurisdição e, por isso e com isso, é voltado para a materialização desses objetivos maiores. Dessa forma, deve o processo dirigir-se para a mais plena garantia dos objetivos constitucionais.

Exatamente por esse motivo que Brunela Viera de Vicenzi assevera que:
Sob o enfoque dos escopos da jurisdição, a serem realizados por meio do processo, verifica-se a conexão pretendida na garantia constitucional do devido processo legal. Destarte, as garantias do acesso à justiça, do contraditório e da tutela adequada e tempestiva traçam os limites para o exercício das posições subjetivas no processo. Isso porque pretender a tutela mais célere e adequada do direito material em crise é zelar, também, para a realização dos escopos da jurisdição (2003, p.48)
Dessa forma, é preciso que as partes processuais encarem o processo como instrumento [30] ético e axiológico de realização de valores constitucionais, afastando-se de transformá-lo em instrumento de vindita e de procrastinação da própria aplicação do sistema jurídico.

Para tanto, as condutas impróprias, desleais, antiéticas e contraproducentes devem ser coibidas e neutralizadas pelo magistrado com fundamento na boa-fé objetiva, a qual também está vinculado [31].

Assentadas essas premissas, não requer esforço aceitar que o princípio da boa-fé objetiva, dentro da relação processual, é um dos mais caros à processualística, uma vez que intimamente ligada à própria finalidade política, social e instrumental do processo.




NASCIMENTO, José Moacyr Doretto. A boa-fé objetiva e o processo civil . Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 3039, 27 out. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/20311>.

A boa-fé objetiva

A boa-fé pode ser compreendida por várias dimensões e finalidades jurídicas, destacando-se, basicamente, em duas vertentes: a feição subjetiva e a objetiva.

Em razão do fenômeno recente e ainda inacabado – o neoconstitucionalismo - a quase totalidade dos sistemas jurídicos caracteriza-se pela prevalência do elemento ético, leal e probo, assegurando o acolhimento do que é lícito e a repulsa ao ilícito. A boa-fé [01] é conceito moral que impõe conduta pautada na honestidade, na moralidade, na transparência, na cooperação, na confiança, na probidade, no intuito de não lesar, prejudicar e nem frustrar outrem.

Pode-se falar em boa-fé objetiva e subjetiva. Aquela, também chamada de boa-fé lealdade, resume-se no dever de lealdade dos homens, importando não o que se passa no seu foro íntimo, mas sim a sua conduta objetivamente falando.

Pouco importa se o sujeito tinha ou não o desiderato de prejudicar o outro; se ele deixou (= conduta negativa, quando deveria ser positiva) de prestar todas as informações necessárias exigíveis na concretude das coisas, feriu a boa-fé objetiva. Irrelevante se o agente tinha o convencimento de estar agindo corretamente; relevante, sim, é o agir corretamente.

Já a bona fides subjetiva, a vocacionada de boa-fé crença, analisa o espírito do agente, sua feição psicológica. É a boa-fé invocada por todo o nosso ordenamento civil (casamento putativo, usucapião, herdeiro aparente etc). É a inocência, a pureza, a candura daquele que age colimando não prejudicar ninguém.

O que se convém assinalar é que todo o fenômeno jurígeno, em razão dos valores constitucionais, é permeado pela boa-fé objetiva, qual um fio de ouro a coser todas as relações de direito, informando-as, completando-as e protegendo-as de qualquer conduta que arranhe o indigitado vetor axiológico.

Para Teresa Negreiros (2006, p. 129) a boa-fé objetiva é o elo entre as negociações privadas e a normativa constitucional, trazendo para todo o ordenamento jurídico a dignidade da pessoa humana como valor normativo supremo. É verdade que a doutrinadora faz essa assertiva ao analisar a boa-fé no direito contratual, o que não impede de adaptá-la para a afirmar que a cláusula geral é o elo, um fio principiológico e eticizante a coser todo fenômeno jurígeno, dando-lhe unidade e lógica.

O assunto, boa-fé no direito privado, foi tese de doutorado do doutrinador lusitano António Manuel da Rocha e Meneses Cordeiro, que originou a obra "Da boa-fé no Direito Civil" [02], dissecando o instituto em inúmeros outros, como supressio, surrectio, tu quoque, venire contra factum proprium e a noção de violação positiva do contrato.

Afirma o citado autor (2007, p. 1230) que a boa-fé objetiva e seus deveres anexos são exigências que se apresentam antes, durante e mesmo finda a relação negocial, o que chamou de pós-eficácia das obrigações ou culpa post factum finito. Juntamente com o autor português, a doutrina nacional, de forma uníssona, indica a existência de obrigações laterais (anexos, acessórios, secundários, instrumentais) traduzidas em concepções conectadas à cooperação, transparência, informação, proteção, honestidade, lealdade, cuidado entre os contratantes e, superando o princípio da relatividade, terceiros.

A doutrinadora fluminense Teresa Negreiros (2006, p.130) sintetiza acerca da boa-fé objetiva, aduzindo que esta:
atua como eixo comum de diversas teorias que se vêm difundindo seja na formulação de critérios de interpretação-integração do contrato, seja para impor a criação de deveres no contexto da relação contratual, ou para limitar o exercício de direitos. Em comum, as diversas ramificações da boa-fé têm um sentindo e um fim éticos, segundo os quais a relação contratual deve ser compreendida como uma relação de cooperação, impondo-se um dever de recíproca colaboração entre os contratantes em vista da realização do programa econômico estabelecido no contrato.
É fácil perceber que a boa-fé objetiva encontra-se em franco desenvolvimento e fixação na área negocial. Contudo, por encontrar seu próprio fundamento no ápice normativo do sistema, pertence ao fenômeno jurídico em sua totalidade, sendo plenamente possível adaptar toda a sua sistematização e proficuidade para as inúmeras áreas da ciência jurídica, inclusive a processual.

Por fim, é preciso trazer à tinta o escólio de Cordeiro (2007, p. 18), verbatim:
Com implicações de toda a ordem, o tema de pesquisa anuncia-se complexo. A dificuldade pode ser minorada com o antecipar de alguns dados: os vectores integrativos da boa fé, a sua posição no Código e a terminologia que ela informa, o sentido da segunda codificação português, as coordenadas da Ciência do Direito utilizada, o lugar da boa-fé na cultura jurídica actual e o plano de trabalho, com as suas razões. Sendo uma criação do Direito, a boa fé opera como um conceito comum. Em vão se procuraria, nas páginas que seguem, uma definição lapidar do instituto: evitadas, em geral, pela metodologia jurídica, tentativas desse gênero seriam inaptas face ao alcance e riqueza reais da noção. A boa fé traduz um estádio juscultural, manifesta uma Ciência do Direito e exprime um modo de decidir próprio e certa ordem sócio-jurídica.



NASCIMENTO, José Moacyr Doretto. A boa-fé objetiva e o processo civil . Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 3039, 27 out. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/20311>.

Dignidade humana como elemento jusfundamental

O direito privado nacional vivencia uma alteração de paradigma no qual o individualismo dá espaço à solidariedade e às preocupações éticas, trazendo para o epicentro normativo o homem e suas necessidades, traduzida pela dignidade humana como elemento jusfundamental.

Tal alteração de foco e alicerce irrompeu de forma inequívoca com o atual Código Civil, muito embora a alteração normativa essencial consumou-se com a Constituição Federal, que mitigando valores oitocentistas erigiu o homem e seus valores éticos como início e fim do fenômeno político, jurídico e social.

Malgrado essa percepção no direito substancial, muito pouco se evolui, teórica e pragmaticamente, na seara da processualística no que toca à imposição da boa-fé objetiva - e, máxime, a sua tutela – como consectário da dignidade humana.

O processo, como instrumento de aplicação do arcabouço normativo, precisa, em razão de sua própria finalidade, afastar-se de manipulações desleais e desvalorosas, sob pena de frustrar a si mesmo e os objetivos constantes no direito material. Na medida em que o processo, como técnica de acertamento de direito e concreção, desvirtua-se e refoge de sua missão por manobras e invectivas desleais dos litigantes, emerge violação aos valores constitucionais de relevo, impondo-se o repensar sobre as regras tutelares desses valores dentro do processo.

Por esse vértice é fácil perceber a necessidade de estudo sobre o ético e a repressão às deslealdades e improbidades dentro da relação processual travada entre Estado e particulares, otimizando o princípio da boa-fé objetiva e promovendo a dignidade da pessoa humana pelos escopos conhecidos do processo

NASCIMENTO, José Moacyr Doretto. A boa-fé objetiva e o processo civil . Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 3039, 27 out. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/20311>.

A derrota da palmada

O ECA já é suficiente para reprimir o que atenta contra o menor. Igualmente, fazer da palmada uma direta e audaciosa intervenção na família, em todas as variações, obstrui a possibilidade de enxergar, por meio da razão, a invalidade concreta dessa prática.

É bastante comum ouvirmos falar da palmada. Afinal de contas, quase toda uma geração brasileira teria crescido e se desenvolvido acostumada com esse tipo de tratamento. O interesse pedagógico, e a discussão da sua validade, sempre esteve por detrás do discurso daqueles que afirmavam – e afirmam – os supostos benefícios dessa espécie primitiva de educar. Bem verdade, no entanto, que nós, filhos de gerações passadas, de um certo modo fomos "corrigidos" através de algum meio punitivo e corpóreo, cujo objetivo era fazer-nos observar um erro e, em tese, não mais tornar a cometê-lo. Fica apenas a memória da dor insinuante, impressa no desenvolvimento da criança e até do adolescente. Era suficiente, naquele tempo longínquo, acreditar em algum ótimo resultado conquistado com a dura medida, naquelas circunstâncias, necessária ou não.

A palmada representa uma lógica a partir de uma postura correspondente a determinado pensamento educacional e social de época. Assim, desta perspectiva, inicialmente haveria legitimidade para o suplício pedagógico. Por outro lado, o pensamento e a sociedade mudam, transformam-se em algo sempre novo.

Logo, especialmente a partir do século XX, a reflexão quanto ao educar e seu modo de operação dentro da família, da escola e do Estado, desbravou outros horizontes. Devemos ressaltar que os graves eventos atentatórios contra a humanidade, no mesmo período, provocaram um certo de tipo de consciência pública para tentar aniquilar tudo aquilo que outrora denunciava sobretudo o descaso com a pessoa, em sua dignidade mais fundamental. Ninguém aguentava mais ver tanta violência, o que gerou uma inquietação a tal ponto que se fazia necessário revisar os velhos modelos, as antigas concepções, as clássicas lições. O pensar voltava ao humano, isto é, à pessoa qualificada pela dignidade.

O Estado contemporâneo adotou a posição de resguardo, por intermédio dos direitos fundamentais e, de uma certa maneira, pela atuação mais direta na vida a fim de proporcionar segurança e bem estar. Isso acontece quando, por exemplo, temos uma Constituição que assegura programas sociais, cujo objetivo se baseia justamente na oferta de oportunidades e, sobremaneira, na proteção dos núcleos essenciais da sociedade, como a família e as pessoas consideradas como vulneráveis, como os menores (crianças e adolescentes), os idosos e os consumidores. Por estarem em condição relativamente delicada, estes grupos demandam maiores preocupações por parte do Estado e, consequentemente, do Direito, na medida em que estão mais sujeitos a abusos e sofrimentos cotidianos. Neste contexto histórico prévio, a dignidade surge enquanto uma ordem a ser seguida; verificá-la garante a estabilidade do sistema e o cumprimento real da Constituição.

Então, quando falamos na palmada, tratamos de tema verdadeiramente delicado, multidisciplinar, que toca a família, sua liberdade de educar e a proteção pública da criança e do adolescente em estado de aprendizado biopsicossocial.

Hoje, o Brasil conta com um avançado mecanismo de amparo ao menor, o ECA (Lei n. 8.069 de 1990), sem falar nos dispositivos constitucionais que visam o mesmo fim (CF, art. 226 a 230). Tudo isso serve para garantir a máxima proteção do vulnerável, tendo em vista sua condição social de fragilidade, como já apontado. Por um lado, o Estado moderno tomou para si a co-participação na educação, através da imposições de diversos direitos específicos; todavia, a família é o ente legítimo que em primeiro lugar facilita o educar, pois representa o vínculo inicial da criança e do adolescente com o convívio. A intervenção no modo de educar quer dizer que, no império da Constituição Federal, e dos princípios fundamentais, nenhuma hipótese de ato lesivo ao menor é admitida. Mas, o Estado não quer, ou não deveria, simplesmente proibir a conduta, como quer fazer com a palmada. Precisa, em contrapartida, provar para a população que existem sim outras maneiras muito mais eficazes de aprendizagem do que o suplício, a dor, o vexame e o castigo pela força. Essa mania de legislar sobre tudo, absolutamente tudo, causa uma sensação de violação da liberdade; no nosso caso, a liberdade de educar nossos próprios filhos!

Há, neste sentido, um projeto de Lei n. 7672 de 2010 em discussão, de autoria do ex-presidente Lula, o qual detalha as condutas tidas como reprováveis, cometidas por pais ou responsáveis. Nesses casos, enquadram-se, quando verificadas, nas sanções disciplinares e administrativas contidas no próprio ECA. Parece que se busca a valorização do menor com a lei, quando, ao revés, importa muito mais a conscientização dialogada, com a participação pública, do que a descrição normativa. Além disto, o ECA já é suficiente para reprimir o que atenta contra o menor. Igualmente, fazer da palmada uma direta e audaciosa intervenção na família, em todas as variações, obstrui a possibilidade de enxergar, por meio da razão, a invalidade concreta dessa prática. Deve-se dar mais efetividade ao Estatuto em vigência, porquanto esteja repleto de alternativas para que o menor seja elevado à categoria que merece. A reprimenda doméstica, pretensamente pedagógica, ganha status jurídico quando ameaça a estabilidade física e moral do menor e, quanto à legislação em vigor, desnecessária qualquer complementação.

Porém, outro projeto de Lei n. 2654 de 2003, de autoria da Deputada Maria do Rosário PT/RS, em tramitação no Congresso, alude a novos crimes, novas tipos penais. Ora, se não é satisfatoriamente eficaz aquilo que serve agora para punir as violações contra menores, então trata-se de um problema operacional somente. Afigura-nos inoportuna a alteração legislativa do ECA, conquanto há que se dizer que o problema da palmada, no núcleo, é cultural, da ordem de concepção educacional no meio que se entende a disciplina e a aprendizagem familiar.

Discutir publicamente a cultura da palmada é o melhor caminho, de tal sorte que a formação de novas convicções e métodos em educação afirma o uso democrático da razão de educar. Na atualidade, o pensamento educacional é pacífico ao eleger o afeto, e não a força, como principal veículo de acesso à correção pedagógica do educando (criança e adolescente). Esse personagem social não goza ainda de segura consciência que possa justificar todos os atos de sua vida, pretexto que dá causa a tratamento completamente diferenciado. Destarte, a palmada, no cenário pós-moderno, cai por terra, pois sua razão principal não atinge o melhor resultado possível na educação, que é a consciência responsável dos atos. Não é possível rubricar a palmada diante do esclarecimento disponível, cuja incumbência, em verdade, é do Poder Público na divulgação e promoção. Tampouco é lícito criminalizá-la, porque o excesso ou a circunstância imoderada, ou reiterada dos atos, é enquadrado nos crimes existentes de maus-tratos (CP, art. 136) e/ou lesão corporal (CP, art. 129), quando de tal modo configurar.

A palmada é cruel por não cumprir com nenhum interesse pedagógico razoável. Devemos ter em mente que a presença do educador (pais, responsáveis e professores) manifesta-se na disciplina corretiva imposta com delicadeza, mansidão e consciência. O afeto, presente no interior do verdadeiro educar,isola o castigo corpóreo, marcando-o com o símbolo da irracionalidade. O Estado, noutro ponto, acerta no intento de trazer a palmada ao centro do debate, embora insista optar por via diversa, ao privilegiar a inclusão normativa da conduta.

Persevera o grito de todos contra tudo que impede que crianças e adolescentes, com efeito, basicamente os sejam. Aqui precisamos garantir a fruição da mocidade, tranquila e confortável, destes que, não sendo mero futuro, são o reflexo imediato do nosso presente e das nossas expectativas! Já só o afeto pode nos salvar! A falta dele é, na realidade, a maior indiferença, o pior dos castigos... Diria até, a perfeita palmada, o derradeiro suplício! Que paradoxo!

BRAGA, Luiz Felipe Nobre. A derrota da palmada. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 3039, 27 out. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/20314>.

O projeto do novo CPC e a supressão dos embargos infringentes

A intimação do executado, após o trânsito em julgado da sentença, para que dê cumprimento à mesma, é ato totalmente dispensável, uma vez que as partes já estão cientes do provimento judicial através dos meios ordinários de comunicação processual.

1. Introdução

Em dezembro de 2010, foi aprovado no Senado Federal o Projeto de Lei nº 166, que trata sobre o Novo CPC, resultante de um anteprojeto elaborado por uma comissão de juristas, após vários debates envolvendo os mais diversos segmentos da área jurídica (advogados, membros do Ministério Público, magistrados, etc.).

Entre as inúmeras inovações sugeridas nesse projeto, que atualmente encontra-se na Câmara dos Deputados sob o nº 8046/2010, está a supressão do recurso denominado embargos infringentes, acolhendo, conforme consignado na exposição de motivos do anteprojeto, entendimento de amplo setor da doutrina pátria, que há muito vinha defendendo a abolição desta modalidade recursal.


2. A (Des)necessidade dos Embargos Infringentes

A exposição de motivos do anteprojeto do novo CPC explica que:
Uma das grandes alterações havidas no sistema recursal foi a supressão dos embargos infringentes. Há muito, doutrina da melhor qualidade vem propugnando pela necessidade de que sejam extintos. Em contrapartida a essa extinção, o relator terá o dever de declarar o voto vencido, sendo este considerado como parte integrante do acórdão, inclusive para fins de prequestionamento.
Com efeito, Câmara (2008, p. 101) diz expressamente:
[...] defendemos a abolição total dos embargos infringentes, não nos parecendo adequado que o mero fato de ter havido voto divergente em um julgamento colegiado deva ser capaz de permitir a interposição de recurso contra a decisão proferida.
Essa constatação, aliás, estava prevista, originariamente, na própria exposição de motivos do CPC vigente (de 1973), em trecho curiosamente suprimido após o processo legislativo do anteprojeto elaborado por Alfredo Buzaid. Constava do item 35 da exposição de motivos o seguinte esclarecimento (apud Santos): A existência de um voto vencido não basta por si só para justificar a criação do recurso; por que pela mesma razão se deve admitir um segundo recurso de embargos sempre que no novo julgamento subsistir um voto vencido; por esse modo poderia arrastar-se a verificação do acerto da sentença por largo tempo, vindo o ideal de justiça a ser sacrificado pelo desejo de aperfeiçoar a decisão.

Contudo, por alguma razão que ora desconhecemos, o supracitado item 35 da exposição de motivos do CPC de 1973 não consta na publicação oficial e os embargos infringentes permaneceram no ordenamento jurídico brasileiro, nos mesmos moldes em que era previsto no CPC anterior (de 1939), passando por uma restrição das suas hipóteses de cabimento posteriormente, com o advento da lei nº 10.352, de 26 de dezembro de 2001, que limitou os embargos infringentes à impugnação dos acórdãos não unânimes que, em sede de apelação, reformassem sentenças que resolveram o mérito (sentenças definitivas), ou que julgassem procedentes ações rescisórias.

Aqui vale destacar que o Brasil é o único país cuja lei prevê recurso contra decisão não unânime de tribunal. Com efeito, não há institutos similares aos embargos infringentes no Direito comparado, uma vez que mesmo Portugal, onde o recurso teve origem, há muito já o aboliu.

Destarte, reputamos bastante salutar a supressão dos embargos infringentes do projeto do Novo CPC, pois o mesmo está dissonante com o atual estágio do desenvolvimento científico do Direito Processual (fase instrumentalista), que se esforça para aproximar o processo do ideal de Justiça preconizado pela sociedade, o que envolve, entre outras questões, a celeridade com que os conflitos são resolvidos.

Basta pensar que os embargos infringentes são recursos cabíveis contra decisões não unânimes, ou seja, basta, em tese, a existência de um só voto vencido para autorizar a interposição dos infringentes, o que contraria a lógica do razoável e se mostra com um caráter nitidamente procrastinatório, mesmo porque, face a omissão legal sobre os efeitos desse recurso, entende-se que os mesmos são dotados de efeito suspensivo, uma vez que a suspensividade é a regra na sistemática recursal do CPC vigente.

Nem se diga, outrossim, que a supressão do referido recurso atenta contra o princípio do duplo grau de jurisdição, pois o mesmo só é cabível contra acórdãos, decisões de tribunais como se sabe, de modo que, neste estágio da marcha processual, o duplo grau já fora respeitado, uma vez que a lide já fora examinada por um magistrado de 1º grau e por um órgão colegiado.

Por outro lado, é interessante observar que o projeto do Novo CPC suprime o recurso, mas faz uma ressalva para assegurar a relevância do voto vencido: diz o art. 896, §3º, do projeto aprovado no Senado que
Art. 896. Proferidos os votos, o presidente anunciará o resultado do julgamento, designando para redigir o acórdão o relator ou, se vencido este, o autor do primeiro voto vencedor.
[...]
§ 3º. O voto vencido será necessariamente declarado e considerado parte integrante do acórdão para todos os fins legais, inclusive de prequestionamento.
Portanto, veja-se que o projeto permite que, em sede de Recurso Especial para o STJ ou de Recurso Extraordinário para o STF (recursos que possuem como um de seus requisitos de admissibilidade o prequestionamento), o voto vencido nas instâncias ordinárias poderá ser conhecido e até mesmo prevalecer. O que o projeto faz é excluir um recurso desnecessário, tanto que não possui similar em qualquer outro país, mas sem desconsiderar a importância do voto vencido, cuja existência indica a presença de uma controvérsia sobre o direito aplicável à demanda.

Vale destacar que essa posição dos autores do projeto do Novo CPC, contraria o entendimento majoritário do Superior Tribunal de Justiça, expresso na súmula nº 320, que possui o seguinte enunciado: "A questão federal somente ventilada no voto vencido não atende ao requisito do prequestionamento".

3. Considerações Finais

Tendo em vista as características da fase instrumentalista, atual estágio científico do Direito Processual Civil, notadamente a busca pela efetividade do processo inclusive pelo viés da celeridade de sua tramitação (justiça tardia não é justiça efetiva), pode-se entender que os embargos infringentes, recuso cabível quando há um julgamento não unânime em um tribunal, consistem em instituto desnecessário – e até mesmo indesejado – na ordem jurídica nacional, tanto que a doutrina há muito vem defendendo a sua extinção e que não há institutos similares no Direito comparado.

Por isso, reputamos bastante salutar a intenção do projeto do Novo CPC, que pretende simplificar o processo civil brasileiro e harmonizá-lo com as necessidades dos tempos hodiernos, de abolir tal recurso do nosso ordenamento jurídico, embora esta seja uma medida que contraria a jurisprudência pacificada do Superior Tribunal de Justiça.

Sempre lembrando que ao suprimir tal recurso o projeto cria uma medida a nosso ver suficiente para assegurar a importância do voto vencido, reconhecendo a controvérsia e possibilitando que, nos tribunais superiores, a decisão superada nas instâncias ordinárias possa prevalecer.

Isso nada mais é do que uma tentativa de se criar um CPC que estabeleça um equilíbrio entre a ampla defesa/contraditório e a razoável duração dos processos, todos estes direitos constitucionais expressos e igualmente relevantes, pois se não é efetiva uma justiça tardia, também não o é uma justiça que cria empecilhos a uma ampla discussão das controvérsias que permeiam a análise do direito das partes envolvidas.

LIRA, João Ricardo Imperes. O projeto do novo Código de Processo Civil e a supressão dos embargos infringentes. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 3039, 27 out. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/20298>.

Dentista é obrigado a indenizar paciente por danos

O ortodontista tem a obrigação de obter resultado satisfatório com tratamento de paciente. Caso contrário, tem o dever de indenizar pelo mau serviço prestado.O entendimento é da 4ª Turma do STJ e foi aplicado durante julgamento do caso de um ortodontista de Mato Grosso do Sul. Ele não conseguiu derrubar a indenização de cerca de R$ 20 mil que ficou obrigado a pagar pelo não cumprimento eficiente de tratamento ortodôntico.

De acordo com a paciente, a extração de dois dentes sadios teria lhe causado perda óssea. O tratamento tinha por objetivo a obtenção de oclusão ideal, tanto do ponto de vista estético como funcional. Por isso, ela pediu o ressarcimento de valores com a alegação de que foi submetida a tratamento inadequado, além de indenização por dano moral. Apesar de não negar os fatos, o ortodontista sustentou que não poderia ser responsabilizado pela falta de cuidados da própria paciente. Segundo ele, ela não comparecia às consultas de manutenção, além de ter procurado outros profissionais sem necessidade.

De acordo com ele, os problemas decorrentes da extração dos dois dentes — necessária para a colocação do aparelho — foram causados exclusivamente pela paciente. Isso porque, alegou, ela não teria seguido as instruções que lhe foram passadas. Sua obrigação, explicou, seria “de meio” e não “de resultado”.

O ministro Luís Felipe Salomão afirmou que há hipóteses em que é necessário atingir resultados que podem ser previstos para considerar cumprido o contrato, como é o caso das cirurgias plásticas embelezadoras. Foi essa posição que a 4ª Turma seguiu. Para o colegiado, como a paciente demonstrou não ter sido atingida a meta pactuada, há presunção de culpa do profissional, com a consequente inversão do ônus da prova.

De acordo com o artigo 14, parágrafo 4º, do Código de Defesa do Consumidor e com o artigo 186 do Código Civil, está presente a responsabilidade quando o profissional atua com dolo ou culpa. Com informações da Assessoria de Comunicação do STJ.

REsp 1238746
Revista Consultor Jurídico