quarta-feira, 7 de junho de 2017

Abandono afetivo inverso e sua responsabilidade civil e criminal (parte 3)

(...)
SEÇÃO III AS RESPONSABILIDADES ACARRETADAS PELO ABANDONO AFETIVO INVERSO

3.1. A RESPONSABILIDADE CIVIL

Apesar da impossibilidade em estabelecer um quesito valorativo aos cuidados ou a inexistência destes, o abandono moral e/ou material pode ser qualificado de forma indenizatória. Os parâmetros buscam estudar os responsáveis, as circunstâncias de suas vidas e a falta do cuidado, carinho ou afeto por parte deles, tornando, assim, uma sanção adequada. Com a constatação da ausência dos requisitos indispensáveis para a solidariedade e convivência familiar, o abandono torna-se um desvio da efetiva estabilidade familiar, tornando capaz do caso concreto ser juridicamente possível responsabilizado civilmente. No âmbito do abandono afetivo paterno-filial, o fenômeno jurídico de indenização por danos morais teve grande desenvolvimento no Brasil, principalmente após a Constituição Federal de 1988, apesar da possibilidade de trazer demandas exacerbadas e imorais acerca do tema.

Contudo, existem entendimentos nos Tribunais pátrios, que contestam essa perspectiva de responsabilidade, onde obedece e fundamenta-se no Princípio da Afetividade e no da Solidariedade Familiar, pontuando que o Poder Judiciário não pode coagir os filhos à prestarem auxílio afetivo e de cuidado, conforme julgado do Tribunal de Justiça do Paraná, a seguir:

PROCESSUAL. PETIÇÃO INICIAL INDEFERIDA. AUSÊNCIA DE JULGAMENTO DO MÉRITO.SENTENÇA MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. 1. A demanda visa à coação dos filhos para que prestem auxílio afetivo e de cuidado com a mãe idosa e enferma, o que não pode ser determinado pelo Poder Judiciário.2. Os laços afetivos são sentimentos subjetivos e que devem partir de cada ser humano naturalmente, sendo inviável a sua imposição.3. A demanda não se confunde com pedido de alimentos, pois este não foi um requerimento inicial e, nesta fase processual, implica em inovação recursal, conforme art. 517 do CPC.4. Reconhecimento da ausência de interesse processual do Ministério Público e indeferimento da petição inicial conforme art. 295, inc. III, CPC.5. Recurso conhecido e desprovido. (TJ-PR - 12ª C. Cível - AC - 1386909-3 - Região Metropolitana de Londrina - Foro Central de Londrina - Rel.: Joeci Machado Camargo - Unânime - - J. 09.03.2016) (g. n.) No entanto, o Estado não pode assumir posição contrária à necessidade da reparação, já que há a fragilidade social da criança abandonada afetivamente, e esta situação é completamente correlata ao abandono inverso. Neste sentido, entendeu o Tribunal de Justiça do Estado do Piauí: CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE. 1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família. 2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88. 3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia Â- de cuidado Â- importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico. 4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social. 5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes Â- por demandarem revolvimento de matéria fática Â- não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial. 6. Recurso Conhecido e Provido. 7. Votação Unânime. (TJ-PI. 2ª Câmara Especializada Cível. AC: 00017611820078180140 PI 201200010014128, Relator: Des. José James Gomes Pereira, Data de Julgamento: 04/09/2013, Data de Publicação: 17/09/2013) O amor é uma faculdade, no entanto, cuidar é dever. Os julgados em qualquer esfera do Judiciário, não tem o direito de discutir o amar, mas é uma imposição jurídica, biológica e moral o cuidar, pois muito se fala em liberdade e direitos, porém a discricionariedade do ser humano torna-se indisponível no contexto de sentimento aos próximos, já que, remetendo ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, cada ser humano se faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade. 3.2. A RESPONSABILIDADE CRIMINAL Como a evolução história da proteção do idoso no ordenamento jurídico, faz menção da Declaração Universal dos Homens até a atual Constituição Federal do Brasil, o Código Penal também possui dispositivos beneficiando e protegendo a pessoa de maior idade. É o caso, por exemplo, do inciso I, artigo 65, que atenua a pena quando o agente é maior de setenta anos na data da sentença. Após a promulgação da Lei do Estatuto do Idoso, houve alteração no §3º do artigo 140, da Lei Penal, instituindo a condição de pessoa idosa no crime de injúria. Desta forma, a Lei de Execuções Penais, em seu artigo 32, § 2º, específica que o trabalho dos condenados com idade superior a 60 (sessenta) anos deve ser compatível, e o artigo 177 dá o direito de prisão domiciliar quando o condenado tiver mais que setenta anos. Assim, não há dúvidas de que a responsabilidade criminal, apesar de não pacificada jurisprudencial ou doutrinalmente, é cabível na situação do abandono afetivo inverso. O idoso se encontra em uma etapa da vida completamente vulnerável, necessitando de maiores cuidados, de extrema atenção e, ao invés disso, recebe maus tratos, violência, inação de afeto ou desrespeito por parte dos membros da família que deveriam ser responsáveis por ele. Além disso, se já não bastasse as negligências por parte de familiares, na situação de vulnerabilidade que o idoso se encontra, diversas são as denúncias no Poder Judiciário, onde os responsáveis, em vez de cuidado e afeto, se beneficiam erroneamente e ilicitamente da aposentadoria ou benefício de prestação continuada do aposentado, conforme jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul a seguir exposta: APELAÇÃO CRIMINAL. ESTATUTO DO IDOSOS (LEI 10.741/2003). ABANDONO MATERIAL (ART. 99) E APROPRIAÇÃO E DESVIO DE RENDIMENTOS DE IDOSO (ART. 102). Inequívocas a materialidade e a autoria do delito, diante da prova testemunhal. A família tem obrigação de prover as necessidades básicas do idoso. Os denunciados, filho e nora da vítima, deixaram de prover em suas necessidades básicas a idosa, dando ao benefício previdenciário que ela recebia destinação diversa de sua finalidade. Condenação mantida. PENAS. Redimensionadas. SUBSTITUIÇÃO. Mantida a prestação de serviços comunitários pelo tempo da pena ora fixada e reduzida a prestação pecuniária para um salário mínimo para cada réu. APELO PARCIALMENTE PROVIDO. (Apelação Crime Nº 70067168625, Sétima Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Carlos Alberto Etcheverry, Julgado em 24/11/2016). (g. n.) Ao analisar a Lei Penal Brasileira, constata-se, ainda, diversas infrações penais, como maus tratos, fundamentado no artigo 136, injuriar uma pessoa na sua condição de idosa, aumentando a pena do crime tipificado no artigo 140, ou o aumento de pena quando conduz o idoso a um serviço análogo à escravidão, conforme § 1º, inciso II do artigo 149-A, todos do Código Penal. Acerca dos maus-tratos, entende a Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: APELAÇÃO CRIME. MAUS-TRATOS CONTRA IDOSO. ART. 99, CAPUT, DA LEI N. 10.741/03 (ESTATUTO DO IDOSO). SUFICIÊNCIA PROBATÓRIA. SENTENÇA CONDENATÓRIA MANTIDA. Matéria Preliminar 1. O art. 94 da Lei n. 10.741/03 prevê a possibilidade de aplicação do procedimento sumaríssimo aos crimes cometidos contra idosos. No entanto, a mesma legislação prevê a inaplicabilidade, em casos tais, de quaisquer medidas despenalizadoras instituídas pela Lei dos Juizados Especiais Criminais, determinação decorrente do julgamento da ADI n. 3096, proferido pelo STF, em 16/06/2010. Decisão que possui eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal, por força do parágrafo único do art. 28 da Lei n. 9.868/99. Mérito 2. Suficientemente comprovada a prática do delito de maus-tratos pelo acusado, filho da vítima e responsável pelos cuidados dela, que expôs a perigo a integridade física de sua mãe, idosa, com dificuldades de locomoção e obesa. 3. Depoimentos que descrevem, de forma uníssona, que a conduta do réu é motivada pelo alcoolismo. APELO IMPROVIDO. (TJ-RS, Turma Recursal Criminal, Recurso Crime Nº 71004783445, Relator: Edson Jorge Cechet, Data de Julgamento: 12/05/2014.) (g. n.). Ademais, conforme diversos casos noticiados ou abafados pela sociedade, os idosos maltratados, normalmente sofreram algum tipo de violência, que é uma circunstância agravante de diversos crimes penais. Infelizmente, o Estado assume uma obrigação de intervir nas relações familiares, de tal forma, que cabe até impor medida protetiva e afastamento daqueles que deveriam cuidar e se responsabilizar pelos anciões. Neste contexto, foi o que entendeu o Rio Grande do Sul, em seu julgado: MEDIDA DE PROTEÇÃO. DIREITO DA PESSOA IDOSA EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE. DETERMINAÇÃO LIMINAR DE AFASTAMENTO DA FILHA E SEU COMPANHEIRO DA RESIDÊNCIA. CABIMENTO. OCORRÊNCIA DE NEGLIGÊNCIA E ABANDONO. 1. Restando cabalmente demonstrado de que os idosos estavam sendo vítimas de negligência e abandono por parte da filha que com eles residia, mostra-se correta a determinação sentencial de afastamento da mesma e de seu companheiro. 2. A prova dos autos mostrou-se suficiente para agasalhar a decretação da medida de afastamento, eis que destinada a assegurar a dignidade e a proteção de pessoa idosa, com amparo previsto na Lei nº 10.741/2003. 3. Tratando-se de pessoas idosas e em situação de vulnerabilidade, que vinham sendo maltratadas pela filha, era mesmo necessária a medida de afastamento da recorrente e de seu companheiro, a fim de protegê-las e assegurar-lhes melhores condições de vida. Recurso desprovido. (TJ-RS, Sétima Câmara Cível, Apelação Cível Nº 70067517433, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em 29/06/2016). Isto posto, é totalmente necessário e cabível a responsabilização criminal dos responsáveis quando provocam o abandono afetivo dos seus genitores, já que constitucionalmente, moralmente ou em qualquer que seja a esfera jurídica, estão cometendo atos ilícitos contra pessoas com tratamento especial e cuidadoso das leis.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conclui-se que é necessária e válida a discussão sobre o Abandono Afetivo Inverso. O envelhecer é um fato que acompanha a sociedade desde o começo, sendo um fenômeno vivenciado que se adequa ao momento social atual. Ocorre que, com o avanço tecnológico, aumento da expectativa de vida, houve também o aumento da população idosa e o Brasil sofreu com isso, sem políticas públicas para acompanhar essa nova realidade. Logo, existe uma preocupação, judicial e legislativa, em mudar a atuação do Estado e a proteção às relações familiares entre filhos e seus genitores. Para que seja possível concretizar o instituto do Abandono Afetivo Inverso, é necessário analisar o caso concreto e ater à situação no ordenamento jurídico.

Neste presente trabalho, notou-se que o Princípio da Afetividade, num campo tão subjetivo das Leis, norteia as relações familiares contemporâneas, e é o orientador destes institutos, como o Abandono Afetivo e o “às avessas”. O Brasil tende a aumentar progressivamente sua população idosa, então faz-se necessário se preocupar com o fato de ainda não ter pré-requisitos ou legislações específicas para responsabilizar civil ou criminalmente quem, por negligência, maldade ou qualquer que seja o motivo, provoca, além de lesões físicas, psicológicas, inação de afeto à essas pessoas de maior vulnerabilidade na sociedade. Desta forma, ainda que o amor não possa ser coagido pelo Estado ou em qualquer relação familiar, sem dúvidas, tem-se que em indenizações valorativas, como as morais, a solução possível e realista para tutelar o dever de cuidado ultrajado pelos filhos, além de ações ou medidas protetivas e preventivas, no sentido de caminhar até a total inibição da prática do abandono.

Em um outro enfoque, distinto do tema abordado neste trabalho, parte da ausência da afetividade dos filhos para com os seus genitores é devida ao sentimento de cuidado e carinho abortado na infância pela preguiça, falta de compromisso ou tempo, descaso perante a educação, que deveria ser dada em casa, e uma preocupação e cobrança exacerbada na educação proveniente das escolas, influenciando na formação de personalidade e emocional dos filhos, contribuindo para esse descaso quando a situação paterno-filial se inverte. Resta firmado entendimento social ou jurídico que a pessoa necessita de carinho, afeto, cuidado, no começo e ao fim da vida. Se o filho ou responsável, por mero deleite, decide por abandonar seus pais, que seja legislado e condenado por esta ação ou omissão. 

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Fonte: ALMEIDA, Loa Karen Pereira dos Santos. Abandono afetivo inverso e sua responsabilidade civil e criminal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5088, 6 jun. 2017. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/58218>. Acesso em: 7 jun. 2017.

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