segunda-feira, 20 de março de 2017

Direito ao esquecimento - direito à memória e limitações ao esquecimento.

Apura-se o que vem a ser o direito ao esquecimento, em que pilares se funda, quando seria viável pleiteá-lo e quais seriam seus limites.

Em uma sociedade saturada de informações e imersa em um ambiente que favorece a veiculação e o resgate de fatos, imagens e até áudios, a recorrente reminiscência de eventos pretéritos poderá ser por demais indomada, para certas pessoas. Sob o argumento da liberdade de informação, memória e conhecimento situações constrangedoras, opiniões capciosas e até crimes devidamente punidos podem vir à tona sem maiores motivos, exacerbando a pena oportunamente aplicada, ou recrudescendo um pesar já cicatrizado, isto devido à facilidade de identificação e resgate de informações na rede mundial de computadores.

Este artigo, atento a essa realidade, pretende fornecer ao leitor um breve apurado do que viria a ser o direito ao esquecimento, em que pilares se funda, quando seria viável pleiteá-lo e quais seriam seus limites.

Originariamente concebido na doutrina americana através da alcunha right to be let alone, o direito ao esquecimento acabou sendo vastamente tratado pela doutrina nacional, a ponto de se lastrear por diversas situações. O termo foi proposto pelos norte-americanos Samuel Warren e Louis Brandeis, e pode ser livremente traduzido para direito de ser deixado só, mas também concebe o direito de ser deixado em paz, de estar só e como se preferiu no Brasil, direito ao esquecimento.

A vastidão terminológica poderá ter contribuído para a enorme gama de situações abarcadas pelo conceito. O alargamento de possibilidades oferecidas pela internet injetou uma série de novas oportunidades à aplicação deste direito, propiciando o questionamento sobre a ponderação entre direitos classicamente antagônicos, o direito à informação, que se desdobra no direito à memória, e o direito à vida privada, consectário da dignidade.

Em solo nacional, o direito ao esquecimento possui assento na Constituição Federal de 1988, por mais que não seja possível identificá-lo explicitamente, convencionou-se depreendê-lo do direito à vida privada, honra e dignidade (art. 5º, X da CFRB/88 e art. 21 do CC).

Apesar da origem estadunidense do termo, talvez seja o caso alemão Lebach que tenha suscitado a análise deste tema. Trata-se do caso de um condenado alemão, que, ao se aproximar do momento de sua liberdade, portanto, já no fim do cumprimento de sua pena, foi surpreendido com a notícia de que uma emissora de televisão iria televisionar uma reportagem sobre o seu crime, bem como tratar a respeito de uma suposta prática de homossexualidade em seu presídio.

A par desta novidade, o detento requereu à justiça alemã que o canal fosse proibido de transmitir este programa, alegando que somente desta forma seria possível impedir a ocorrência do dano, fundando seu pedido na incoerência de serem ressuscitados fatos pretéritos e sobre os quais já não mais se repercute, a ponto de comprometer sua vivência e reintrodução na sociedade. Seu pedido foi deferido, o que contribui para alavancar a tese.

No ordenamento nacional, é comum o retorno midiático de histórias de fatalidades e de trágicos episódios de violência, como o que provocou o julgamento do RESP 1.335.153-RJ, conhecido como o caso Aida Curi. Trata-se de um episódio de extrema violência experimentado por uma jovem mulher, que, após ser raptada e estuprada, foi assassinada por três homens. Considerando a longa data desde a ocorrência do sinistro e o desejo da família de evitar qualquer referência ao incidente, a veiculação de um programa tratando especificamente deste assunto gerou um profundo desconforto aos familiares, que se viram dispostos a pleitear com fulcro no direito ao esquecimento.

O caso é icônico, já que, a partir dele, fixou-se um critério pelo qual seria possível filtrar e se orientar na consideração ao direito ao esquecimento. Por meio do julgado estabeleceu-se que fatos historicamente reconhecidos pelos meios ordinários, quando combinado com a impossibilidade de se representar o fato sem se desvincular o nome de certo personagem, não poderiam ser acobertados pelo manto do direito ao esquecimento, conforme elucida a egrégia decisão:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL-CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE IMPRENSA VS. DIREITOS DA PERSONALIDADE. LITÍGIO DE SOLUÇÃO TRANSVERSAL. COMPETÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. DOCUMENTÁRIO EXIBIDO EM REDE NACIONAL. LINHA DIRETA-JUSTIÇA. HOMICÍDIO DE REPERCUSSÃO NACIONAL OCORRIDO NO ANO DE 1958. CASO "AIDA CURI". VEICULAÇÃO, MEIO SÉCULO DEPOIS DO FATO, DO NOME E IMAGEM DA VÍTIMA. NÃO CONSENTIMENTO DOS FAMILIARES. DIREITO AO ESQUECIMENTO. ACOLHIMENTO. NÃO APLICAÇÃO NO CASO CONCRETO. RECONHECIMENTO DA HISTORICIDADE DO FATO PELAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS. IMPOSSIBILIDADE DE DESVINCULAÇÃO DO NOME DA VÍTIMA. ADEMAIS, INEXISTÊNCIA, NO CASO CONCRETO, DE DANO MORAL INDENIZÁVEL. VIOLAÇÃO AO DIREITO DE IMAGEM. SÚMULA N. 403/STJ. NÃO INCIDÊNCIA

Um outro ponto de intenso debate é o do campo de aplicação do direito ao esquecimento. Em um primeiro momento, imagina-se que a sua aplicação se limitaria à seara penal, quando, na realidade, a esfera civil, devido à internet, aos jornais, às revistas e aos programas de televisão têm provocado o retorno de uma série de eventos já considerados passados e devidamente esquecidos pelo público.

É inquestionável que, nos casos dos ex-presidiários e até mesmo de pessoas denunciadas em inquéritos policiais, os efeitos da memorização incessante são mais visíveis após o abandono do ergástulo.

Entretanto, a evolução da técnica e da informática propiciou a expansão do campo de aplicação da teoria.

Uma vertente interessante deste direito envolve as pessoas públicas, que, devido a algum trabalho bastante prestigiado na TV ou na Internet, obra ou situação bastante reproduzida, optem por largar em definitivo a visualização e o assédio que envolve o mundo das pessoas famosas, e se vejam continuadamente interrompidos neste intento, interpelados pela mídia e pelo público, o que frustra o dito intento. Percebe-se, por meio deste exemplo, vivido, inclusive, por uma série de artistas brasileiros, que o direito ao esquecimento se desdobra até este ponto.

Ao se ver assediado desta maneira, o indivíduo poderá ingressar com ação judicial, pleiteando a interrupção da violação do seu direito à privacidade e à honra, estampada na figura do esquecimento.

Apesar da fácil aplicação abstrata do direito às situações múltiplas, ele não deixa de ser alvo de críticas. Para o ministro Min. Luis Felipe Salomão, em icônica decisão na REsp 1.335.153-RJ, o uso desenfreado da medida poderia apresentar alguns resultados, senão nocivos, ao menos complicados, tais como:

Primeiramente, o direito avança contra à liberdade de expressão e imprensa, e, por mais que estas já possuam uma forma sistemática de aplicação, ainda não compatibilizaram de forma completa com este direito, restando ao julgados pátrios estabelecer pontualmente a forma mais tersa de fazê-lo incidir.

A garantia ao esquecimento sugere a não publicação ou propagação da informação, e, caso esta já tenha sido prolatada, a inibição da sua divulgação, primeiramente na fonte e após nos canais em que possa ser detectada. Isto representaria o desaparecimento de informações, o que desencadeia uma perda da história, afrontando diretamente o direito a memória.

Há a própria preocupação com o desaparecimento público das informações e do acesso a estas informações, principalmente quando versar sobre delinquentes reconhecidamente perigosos, titulares de um histórico criminoso hediondo.

A par destes efeitos, o supramencionado ministro sugere que fatos de interesse coletivo devem prevalecer sobre a intimidade, por mais que isto represente o soerguimento momentâneo de uma garantia constitucional sobre outra, para que se beneficie a sociedade, em detrimento de um único indivíduo.

REFERÊNCIAS:

CABRAL, Bruno Fontenele. Disponível em < https://jus.com.br/artigos/28362/the-right-to-be-let-alone-consideracoes-sobre-o-direito-ao-esquecimento#_edn6 >. Acesso em 18 de Fev, 2017.
GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. São Paulo: Atlas, 2001, p. 88.
MARTINEZ, Pablo Dominguez. Direito ao esquecimento: a proteção da memória individual na sociedade da informação. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p.36


SILVA, Ingrid Caroline Andrade da; WANNESKA, Kássia Wanneska de Sousa et al. Direito ao esquecimento. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5009, 19 mar. 2017. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/56059>. Acesso em: 20 mar. 2017.

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