A elaboração do testamento vital como meio de se registrar a complexa decisão de não prolongar a própria vida importa em fazer a distinção entre o direito à morte digna e o “direito de morrer”, a fim de realçar, afinal, qual deles efetivamente é resguardado pelo instrumento de diretiva antecipada.
Como se sabe, a vida é considerada o bem jurídico de mais alto valor,
direito inalienável e intransferível, exigindo-se dever geral de
abstenção no sentido de não lesar e não perturbar. Ademais, depreende-se
que a Carta Magna brasileira é terminantemente favorável ao direito à
vida, que é, sem dúvida, o primeiro e mais importante de todos os
direitos fundamentais do homem.[69]
Em face de tamanha importância, CARLOS ALBERTO BITTAR acrescenta:
o direito à vida integra-se à pessoa até o seu óbito, abrangendo o direito de nascer, o de continuar vivo e o de subsistência, mediante trabalho honesto (CF, art. 7º), ou prestação de alimentos (CF, art. 230), pouco importando que seja idosa (CF, art. 230), nascituro, criança, adolescente (CF, art. 227), portadora de anomalias físicas ou psíquicas (CF, arts. 203, IV, 227, § 1º, II), que esteja em coma ou que haja manutenção do estado vital por meio de processo mecânico.[70]
Entretanto, diante de todos os direitos fundamentais, não se deve ver o
direito à vida isoladamente, cabendo considerar que tal direito não é
absoluto nem exatamente um dever, sob pena de se transformar a vida em
direito para quem a deseja e obrigação para quem não a quer.
Por tais razões, no âmbito da ética da vida, normalmente nos deparamos
com dois tipos de discursos: o parenético e o científico. Naquele, a
vida é verdadeira propriedade de Deus e ao homem incumbe apenas
administrá-la, isto é, trata-se de um valor absoluto que só a Deus
pertence e, consequentemente, o ser humano não tem nenhum direito sobre a
vida própria e alheia; ao tempo em que, no segundo discurso, igualmente
a vida é um dom recebido, porém fica à disposição daquele que o recebe,
com a tarefa de valorizá-lo qualitativamente, o que nos permite
reconhecer ser o homem protagonista da sua própria existência.[71]
Assim, quando se fala em sacralidade da vida, utiliza-se a explicação
parenética e, ao se falar em qualidade de vida, o discurso científico,
de tal modo que, naquele âmbito, o princípio fundamental é a
inviolabilidade da vida e, com base na abordagem científica, a qualidade
de vida é o valor fundamental.
Todavia, a sacralidade e a qualidade de vida não precisam ser dois
vetores oponentes, sendo necessário, no atual estágio da civilização
humana, conjugar as duas abordagens, conforme bem se posiciona HUBERT
DOUCET:
O caráter sagrado da vida não se opõe necessariamente à qualidade de vida. Na tradição judaico-cristã as duas dimensões se comunicam. Em nossas sociedades ocidentais, saídas dessa tradição, a preservação da vida humana é um valor fundamental mas não absoluto. A presunção em favor da vida deve ser temperada, se não o absolutismo do princípio poderia conduzir ao desrespeito de certos doentes.[72]
Desse modo, é de se considerar a existência de uma disponibilidade
controlada ou parcial da vida, tendo em vista que “quando a vida física é
considerada um bem supremo e absoluto, acima da liberdade e da
dignidade, o amor natural pela vida se transforma em idolatria, [...]
organizando a fase terminal como uma luta a todo custo contra a morte”[73], o que não significa, porém, legitimar o direito de morrer, mas, pelo contrário, ressaltar a dignidade no momento da morte.
Nesse ponto, então, a partir da noção de vida digna, analisada sob o
prisma da saúde como qualidade de vida ou bem-estar biopsicossocial do
ser humano, inserido em seu contexto histórico, sociocultural e
ambiental, possibilitando o pleno desenvolvimento da pessoa,[74] ROXANA CARDOSO BRASILEIRO BORGES conceitua morte digna como
a recusa de se submeter às manobras tecnológicas que só fazem prolongar a agonia. É um apelo ao direito de viver uma morte de feição humana (...) significa o desejo de reapropriação de sua própria morte, não objeto da ciência, mas sujeito da existência.[75]
De mais a mais, morrer com dignidade é “a reivindicação por vários
direitos, como a dignidade da pessoa, a liberdade, a autonomia, a
consciência, refere-se ao desejo de se ter uma morte humana, sem o
prolongamento da agonia por parte de um tratamento inútil”.[76]
Não se trata de defender qualquer procedimento que antecipe ou cause a
morte do paciente, mas de reconhecer sua liberdade e sua
autodeterminação, dando-lhe permissão para morrer com seu caráter, com
sua personalidade e com seu estilo,[77]
diferentemente do “direito de morrer”, que teoricamente seria o direito
de o indivíduo, que esteja em estado terminal ou até mesmo saudável,
submeter-se a procedimentos que causem ou antecipem a sua morte, a
exemplo da eutanásia, o que, consoante outrora relatado, não se admite
no Brasil.
O direito de morrer tampouco deve ser confundido e/ou fundamentado no
direito que o paciente tem de não ser constrangido a submeter-se, com
risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica (CC/02,
art. 15), na medida em que o que se visa através dessa regulamentação no
Código Civil é justamente à preservação da integridade do corpo humano
diante de situações em que um tratamento médico necessário a longo prazo
para o restabelecimento do enfermo possa colocar em risco a sua própria
vida, ou seja, o bem jurídico tutelado é a própria vida do cidadão, que
estaria em risco por conta de um tratamento apontado como necessário.
Logo, a diferença entre o direito à morte digna e o direito de morrer é
salutar, na medida em que o testamento vital, objetivando evitar o
prolongamento da vida através de meios artificiais que põem em cheque o
próprio bem estar do paciente, busca resguardar tão somente aquele, e
não propriamente um suposto direito generalizado de o ser humano ceifar a
própria vida, sobretudo quando não se concebe que o seu titular possa
dela dispor, haja vista que a vida não é uma concessão jurídico-estatal
nem tampouco um direito a si mesmo.[78]
LEÃO, Thales Prestrêlo Valadares. Da (im)possibilidade do testamento vital no ordenamento jurídico brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3626, 5 jun. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/24638>. Acesso em: 6 jun. 2013.
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