sábado, 5 de outubro de 2013

Do compromisso de compra e venda de imóvel



Do compromisso de compra e venda de imóvel
Sem a pretensão de esgotar o tema, cumpre ao menos gizar os seus contornos básicos.
Sílvio de Salvo Venosa[2] leciona que:
“Pelo compromisso de compra e venda de imóvel (...) os poderes inerentes ao domínio, ius utendi, fruendi et abutendi, são transferidos ao compromissário comprador. O promitente vendedor conserva tão-somente a nua-propriedade, até que todo o preço seja pago. Nessa situação, o ius abutendi, direito de dispor, não é transferido de todo, mas esmaece para o vendedor à medida que o preço é pago. Embora a função de garantia nesse contrato não seja sua característica principal, é elemento marcante do instituto”.
Diversas razões concorreram para a larga utilização do compromisso de compra e venda no Brasil. Uma delas está implícita na doutrina acima. A saber, tratando-se de bens imóveis, geralmente de elevada monta, convém que suas transações se façam mediante parcelamento do preço. Nesse contexto o compromisso de compra e venda assume relevante papel ao propiciar que o promitente vendedor adie a transferência do direito real de propriedade até o pagamento integral do preço[3].
Assim, enquanto não adimplido todo o preço o compromissário comprador conserva mero vínculo obrigacional em face do promitente vendedor, cujo direito é proporcional ao montante amortizado.
Posteriormente, abusos perpetrados pelo promitente vendedor, lesivos ao interesse do comprador, revelaram a necessidade de se introduzir um direito real (inferior ao de propriedade) oponível erga omnes desde que registrado o contrato.
A saber, no início do século passado o compromisso de compra e venda favoreceu a especulação imobiliária. Para não perderem expressiva valorização experimentada pelo bem[4], promitentes vendedores valiam-se do direito de arrependimento previsto no artigo 1.088 do Código Civil anterior[5]. Dessa forma muitos compromissos de compra e venda foram desfeitos em prejuízo de pessoas humildes que se viam despojadas de seu único imóvel e sem receberem justa indenização.
Para combater essa prática adveio o Decreto-lei 58/37 (aplicável inicialmente apenas a terrenos loteados), que ao atribuir ao compromissário comprador direito real oponível a terceiro (se registrado o contrato[6]), subtraiu do promitente vendedor o direito de arrependimento. O artigo 15 do mesmo diploma confere ao comprador, pago todo o preço, direito de exigir a outorga da escritura.
Posteriormente o regime do Decreto 58/37 foi estendido a terrenos não loteados por força da Lei 649/49, sendo ambos derrogados pela Lei 6.766/79 que passou a regular os compromissos de compra e venda de imóveis urbanos.
Superado esse brevíssimo delineamento do contrato de compromisso de compra e venda, cuida enfatizar que os contratos particulares sem registro situam-se na contramão do que preconizou todos esses diplomas legais: robustecer a posição do compromissário comprador, conferindo-lhe, desde que registrado o contrato, direito real oponível a terceiro[7]. O atual Código Civil também encampou esse direito real (artigos 1.417 e 1.418) [8].
Entretanto, hodiernamente nota-se indiscriminado desvirtuamento do instituto. Deliberadamente celebra-se compromisso de compra e venda sem a intenção de registrá-lo ou outorgar subsequente escritura pública. Essa prática, premida pelo desejo de economizar emolumentos cartorários (escritura pública, registro de imóveis) e imposto sobre a transmissão de bens imóveis - ITBI, acarreta grave insegurança jurídica e faz pulular lides envolvendo compromissários compradores e credores que muitas vezes têm o imóvel transacionado como única garantia disponível no patrimônio do devedor alienante (art. 591, CPC).


4. Do alcance da Súmula 84 do Colendo Superior Tribunal de Justiça
Desde já cumpre demonstrar que o presente estudo em nada conflita com o entendimento contido na Súmula 84 do STJ, cuja correção e justeza devem ser prestigiadas.
O Colendo Superior Tribunal de Justiça reconheceu que o compromissário comprador possui legitimidade ad causam para defender a sua posse sobre imóvel penhorado em execução movida contra o promitente vendedor. Sua legitimidade subsiste mesmo que inexistente registro público do contrato. Nesse sentido a mencionada súmula: “É admissível a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse advinda de compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que desprovido do registro”.
Incensurável esse entendimento, tanto que a Advocacia-Geral da União aprovou a Súmula n.º 52, de 3 de setembro de 2010 (Publicada no DOU Seção I, de 09/09/2010): "É cabível a utilização de embargos de terceiros fundados na posse decorrente do compromisso de compra e venda, mesmo que desprovido de registros."
Com efeito, embora a transferência do direito de propriedade apenas se aperfeiçoe mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis (artigo 1.245, Código Civil), negociações imobiliárias multiplicaram-se a partir de simples contratos particulares, muitas vezes de forma bastante singela, mediante emissão de recibos, sinal de arras ou “termo de transferência de posse”.
Tamanho pragmatismo nem sempre evidencia má-fé do alienante ou conluio com o adquirente para lesar terceiro. Muitas vezes a desinformação e o alto custo dos emolumentos cartorários concorrem para que as negociações ocorram nesses moldes.
Assim, atento à realidade brasileira andou bem o Superior Tribunal de Justiça ao reconhecer, com esteio no 1.046, § 1.º, do Código de Processo Civil, legitimidade ad causam ao compromissário comprador, titular de direito obrigacional em face do promitente vendedor.
Esse posicionamento jurisprudencial teve o mérito de divergir da Súmula 621 do Supremo Tribunal Federal, que, muito rigoroso com a realidade nacional, impedia a defesa judicial da posse quando inexistente o registro imobiliário do contrato: “Não enseja embargos de terceiro à penhora a promessa de compra e venda não inscrita no registro de imóveis”.
Com efeito, preocupado com a segurança jurídica, o Supremo Tribunal Federal prestigiava o sistema legal que governa a propriedade imobiliária, segundo o qual é dono aquele que figura como tal no fólio real. Assim, ausente o direito real oponível a terceiro, decorrente do registro do contrato (art. 5.º, Decreto-lei 58/37), subsistiria mero vínculo obrigacional entre os contraentes. Consumada a perda do imóvel em favor do credor penhorante, ao compromissário comprador restaria reclamar perdas e danos junto ao devedor alienante.
Felizmente o Colendo Superior Tribunal de Justiça inaugurou novo entendimento mais consentâneo com a realidade nacional e na esteira do que sinalizava prestigiosa corrente jurisprudencial nos Tribunais inferiores, zelosa em não tolher o direito de ação apenas por que não inscrito o contrato no Registro de Imóveis.
Delineado esse panorama confirma-se a assertiva inicial no sentido de que a Súmula 84 do STJ assegura ao compromissário comprador apenas o direito de ação aos embargos de terceiro, não sendo defeso, contudo, discutir se a data da compra e venda é seguramente comprovada a partir de instrumento particular não registrado e sem qualquer nota de publicidade (reconhecimento de firma, p. ex.). É o que se pretende abordar nesse ensaio.
Em suma, a Súmula 84 é nitidamente processual. Estende ao compromissário comprador a ação de embargos de terceiro; não garante, de per se, a proteção possessória deduzida naquela ação. Este direito será concedido apenas se provado que a compra e venda é pré-existente à ação movida pelo credor e capaz de reduzir o devedor alienante à insolvência (art. 593, II, CPC).
A fim de corroborar essa posição colaciona-se precedente daquela súmula resumido no seguinte trecho do voto vencedor proferido pelo eminente Ministro Bueno de Souza da 4.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial n.º 188/PR (processo 89.0008421-6), julgado em 08/08/89 e publicado no DOU de 31/10/89:
“Penso, por conseguinte, que não se aconselha a peremptória recusa liminar da ação de embargos de terceiro, fundada em compromisso de compra e venda destituído, embora, de registro imobiliário, como recomenda a Súmula 621: ao cerceamento do direito de ação, somar-se-ia, no caso, o drástico enfraquecimento da própria posse, que, em casos tais, transcende a mera realidade de fato para invocar a qualificação de posse legítima, as interdicta (fundada em contrato), oponível ao esbulho perpetrado por sujeitos da ordem privada e, portanto, a fortiori, ao esbulho judicial que porventura seja praticado através da penhora ou de outro ato de apreensão.
O que se recomenda, assim, é, data vênia, que os embargos de terceiro, em casos tais, não sejam só por isso liminarmente recusados, mas devidamente processados, decididos como de direito, às instâncias locais incumbindo conhecer e apreciar as alegações e provas deduzidas em juízo”.
Portanto, consoante recomendação final da decisão supra, cabe à instância ordinária sopesar as provas quanto à data do negócio de compra e venda, aquilatando-as e cotejando-as com a ação executiva manejada pelo credor que disputa o mesmo bem.
Assim, conclui-se que o presente estudo, mais situado no terreno probatório, harmoniza-se inteiramente com a Súmula 84 do STJ. Ao compromissário comprador, tenha registrado o contrato ou não, confere-se o direito de ação - autônomo e abstrato[9] - de provocar a atividade jurisdicional, direito este que independe da efetiva existência do direito material invocado (a proteção possessória do imóvel). Cumpre-lhe, pois, na ação de embargos de terceiro, à luz de provas e contraprovas, disputar com o credor penhorante a primazia sobre o bem.


5. Crítica à negociação imobiliária em absoluta clandestinidade. denotação de má-fé
Embora a ausência de registro do contrato no Registro de Imóveis não denote por si só má-fé dos contraentes, tanto que ao compromissário comprador não se nega o direito aos embargos de terceiro (Súmula 84 do STJ), por certo que nos dias de hoje um negócio jurídico sério não pode permanecer em total clandestinidade.
Com efeito, beira a temeridade negociar um imóvel mediante contrato particular sem o menor resquício de publicidade. De fato, se levado em conta que o direito real de propriedade apenas é transmitido com o registro do título translativo no Registro de Imóveis (art. 1.245, Código Civil), nada justifica uma negociação imobiliária sem qualquer traço de publicidade, a exemplo do reconhecimento de firma das partes. Por que se admitir tamanha clandestinidade se a aquisição da propriedade requer máxima publicidade?
Necessário, pois, à luz do sistema processual vigente, endereçar sensata crítica ao fetichismo que por vezes pretendem emprestar ao contrato particular de compra e venda sem registro, concebendo-o suficiente, por si só, para preterir legítima pretensão creditória sobre o mesmo imóvel.
Assim, transparece pouca credibilidade um contrato de compra e venda de imóvel que, além de não registrado, não ostenta sequer o reconhecimento de firma das partes. Decisivamente um negócio sério, cujos efeitos deverão ser sentidos apenas entre as partes envolvidas[10], não se compraz com tamanha falta de zelo.
Embora a boa-fé do compromissário comprador também mereça tutela do Direito, tal proteção não pode ser levada às últimas consequências a ponto de se proteger pretensa posse estribada em singelíssimo contrato particular isolado, sem outra evidência de que a imissão na posse, pelo adquirente, de fato ocorreu na data aposta no instrumento particular (compensação de cheque, à época do contrato, dado em pagamento pelo imóvel; contas de luz e carnês de IPTU expedidos em nome do adquirente e anteriores à execução judicial movida contra o devedor alienante; ata de assembleia de condomínio com participação do adquirente antes daquela execução etc.).
Nesse contexto importa não descurar que o Direito, igualmente, não tutela a torpeza. Enfim, não se pode considerar de boa-fé quem deliberadamente opta por um negócio realizado em absoluta clandestinidade.
Outrossim, importante não olvidar que todos podem se prevenir contra a celebração de negócios lesivos a terceiros. A saber, vivemos numa sociedade ágil e receptiva a novos meios de comunicação. Nota-se evidente maximização da informação, o que contribui para que distâncias sejam encurtadas e tempos abreviados[11]. Esse progresso tecnológico inaugurou novo paradigma sociocultural, próprio de uma sociedade mais bem informada e consciente.
Por corolário descabe render exagerado prestígio à pretensa boa-fé de adquirentes de imóveis quando o negócio sucedeu-se mediante contratos clandestinos (de gaveta), circunstância que além de denotar temeridade, explicita o propósito de se fraudar a execução do credor.
Portanto, concessa venia, merece reservas o posicionamento jurisprudencial que indiscriminadamente prestigia compromisso particular de compra e venda de imóvel despido de mínima publicidade, ignorando as regras processuais de valoração da prova documental que enfim passa-se a analisar.

BATTAUS, José Eduardo. A força probante do compromisso de compra e venda de imóvel sem registro. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3746, 3 out. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/25458>. Acesso em: 4 out. 2013.

Nenhum comentário:

Postar um comentário