Do compromisso de compra e venda
de imóvel
Sem a pretensão de esgotar o tema, cumpre ao menos
gizar os seus contornos básicos.
Sílvio de Salvo Venosa[2] leciona que:
“Pelo compromisso de compra e venda de imóvel (...)
os poderes inerentes ao domínio, ius utendi, fruendi et abutendi, são
transferidos ao compromissário comprador. O promitente vendedor conserva
tão-somente a nua-propriedade, até que todo o preço seja pago. Nessa situação,
o ius abutendi, direito de dispor, não é transferido de todo, mas esmaece para
o vendedor à medida que o preço é pago. Embora a função de garantia nesse
contrato não seja sua característica principal, é elemento marcante do
instituto”.
Diversas razões concorreram para a larga utilização
do compromisso de compra e venda no Brasil. Uma delas está implícita na
doutrina acima. A saber, tratando-se de bens imóveis, geralmente de elevada
monta, convém que suas transações se façam mediante parcelamento do preço.
Nesse contexto o compromisso de compra e venda assume relevante papel ao
propiciar que o promitente vendedor adie a transferência do direito real de
propriedade até o pagamento integral do preço[3].
Assim, enquanto não adimplido todo o preço o
compromissário comprador conserva mero vínculo obrigacional em face do
promitente vendedor, cujo direito é proporcional ao montante amortizado.
Posteriormente, abusos perpetrados pelo promitente
vendedor, lesivos ao interesse do comprador, revelaram a necessidade de se
introduzir um direito real (inferior ao de propriedade) oponível erga omnes
desde que registrado o contrato.
A saber, no início do século passado o compromisso
de compra e venda favoreceu a especulação imobiliária. Para não perderem
expressiva valorização experimentada pelo bem[4], promitentes vendedores
valiam-se do direito de arrependimento previsto no artigo 1.088 do Código Civil
anterior[5]. Dessa forma muitos compromissos de compra e venda foram
desfeitos em prejuízo de pessoas humildes que se viam despojadas de seu único
imóvel e sem receberem justa indenização.
Para combater essa prática adveio o Decreto-lei
58/37 (aplicável inicialmente apenas a terrenos loteados), que ao atribuir ao
compromissário comprador direito real oponível a terceiro (se registrado o
contrato[6]), subtraiu do promitente vendedor o direito de
arrependimento. O artigo 15 do mesmo diploma confere ao comprador, pago todo o
preço, direito de exigir a outorga da escritura.
Posteriormente o regime do Decreto 58/37 foi
estendido a terrenos não loteados por força da Lei 649/49, sendo ambos
derrogados pela Lei 6.766/79 que passou a regular os compromissos de compra e
venda de imóveis urbanos.
Superado esse brevíssimo delineamento do contrato
de compromisso de compra e venda, cuida enfatizar que os contratos particulares
sem registro situam-se na contramão do que preconizou todos esses diplomas
legais: robustecer a posição do compromissário comprador, conferindo-lhe, desde
que registrado o contrato, direito real oponível a terceiro[7]. O
atual Código Civil também encampou esse direito real (artigos 1.417 e 1.418) [8].
Entretanto, hodiernamente nota-se indiscriminado
desvirtuamento do instituto. Deliberadamente celebra-se compromisso de compra e
venda sem a intenção de registrá-lo ou outorgar subsequente escritura pública.
Essa prática, premida pelo desejo de economizar emolumentos cartorários
(escritura pública, registro de imóveis) e imposto sobre a transmissão de bens
imóveis - ITBI, acarreta grave insegurança jurídica e faz pulular lides
envolvendo compromissários compradores e credores que muitas vezes têm o imóvel
transacionado como única garantia disponível no patrimônio do devedor alienante
(art. 591, CPC).
4. Do alcance da Súmula 84 do Colendo
Superior Tribunal de Justiça
Desde já cumpre demonstrar que o presente estudo em
nada conflita com o entendimento contido na Súmula 84 do STJ, cuja correção e
justeza devem ser prestigiadas.
O Colendo Superior Tribunal de Justiça reconheceu
que o compromissário comprador possui legitimidade ad causam para defender a
sua posse sobre imóvel penhorado em execução movida contra o promitente
vendedor. Sua legitimidade subsiste mesmo que inexistente registro público do
contrato. Nesse sentido a mencionada súmula: “É admissível a oposição de
embargos de terceiro fundados em alegação de posse advinda de compromisso de
compra e venda de imóvel, ainda que desprovido do registro”.
Incensurável esse entendimento, tanto que a
Advocacia-Geral da União aprovou a Súmula n.º 52, de 3 de setembro de 2010
(Publicada no DOU Seção I, de 09/09/2010): "É cabível a utilização de
embargos de terceiros fundados na posse decorrente do compromisso de compra e
venda, mesmo que desprovido de registros."
Com efeito, embora a transferência do direito de
propriedade apenas se aperfeiçoe mediante o registro do título translativo no
Registro de Imóveis (artigo 1.245, Código Civil), negociações imobiliárias
multiplicaram-se a partir de simples contratos particulares, muitas vezes de
forma bastante singela, mediante emissão de recibos, sinal de arras ou “termo
de transferência de posse”.
Tamanho pragmatismo nem sempre evidencia má-fé do
alienante ou conluio com o adquirente para lesar terceiro. Muitas vezes a
desinformação e o alto custo dos emolumentos cartorários concorrem para que as
negociações ocorram nesses moldes.
Assim, atento à realidade brasileira andou bem o
Superior Tribunal de Justiça ao reconhecer, com esteio no 1.046, § 1.º, do
Código de Processo Civil, legitimidade ad causam ao compromissário comprador,
titular de direito obrigacional em face do promitente vendedor.
Esse posicionamento jurisprudencial teve o mérito
de divergir da Súmula 621 do Supremo Tribunal Federal, que, muito rigoroso com
a realidade nacional, impedia a defesa judicial da posse quando inexistente o
registro imobiliário do contrato: “Não enseja embargos de terceiro à penhora a
promessa de compra e venda não inscrita no registro de imóveis”.
Com efeito, preocupado com a segurança jurídica, o
Supremo Tribunal Federal prestigiava o sistema legal que governa a propriedade
imobiliária, segundo o qual é dono aquele que figura como tal no fólio real.
Assim, ausente o direito real oponível a terceiro, decorrente do registro do
contrato (art. 5.º, Decreto-lei 58/37), subsistiria mero vínculo obrigacional
entre os contraentes. Consumada a perda do imóvel em favor do credor
penhorante, ao compromissário comprador restaria reclamar perdas e danos junto
ao devedor alienante.
Felizmente o Colendo Superior Tribunal de Justiça
inaugurou novo entendimento mais consentâneo com a realidade nacional e na
esteira do que sinalizava prestigiosa corrente jurisprudencial nos Tribunais
inferiores, zelosa em não tolher o direito de ação apenas por que não inscrito
o contrato no Registro de Imóveis.
Delineado esse panorama confirma-se a assertiva
inicial no sentido de que a Súmula 84 do STJ assegura ao compromissário
comprador apenas o direito de ação aos embargos de terceiro, não sendo defeso,
contudo, discutir se a data da compra e venda é seguramente comprovada a partir
de instrumento particular não registrado e sem qualquer nota de publicidade
(reconhecimento de firma, p. ex.). É o que se pretende abordar nesse ensaio.
Em suma, a Súmula 84 é nitidamente processual.
Estende ao compromissário comprador a ação de embargos de terceiro; não garante,
de per se, a proteção possessória deduzida naquela ação. Este direito será
concedido apenas se provado que a compra e venda é pré-existente à ação movida
pelo credor e capaz de reduzir o devedor alienante à insolvência (art. 593, II,
CPC).
A fim de corroborar essa posição colaciona-se
precedente daquela súmula resumido no seguinte trecho do voto vencedor
proferido pelo eminente Ministro Bueno de Souza da 4.ª Turma do Superior
Tribunal de Justiça no Recurso Especial n.º 188/PR (processo 89.0008421-6), julgado
em 08/08/89 e publicado no DOU de 31/10/89:
“Penso, por conseguinte, que não se aconselha a
peremptória recusa liminar da ação de embargos de terceiro, fundada em
compromisso de compra e venda destituído, embora, de registro imobiliário, como
recomenda a Súmula 621: ao cerceamento do direito de ação, somar-se-ia, no
caso, o drástico enfraquecimento da própria posse, que, em casos tais,
transcende a mera realidade de fato para invocar a qualificação de posse
legítima, as interdicta (fundada em contrato), oponível ao
esbulho perpetrado por sujeitos da ordem privada e, portanto, a fortiori,
ao esbulho judicial que porventura seja praticado através da penhora ou de
outro ato de apreensão.
O que se recomenda, assim, é, data vênia,
que os embargos de terceiro, em casos tais, não sejam só por isso liminarmente
recusados, mas devidamente processados, decididos como de direito, às
instâncias locais incumbindo conhecer e apreciar as alegações e provas
deduzidas em juízo”.
Portanto, consoante recomendação final da decisão
supra, cabe à instância ordinária sopesar as provas quanto à data do negócio de
compra e venda, aquilatando-as e cotejando-as com a ação executiva manejada
pelo credor que disputa o mesmo bem.
Assim, conclui-se que o presente estudo, mais
situado no terreno probatório, harmoniza-se inteiramente com a Súmula 84 do
STJ. Ao compromissário comprador, tenha registrado o contrato ou não,
confere-se o direito de ação - autônomo e abstrato[9] - de provocar
a atividade jurisdicional, direito este que independe da efetiva existência do
direito material invocado (a proteção possessória do imóvel). Cumpre-lhe, pois,
na ação de embargos de terceiro, à luz de provas e contraprovas, disputar com o
credor penhorante a primazia sobre o bem.
5. Crítica à negociação
imobiliária em absoluta clandestinidade. denotação de má-fé
Embora a ausência de registro do contrato no
Registro de Imóveis não denote por si só má-fé dos contraentes, tanto que ao
compromissário comprador não se nega o direito aos embargos de terceiro (Súmula
84 do STJ), por certo que nos dias de hoje um negócio jurídico sério não pode
permanecer em total clandestinidade.
Com efeito, beira a temeridade negociar um imóvel
mediante contrato particular sem o menor resquício de publicidade. De fato, se
levado em conta que o direito real de propriedade apenas é transmitido com o
registro do título translativo no Registro de Imóveis (art. 1.245, Código
Civil), nada justifica uma negociação imobiliária sem qualquer traço de
publicidade, a exemplo do reconhecimento de firma das partes. Por que se
admitir tamanha clandestinidade se a aquisição da propriedade requer máxima
publicidade?
Necessário, pois, à luz do sistema processual
vigente, endereçar sensata crítica ao fetichismo que por vezes pretendem
emprestar ao contrato particular de compra e venda sem registro, concebendo-o
suficiente, por si só, para preterir legítima pretensão creditória sobre o
mesmo imóvel.
Assim, transparece pouca credibilidade um contrato
de compra e venda de imóvel que, além de não registrado, não ostenta sequer o
reconhecimento de firma das partes. Decisivamente um negócio sério, cujos
efeitos deverão ser sentidos apenas entre as partes envolvidas[10],
não se compraz com tamanha falta de zelo.
Embora a boa-fé do compromissário comprador também
mereça tutela do Direito, tal proteção não pode ser levada às últimas
consequências a ponto de se proteger pretensa posse estribada em singelíssimo
contrato particular isolado, sem outra evidência de que a imissão na posse,
pelo adquirente, de fato ocorreu na data aposta no instrumento particular
(compensação de cheque, à época do contrato, dado em pagamento pelo imóvel;
contas de luz e carnês de IPTU expedidos em nome do adquirente e anteriores à
execução judicial movida contra o devedor alienante; ata de assembleia de
condomínio com participação do adquirente antes daquela execução etc.).
Nesse contexto importa não descurar que o Direito,
igualmente, não tutela a torpeza. Enfim, não se pode considerar de boa-fé quem
deliberadamente opta por um negócio realizado em absoluta clandestinidade.
Outrossim, importante não olvidar que todos podem
se prevenir contra a celebração de negócios lesivos a terceiros. A saber,
vivemos numa sociedade ágil e receptiva a novos meios de comunicação. Nota-se
evidente maximização da informação, o que contribui para que distâncias sejam
encurtadas e tempos abreviados[11]. Esse progresso tecnológico
inaugurou novo paradigma sociocultural, próprio de uma sociedade mais bem
informada e consciente.
Por corolário descabe render exagerado prestígio à
pretensa boa-fé de adquirentes de imóveis quando o negócio sucedeu-se mediante
contratos clandestinos (de gaveta), circunstância que além de denotar
temeridade, explicita o propósito de se fraudar a execução do credor.
Portanto, concessa venia, merece reservas o
posicionamento jurisprudencial que indiscriminadamente prestigia compromisso
particular de compra e venda de imóvel despido de mínima publicidade, ignorando
as regras processuais de valoração da prova documental que enfim passa-se a
analisar.
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