Em sua última participação nesta coluna,
Carlos Bastide Horbach pergunta: “é preciso mais deliberação no Supremo
Tribunal Federal?” A seguir, dentre outras considerações, destaca a
importância de membros do Supremo Tribunal Federal experimentados na
seara política. A propósito, vale aprofundar algumas reflexões sobre o
ponto, mormente para projetar emprego consistente de um dos mais
elementares métodos de interpretação constitucional, o histórico.
Há
alguns anos, em palestra na Faculdade de Direito do Largo de São
Francisco, José Manuel Cardoso da Costa, professor da Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra, que presidiu durante quase quinze
anos o Tribunal Constitucional português, destacava a importância de
compor uma Corte Constitucional com pessoas de “diferentes
sensibilidades”.
Com efeito, órgão da espécie, no melhor sentido
da expressão, é um órgão político, uma vez que protege um documento
eminentemente político, a Constituição. Não pode ser um órgão
partidário, mas é natural que seja político. Para tanto, é essencial que
tenha em seus quadros pessoas de diferentes sensibilidades, ou seja,
egressos da magistratura de carreira, do Ministério Público, da
advocacia (pública e privada), da academia e da própria “seara
política”, representativos de variadas maneiras de compreender o mundo,
aí incluídos positivistas, jus-naturalistas, etc.
Historicamente, a
composição do Supremo Tribunal Federal é bastante plural, como
decorrência direta do mecanismo de escolha, que demanda concurso de
vontades entre a Presidência da República e o Senado Federal (indicação
presidencial submetida à aprovação da maioria absoluta dos senadores,
aprovação essa que é antecedida de sabatina do indicado). Claro, essa
avaliação positiva, talvez otimista, não é impeditiva de eventuais
ajustes, quiçá aperfeiçoamentos, como a adoção de mandatos para os
membros da corte (mas isso escapa ao objeto desta exposição).
Nessa
pluralidade há espaço para parlamentares experimentados que se tornam
membros do Supremo Tribunal Federal, a maioria vocacionada a alcançar
grande reconhecimento. A propósito, vale mencionar o ministro Epitácio
Pessoa (que ocupou cargos de destaque em todos os poderes constituídos,
inclusive o de presidente da República), os ministros Adauto Lúcio
Cardoso, Bilac Pinto, Aliomar Baleeiro e Prado Kelly (membros
proeminentes da chamada “banda de música” da UDN, parlamentares de
reconhecida qualidade e exímios oradores) e, em tempos mais recentes, os
ministros Paulo Brossard, Maurício Corrêa e Nelson Jobim.
É de
importância estratégica a ocorrência, em cada composição do Supremo
Tribunal Federal, de ao menos um egresso da seara política, sobretudo da
parlamentar. Isso porque são habilitados a trazer aporte de
sensibilidade política acerca das questões constitucionais, bem como
realizar, por meio de testemunho direto, interpretações constitucionais
históricas, em especial no que se refere aos trabalhos parlamentares.
Claro,
membros com outras origens, inclusive magistrados de carreira, também
podem realizar — e o fazem — a contento interpretações constitucionais
históricas, inclusive relativamente aos trabalhos parlamentares. No
recente caso da Ação Pena 470/MG, relator o Ministro Joaquim Barbosa,
julgada em 17 de dezembro de 2012, os ministros Gilmar Mendes e Ricardo
Lewandowski, não obstante tenham chegado a conclusões diferentes,
recorreram, com grande destreza, aos trabalhos constituintes para exata
compreensão dos dispositivos constitucionais implicados. O mesmo se diga
do ministro Celso de Mello, cujo voto de relator na Ação Direta de
Inconstitucionalidade 2.010/DF, julgada em 30 de setembro de 1999,
recorreu, com precisão cirúrgica, aos trabalhos parlamentares para
concluir que a rejeição a determinado dispositivo — quando da apreciação
de proposta de emenda constitucional — implicou vedação (a partir de 15
de dezembro de 1998, data de promulgação da Emenda Constitucional 20) à
possibilidade de cobrança de tributo (contribuição de inativos) até
então praticado por estados brasileiros.
Por outro lado, não há
como desconhecer a importância de um testemunho direto na matéria. Por
exemplo, diversos são os votos do ministro Aliomar Baleeiro com rigorosa
atenção ao contexto político em que a norma foi concebida. Praticava,
com clareza e autoridade, interpretações que não desconheciam a mens
legislatoris: “Não é demais recordar, neste assunto, a reserva dos
hermeneutas aos trabalhos legislativos. Não sou dos que participam
dessas restrições, pois, não raro, a ratio iuris brota
vigorosamente da ‘exposição de motivos’ da ‘justificação’ do projeto,
sobretudo quando provêm do líder representativo de considerável grupo
parlamentar.” (voto do ministro Aliomar Baleeiro no RE 58.356/GB,
relator o ministro Hermes Lima, julgado em 28 de setembro de 1966).
Nesse
sentido, relativizava o valor da letra da lei, não para decidir de modo
contrário à lei, mas, sim, para decidir em harmonia com a vontade
parlamentar: “Tenho que a letra vale menos do que o espírito, a ratio juris,
enfim a política legislativa.” (voto do ministro Aliomar Baleeiro no RE
68.015/GB, relator o ministro Luiz Gallotti, julgado em 5 de novembro
de 1969).
Claro, o sentido da letra da lei, a mens legis, é limite para a mens legislatoris.
Aquela primeira, uma vez ultimado o processo legislativo, ganha
autonomia e primazia relativamente a essa segunda, tanto que o próprio
ministro Aliomar Baleeiro afirmava: “Não me cabe, sr. presidente,
psicanalisar os eminentes representantes da Nação.” (Recurso
Extraordinário n. 62.731/GB, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro,
julgado em 23 de agosto de 1967). No entanto, claro, isso não exclui
tomar em consideração – máxime quando bem documentado – o trabalho
parlamentar como elemento importante de uma interpretação histórica a
ser feita com máxima solidez e segurança.
Em tempo mais recente, e
para citar exemplo da maior importância, vale mencionar o testemunho
dado pelo ministro Nelson Jobim na Ação Direta de Inconstitucionalidade
1.600/UF, relator o ministro Sydney Sanches, julgada em 26 de novembro
de 2001, acerca de trabalhos parlamentares — inclusive no que se refere a
“inconsistências” do seu resultado — para avaliar a constitucionalidade
ou não da exigência do ICMS na prestação de serviço de transporte aéreo
de passageiros. Foi justamente o seu voto que prevaleceu.
O dever
de fidelidade partidária, firmado pelo Supremo Tribunal Federal, também
revela o papel estratégico de uma interpretação histórica abrangente
dos trabalhos parlamentares pertinentes, com testemunho direto dado por
um dos protagonistas da própria história, primeiro como parlamentar,
depois como ministro do STF e, por fim, como advogado de causa
subsequente, em que veio a prevalecer a sua compreensão das coisas. Com
efeito, o dever de fidelidade partidária foi excluído no Mandado de
Segurança 20.927-5/DF, relator o ministro Moreira Alves, julgado em 11
de outubro de 1989. Nele ficou vencido o ministro Paulo Brossard.
Transcorridos quase vinte anos de intenso transfuguismo partidário, o
Supremo — logo após eloquente sustentação oral do agora ministro
aposentado Paulo Brossard — estabeleceu, nos autos dos Mandados de
Segurança 26.602/DF, relator o ministro Eros Grau, 26.603/DF, relator o
ministro Celso de Mello, e 26.604/DF, relatora a ministra Cármen Lúcia,
todos julgados em 4 de outubro de 2007, o dever de fidelidade
partidária.
Enfim, a análise de jurisprudência constitucional
revela a importância da interpretação histórica, bem como a
essencialidade de tomar em consideração os trabalhos parlamentares
levados a efeito quando da interpretação da norma constitucional (ou
legal) em questão. Para isso, contribui de modo decisivo o testemunho
direto que possa ser dado por julgador que eventualmente tenha
vivenciado de modo direto os fatos da política plasmados na
Constituição.
José Levi Mello do Amaral Júnior é professor de Direito Constitucional e doutor em Direito do Estado pela USP, e procurador da Fazenda Nacional.
Revista Consultor Jurídico, 1º de dezembro de 2013
http://www.conjur.com.br/2013-dez-01/analise-constitucional-testemunho-juiz-criacao-norma-decisivo
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