Em primeiro lugar desejamos a todos um feliz 2015,
salientando o privilégio de discutirmos questões notariais e registrais
nesse rotativo tão prestigiado.
Abordaremos hoje o pacto antenupcial, instituto ímpar
do ordenamento jurídico, não só diante da multiplicidade em questões
suscitadas, mas também pela complexidade de sua natureza e estrutura
dentro da sistemática atual.
Apesar da figura do pacto antenupcial integrar o
ordenamento brasileiro desde o domínio português, no âmbito das
Ordenações, mantém-se a sua atualidade tanto nas discussões teóricas,
quanto nas práticas. É importante a discussão acerca de sua natureza
jurídica, dos limites à autonomia privada em sua celebração, além de
questões formais decorrentes do processo de habilitação.
A importância de se determinar a natureza jurídica do
pacto é, mais que meramente uma questão teórica, operacional, pois é
por meio dela que se determinará até que ponto os conceitos próprios da
Parte Geral do Código Civil – relativos à validade e capacidade, por
exemplo – podem ser a ele aplicados. Urge também delinear com maior
clareza os limites ao objeto do pacto, tendo em vista a autonomia
privada estar limitada pela função social e pelo próprio dirigismo
contratual. Nesse aspecto, entra em relevo a questão relativa à
possibilidade de regramentos não patrimoniais serem objeto de pacto
antenupcial, o que torna ainda mais complexa a sua limitação. Seria
possível, por exemplo, uma cláusula de "relacionamento aberto" no pacto,
mitigando o dever de fidelidade conjugal? Ou, ainda, estabelecer uma
cláusula penal confirmatória da obrigação de fidelidade, punindo
monetariamente uma eventual traição? Qual o limite da liberdade dos
nubentes no estabelecimento das "regras do jogo" relativas ao próprio
casamento? Numa sociedade complexa como a nossa, cada vez mais o
destinatário da norma quer fazer valer "seus direitos" e exige do
tabelião uma verdadeira ginástica para moldar um regramento deficitário à
situação pessoal extremamente complexa.
O pacto antenupcial surgiu com a finalidade precípua
de facultar aos nubentes a escolha do regime nupcial de bens, isto é, a
norma do patrimônio dos nubentes que irá valer no casamento1. Assim, apesar da lei brasileira prever um regime supletivo2,
que incide na ausência de convenção diversa, aos nubentes é via de
regra facultado pactuar eles próprios o regime de bens que em seu
matrimônio incidirá. Vigora, portanto, no ordenamento, o princípio da
liberdade dos pactos antenupciais3.
Na prática, os contraentes adotam regime subsidiário
da comunhão parcial de bens, não realizam pacto e habilitam casamento da
maneira mais singela possível, desconhecendo a riqueza de situações que
poderiam previamente acordar no pacto. O registrador civil que tem
obrigação de informar o regime de bens acaba tendo dificuldade até
diante da questão econômica de orientar as partes na confecção do pacto.
No Direito luso-brasileiro sempre foi usual a
liberdade de convenção antenupcial. A gênese do costume é histórica,
dado o sincretismo jurídico cultural presente no regime português, que
refletia além do velho direito português fundado em seus costumes
locais, o romanismo, o germanismo, bem como infiltrações feudais e
canônicas, sem prejuízo do regime de comunhão universal também presente
nas ordenações como o regime "segundo o costume do reino"4.
De fato, o pacto antenupcial encontra precedentes já
nas Ordenações Afonsinas, promulgadas em 1446 em Portugal. Nestas,
porém, o regime de bens entre os conjugues era tratado de forma
superficial e sem menção expressa ao pacto antenupcial. Em 1521, nas
Ordenações Manuelinas, foi prevista a possibilidade de pactuação do
regime de bens pelos nubentes, ao dispor que "todos os casamentos que
forem feitos em Nossos Reynos, e Senhorios, se entendem ser feitos por
carta de metade, salvo quando antre as partes outra cousa for acordado e
contractado, porque entonce se guardará o que antre eles for
concertado", apesar de não prever a forma e o objeto do pacto5.
Às Ordenações Manuelinas sucederam-se as Filipinas,
que por sua vez trouxeram previsão semelhante quanto à possibilidade de
escolha do regime de bens pelos nubentes através do pacto antenupcial.
Nas Ordenações Filipinas vigia a liberdade de estipulação das convenções
antenupciais quanto à administração dos bens dos conjugues6.
Havia, não obstante, restrições a cláusulas ilícitas, ou seja, que
ofendessem a lei, os bons costumes ou os fins naturais e sociais do
casamento. Tais cláusulas, assim como as delas dependentes, seriam
eivadas de nulidade, o que, porém, não acarretava a anulação do restante
do pacto7.
No esboço de Código Civil publicado em 1861, Teixeira
de Freitas tratou com acuidade da figura do pacto, abordando questões
materiais, como o objeto do pacto, e questões formais concernentes a
capacidade, nulidades, forma, etc. Restou portanto evidenciar a
importância da figura do pacto antenupcial, como é possível se verificar
com a leitura do art. 88: "os esposos podem excluir a comunhão de bens,
no todo ou em parte, e estipular quaisquer pactos e condições,
devendo-se guardar o que entre eles for contratado"8.
Três décadas mais tarde, foi previsto no decreto 181
de 24 de janeiro de 1890 (regulamentação do casamento civil), que a
eficácia do pacto se condicionava à celebração do casamento. Apesar de
manter a liberdade de regulamentação do regime de bens pelos nubentes, o
decreto incluiu novas restrições, impondo, em determinados casos, o
regime dotal e o de separação dos bens9.
Nos projetos seguintes, Felício dos Santos e de
Antônio Coelho Rodrigues, trouxeram novidades, como a adoção de regimes
mistos, deixando, porém, de tratar do tema de forma tão abrangente
quanto o projeto de Teixeira Freitas. Por fim, o último dos projetos do
código de 1916 foi o de Clóvis Bevilaqua, sem mudanças materiais
significativas quanto à regulação do pacto, apesar de ter consolidado
questões formais, como a necessidade do registro público do pacto
nupcial, lavrado por meio de escritura notarial.
O art. 256 do Código de 1916, versava que "é lícito
aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus
bens, o que lhes aprouver", disposição esta reproduzida no Código
atual, no art. 1639.
Muitos autores classificam o instituto como contrato
sob condição suspensiva, logo, com eficácia condicionada à celebração do
casamento, evento futuro e incerto. Ora, não é possível confundir a
vontade de casar com a celebração do casamento em si, esta última não
pode ser considerada um condição convencionada pelas partes, pois é
antes um fato necessário imposto pela própria lei, independendo portanto
da vontade particular, uma verdadeira "conditio iuris"10.
Ademais, sequer é consensual a qualificação do pacto
antenupcial como contrato. É certo que a função primária do pacto
antenupcial é o estabelecimento do regime de bens, o que o torna um
negócio jurídico de intuito substancialmente patrimonial, o que o
aproxima dos contratos. Contudo, a própria natureza patrimonial do pacto
fica enfraquecida se consideramos a possibilidade de inclusão de
cláusulas não patrimoniais, como se verá mais adiante. É bom lembrar
aqui que a dignidade da pessoa humana (art. 13) no direito de família, implica em despatrimonialização e o que prestigia a aposição de cláusulas não patrimoniais.
Além disso, é possível apontar algumas
características que afastam o pacto antenupcial – assim como pactos em
geral – da categoria dos contratos. O contrato pode ser definido como um
negócio jurídico fundado num acordo de vontades, cujo fim é criar,
modificar ou extinguir direitos, ensejando assim a circulação de
riquezas. O "acordo", em sentido amplo, integra o contrato, mas, em seu
sentido técnico é estrito – como sinônimo de pacto – não se confunde com
ele. De fato, se no contrato há uma composição de interesses
contrapostos, no acordo há a fusão de interesses convergentes, paralelos
entre si. Para os romanos, ainda, a distinção fundava-se nos efeitos:
do pacto não decorreria a geração de direitos e obrigações mútuas para
as partes, como ocorreria nos contratos11. Assim, apenas os contratos originavam direito de ação. No caso do pacto, o direito de defesa restringir-se-ia à via da exceptio, ou seja, na oposição de um fato impeditivo à outra parte12.
Nesse diapasão, seria impreciso classificar o pacto
antenupcial como contrato, já que pactos e contratos constituem
categorias jurídicas distintas. Para Pontes de Miranda, nesse sentido, o
pacto antenupcial seria uma figura sui generis "que entre o
contrato de direito das obrigações, isto é, o contrato de sociedade e o
casamento mesmo, como irradiador de efeitos. Não se assimila, porém, a
qual quer deles: não é simplesmente de comunhão, de administração, ou do
que quer que se convencione; nem ato constitutivo de sociedade, nem
pré-casamento, ou, sequer parte do casamento"13.
Logo, o que temos, na verdade, é uma figura que pode
ser classificada como um negócio jurídico de direito de família. Segundo
D. Gozzo, o pacto nupcial pode assim ser classificado como negócio
jurídico sui generis do Direito de Família, tem seu locus
próprio no ordenamento jurídico. Possui as características próprias
desse tipo de negócio, a saber, o pessoalismo, o formalismo, o ser
nominado e o ser legítimo14. É um negócio pessoal uma vez que
só os nubentes podem dele fazer parte. Aqui é bom mencionar, é exceção
quanto à possibilidade de doação antenupcial feita por terceiro aos
contraentes, no pacto. É, ademais, formal, já que deve ser realizado
mediante escritura pública, e nominado, pois possui previsão legal.
Essa concepção, que afasta o pacto antenupcial da
categoria dos contratos, justifica certas peculiaridades do mesmo. Por
exemplo, embora o Código Civil permita nas aquisições de direitos a
figura da representação, o mesmo não ocorre nos pactos antenupciais.
Isso, pois, se trata de disciplina de direito de família, em que incide
bloqueio de legitimação e, que prescinde ainda, da análise dos efeitos
que resultam do próprio negócio jurídico15.
Em arremate a todo o arrazoado, o pacto antenupcial é
figura própria, sem qual quer identidade com os demais institutos no
sistema jurídico, ocupando locus próprio, intrinsecamente ligado ao
matrimônio. Nessa mesma linha de raciocínio, o pacto antenupcial tem
peculiaridades que refogem aos demais institutos do direito civil.
No próximo Registralhas, abordaremos as implicações
práticas dessa figura sui generis tão necessária para regular relações
econômica e não econômicas da sociedade conjugal nos casamentos do
século XXI. Até lá, alegria!
Bibliografia.
Betti, Emilio, Teoria generale delle obbligazioni, v. III, Milano, Giuffre, 1954.
Bevilaqua, Clóvis, Direito da Família, 5ª ed., Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1933, p. 185.
Bevilaqua, Clóvis, Direito da Família, 5ª ed., Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1933.
Cretella Jr., José, Curso de Direito Romano, Rio de Janeiro, Forense, 1998.
Gomes, Orlando, Direito de Família, 11ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1999.
Pontes de Miranda, Francisco C., Tratado de Direito Privado – Parte Especial, Dissolução da Sociedade Conjugal e Eficácia Jurídica do Casamento, t. VIII, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2012.
Tese (Mestrado) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1988.
__________
Por Vitor Frederico Kümpel
*O artigo foi escrito em coautoria com Giselle Viana, graduanda da Faculdade de Direito da USP e pesquisadora jurídica.
__________
1F. C.
Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado – Parte Especial,
Dissolução da Sociedade Conjugal e Eficácia Jurídica do Casamento, t.
VIII, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2012, p. 314.
2De
acordo com o art. 1.640 do Código Civil, no silêncio das partes, ou
diante da nulidade ou ineficácia do pacto, "vigorará, quanto aos bens
entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial".
3O. Gomes, Direito de Família, 11ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1999, p. 173.
4F. C. Pontes de Miranda, Tratado cit. (nota 1 supra), p. 306.
5D. Gozzo, Pacto Antenupcial, Tese (Mestrado) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1988, p. 6.
6Ordenações
Filipinas, 4, XLVI, pr 7: "Todos os casamentos feitos em nossos Reinos e
senhorios se entendem serem feitos por Carta de ametade; salvo quando
entra as partes outra cousa for acordada e contractada, porque então se
guardará o que entre elles foir contractado."
7C. Bevilaqua, Direito da Família, 5a ed., Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1933, p. 184.
8Apud D. Gozzo, Pacto cit (nota 5 supra), p. 9.
9O
art. 59 do aludido diploma, por exemplo, estabelecia a obrigatoriedade
do regime dotal nas hipóteses elencadas no artigo antecedente, que
abarcava, por exemplo, a hipótese da nubente menor de 14 anos ou maior
de 60 (art. 58, parágrafo 1º), ou dos conjuges parentes em 3º grau (art.
58, parágrafo 3º).
10D. Gozzo, Pacto cit. (nota 5 supra), p 47.
11J. Cretella Jr., Curso de Direito Romano, Rio de Janeiro, Forense, 1998, p. 247.
12E. Betti, Teoria generale delle obbligazioni, v. III, Milano, Giuffre, 1954, p. 7.
13F. C. Pontes de Miranda, Tratado cit. (nota 1 supra), p. 313.
14D. Gozzo, Pacto cit. (nota 5 supra), p 42.
15F. C. Pontes de Miranda, Tratado cit. (nota 1 supra), p. 310
http://www.migalhas.com.br/Registralhas/98,MI215003,91041-Consideracoes+acerca+do+pacto+antenupcial+I
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