Na busca por delinear os contornos do direito ao silêncio,
expressamente insculpido no art. 5º, LXIII, desenvolver-se-á texto
dissertativo contemplando a origem histórica, a dimensão e o alcance de
tal direito fundamental.
O artigo focará o direito processual penal e procederá a análises dos
dissídios jurisprudenciais e doutrinários concernentes a alguns dos
aspectos do princípio da não autoincriminação, do qual emana o direito a
silenciar-se.
Inovação da Constituição Federal de 1988 (art. 5º, LXIII), o direito ao silêncio constitui corolário do
,
a saber, o princípio da não autoincriminação, que assegura ao preso e
ao acusado em geral o rechaço a obrigatoriedades de produção de provas
contra si mesmo.
Anteriormente à disciplina constitucional vigente, a temática era
enfrentada no campo do devido processo legal e dos demais princípios
setoriais do processo penal inerentes à sistemática própria do rito
acusatório.
Sua positivação foi bastante influenciada pelo direito
norte-americano, especialmente a partir do caso Miranda v. Arizona, de
1966, no qual se consignou a tese de que nenhuma serventia pode ser
conferida às declarações feitas por uma pessoa à polícia sem que o
envolvido tenha sido informado acerca, simplesmente, de seu direito a
não responder. Ensina Gilmar Mendes:
Tal como anotado pelo Min. Pertence em
magnífico voto proferido no HC. 78.708, de que foi o relator (DJ de
16-4-1999), “o direito à informação da faculdade de manter-se silente
ganhou dignidade constitucional – a partir de sua mais eloquente
afirmação contemporânea em Miranda VS. Arizona (384 US 436, 1996),
transparente fonte histórica de sua consagração na Constituição
brasileira – porque instrumento insubstituível da eficácia real da
vetusta garantia contra a autoincriminação – nemo tenetur prodere se ipsum, quia nemo tenere detegere turpitudinem suam
–, que a persistência planetária dos abusos policiais não deixa de
perder atualidade”. Essas regras sobre a instrução quanto ao direito ao
silêncio – as chamadas Miranda rules – hão de se aplicar desde
quando o inquirido está em custódia ou de alguma outra forma se encontre
significativamente privado de sua liberdade de ação: “while in custody
at the station or otherwise deprived of his freedom of action in any
significant way” (BRANCO; MENDES, p. 638).
Ainda no plano internacional, impende destacar as
previsões do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (14, 3,
“g”), da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (8, §2º, “g), da
Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou
Degradantes, da ONU, e da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir
a Tortura, da OEA, avenças convergentes no sentido da consagração do
direito a calar-se em hipóteses passíveis de um autoprejuízo.
No direito pátrio infraconstitucional, avulta o disposto
no art. 186 do Código de Processo Penal, o qual dispõe acerca da
imposição de que o juiz informe o acusado, antes de iniciar o
interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder
perguntas que lhe forem formuladas, ao que se soma a previsão do
parágrafo único do mesmo dispositivo, vedando a utilização do silêncio
como confissão e como argumento em desfavor do réu.
A titularidade do direito é atribuída não somente ao
preso, como o texto constitucional brasileiro e alguns diplomas
referidos parecem sugerir, mas também ao solto e a qualquer indivíduo
posicionado como objeto de procedimento investigatório.
Da mesma forma, protegem-se as testemunhas e as vítimas
chamadas a depor nas fases inquisitiva e processual, porquanto é
incabível imaginar que possam ser forçadas a responder a perguntas que,
de alguma maneira, revelem-se idôneas a incriminá-las, entendimento
aplicável às searas das Comissões Parlamentares de Inquérito e dos
processos disciplinares, numa interpretação lógico-sistemática propensa a
prestigiar tal direito fundamental.
Que, para a efetivação do direito, exige-se a advertência, prévia e
formal, quanto à faculdade do silêncio, sob pena de vícios na prova
obtida a partir de uma involuntária autoincriminação, resulta evidente,
remanescendo dúvidas, todavia, no que tange à natureza dessa nulidade.
Embora não se despreze a cizânia jurisprudencial e
doutrinária nesse particular, os Tribunais Superiores têm assinalado que
a ausência da advertência quanto ao direito ao silêncio não gera,
automaticamente, nulidade, a qual precisa associar-se a prejuízo e falta
de voluntariedade para que se justifique a retirada da higidez do ato
processual (ver STF: AP 611/MG, Primeira Turma, Rel. Min. Luiz Fux,
30/09/2014, AP 530/MS, Primeira Turma, Rel. Min. Luis Roberto Barros,
09/09/2014; STJ: RHC 30528, Quinta Turma, Rel. Min. Gurgel de Faria,
4/11/2014; HC 189364, Sexta Turma, Rel. Min. Maria Thereza de Assis
Moura, 13/08/2013).
Trata-se, bem se vê, de nulidade relativa, e não
absoluta, sendo imprescindível a obediência aos ditames dos artigos 563 e
571 do Código de Processo Penal, qualificando-se como desarrazoada e
exageradamente formal decisão declaratória de nulidade de processo ou de
ato processual quando não constatado qualquer prejuízo à defesa,
mormente quando o réu encontra-se acompanhado de advogado ao longo de
todo o feito, como, costumeira e ordinariamente, acontece.
Diga-se, por oportuno, que o Supremo Tribunal Federal (HC
99.558, Rel. Min. Gilmar Mendes, 14/12/2010) já registrou
jurisprudência no sentido de que o dever de advertir sobre o privilégio é
somente de agentes públicos, e não de outras pessoas que não sejam
responsáveis primariamente por determinada investigação (CARVALHO, p.
458). Não haveria ilegitimidade, portanto, na aquisição de provas
oriundas de confissões espontâneas perante a imprensa.
Contudo, por óbvio, é relevante que se evite a concessão
de entrevistas por presos aos jornais e aos profissionais da psicologia
ou da psiquiatria, por exemplo, salvo se tenha havido previamente a
advertência quanto ao direito estudado. Do contrário, torna-se possível
pensar em confissão reputada inadmissível como prova, pois obtida fora
das proteções plasmadas na Carta da República.
Na mesma linha, subsiste intensa celeuma respeitante ao
alcance do direito ao silêncio ao imputado que falseia suas declarações
para ver-se livre de uma acusação, discutindo-se se o direito a não
produzir provas contra si mesmo, do qual o direito ao silêncio é
manifestação, resguarda o direito de mentir.
Em nosso sentir, em que pesem os louváveis entendimentos
em contrário, a conclusão de Guilherme Nucci qualifica-se como
irretocável, uma vez que o comportamento de dizer a verdade, em
absoluto, não pode ser exigível do acusado, sendo inconstitucional
qualquer sanção ou restrição eventualmente aplicada àquele que, para
defender-se de uma acusação, valendo-se de seu direito fundamental à
ampla defesa, escolha o ato da mentira. Diz ele:
Sustentamos ter o réu o direito
de mentir em seu interrogatório de mérito. Em primeiro lugar, porque
ninguém é obrigado a se autoacusar. Se assim é, para evitar a admissão
de culpa, há de afirmar o réu algo que saber ser contrário à verdade. Em
segundo lugar, o direito constitucional à ampla defesa não poderia
excluir a possibilidade de narrar inverdades, no intuito cristalino de
fugir à incriminação. Aliás, o que não é vedado pelo ordenamento
jurídico é permitido. E se é permitido, torna-se direito (...) No campo
processual penal, quando o réu, para se defender, narra mentiras ao
magistrado, sem incriminar ninguém, constitui seu direito de refutar a
imputação. O contrário da mentira é a verdade. Por óbvio, o acusado está
protegido pelo princípio de que não é obrigado a se autoincriminar,
razão pela qual pode declarar o que bem entender ao juiz. É, pois, um
direito (NUCCI, p. 456).
Se, contudo, essa mentira defensiva é tolerada, a mesma
assertiva não pode ser feita no caso das mentiras agressivas, ocorridas
quando o envolvido imputa falsamente a terceiro inocente a prática
delitiva ou na circunstância em que se acusa de crime inexistente ou
praticado por outra pessoa, devendo, por conseguinte, responder pelo
crime de denunciação caluniosa e de autoacusação falsa, respectivamente
dispostos nos artigos 339 e 341 do Código Penal.
Tem prevalecido, outrossim, o argumento de que o direito
ao silêncio não abrange o direito de falsear a verdade no tocante à
identidade pessoal, exsurgindo típica a conduta de apresentar-se com
nome falso ao ser preso no afã de esconder os maus antecedentes (STF: HC
112846 / MG, Primeira Turma, Rel. Min. Roberto Barroso, 02/09/2014;
STJ: AgRg no REsp 1269369 / RS, Sexta Turma, Rel. Min. Sebastião Reis
Júnior, DJ 04/12/2014).
Outra controvérsia digna de nota reside na problemática
do silêncio parcial, impondo-se aferir se o sujeito pode responder
apenas a algumas das perguntas que lhe forem formuladas ou, ao
contrário, se não pode calar-se após ter inicialmente optado por
contribuir para a persecução penal quando advertido da garantia da não
autoincriminação.
No direito anglo-americano, ou o acusado exerce o direito
a não ser interrogado, ou se submete ao dever de depor e de revelar a
verdade, não se admitindo, em moldes semelhantes ao que se dá no direito
alemão, o silêncio parcial.
A utilização desse raciocínio emanado do direito
comparado não se afigura compatível com o Estado Democrático de Direito
consagrado no Brasil, onde avulta a indispensabilidade da proteção
contra as hostilidades e as intimidações tradicionalmente efetuadas
contra o réu pelo aparelho estatal (PACELLI, p. 384).
A solução, mais uma vez, não pode ser outra que não a que
consigne a maior proteção ao constitucionalmente tutelado, evitando-se
estreitas interpretações que não se harmonizam com a Lei Maior e com o
estatuto de regência.
Assim, se existe o direito a não responder perguntas, há
de emergir o direito ao silêncio em relação a algumas ou a todas as
indagações, obstando-se qualquer valoração em prejuízo das faculdades
exercidas pela defesa neste particular. Pode o investigado, logo,
regredir para uma opção em favor do direito ao silêncio ainda que tenha
optado, primeiramente, pela postura ativa.
Por derradeiro, soa importante asseverar que a exigência
do consentimento do acusado surge quando a produção da prova demandar
uma atitude ativa, o que não ocorre quando daquele seja necessária tão
somente uma cooperação singelamente passiva ou de mera tolerância no
contexto probatório. De fato:
(...) sempre que a produção da prova
tiver como pressuposto uma ação por parte do acusado (v.g., acareação,
reconstituição do crime, exame grafotécnico, bafômetro, etc.), será
indispensável seu consentimento. Cuidando-se do exercício de um direito,
tem predominado o entendimento de que não se admitem medidas
coercitivas contra o acusado para obrigá-lo a cooperar na produção de
provas que dele demandem um comportamento ativo. Além disso, a recusa do
acusado em se submeter a tais provas não configura o crime de
desobediência nem o de desacato, e dela não pode ser extraída nenhuma
presunção de culpabilidade, pelo menos no processo penal (LIMA, p. 81).
Descabe a alegação de ofensa ao
nemo tenetur se detegere,
portanto, no que respeita às provas que exigem somente a tolerância do
acusado, não persistindo o direito de não produzir provas contra si
mesmo quando o imputado for objeto de verificação, o que se opera em se
tratando, por exemplo, do ato de reconhecimento pessoal.
3 CONCLUSÃO
Novidade da Constituição Federal de 1988 (art. 5º, LXIII), o direito ao silêncio constitui corolário do
nemo tenetur se detegere,
a saber, o princípio da não autoincriminação, que assegura ao preso e
ao acusado em geral o rechaço a obrigatoriedades de produção de provas
contra si mesmo.
A titularidade do direito é atribuída não somente ao
preso, como o texto constitucional brasileiro e alguns diplomas
referidos parecem sugerir, mas também ao solto e a qualquer indivíduo
posicionado como objeto de procedimento investigatório.
A ausência da advertência quanto ao direito ao silêncio
não gera, automaticamente, nulidade, a qual precisa associar-se a
prejuízo e involuntariedade para que se justifique a retirada da higidez
do ato processual. Trata-se, portanto, de nulidade relativa.
Embora esteja respaldado o direito do acusado a mentir,
este não contempla as mentiras agressivas, ocorridas quando o envolvido
imputa falsamente a terceiro inocente a prática delitiva ou na
circunstância em que se acusa de crime inexistente ou praticado por
outra pessoa, devendo, por conseguinte, responder pelo crime de
denunciação caluniosa e de autoacusação falsa, respectivamente dispostos
nos artigos 339 e 341 do Código Penal.
Na medida em que existe o direito a não responder
perguntas, há de emergir o direito ao silêncio em relação a algumas ou a
todas as indagações, obstando-se qualquer valoração em prejuízo das
faculdades exercidas pela defesa neste particular. Pode o investigado
regredir para uma opção em favor do direito ao silêncio ainda que tenha
optado, inicialmente, pela postura ativa.
A exigência do consentimento do acusado surge quando a
produção da prova demandar uma atitude ativa, o que não ocorre quando
daquele seja necessária tão somente uma cooperação singelamente passiva
ou de mera tolerância no contexto probatório.
4 REFERENCIAL TEÓRICO
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira.
Curso de Direito Constitucional. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Comentário ao artigo
5º, LXIII. In: CANOTILHO, J.J. GOMES; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo
W.; STRECK, Lenio L. (Coords.).
Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013.
LIMA, Renato Brasileiro de.
Manual de Processo Penal. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2014.
NUCCI, Guilherme.
Código de Processo Penal Comentado. 13ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
PACELLI, Eugênio.
Curso de Processo Penal. 18ª ed. São Paulo: Atlas, 2014.
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