quinta-feira, 12 de março de 2015

Direito ao silêncio: origem, conteúdo e alcance

1 INTRODUÇÃO
Na busca por delinear os contornos do direito ao silêncio, expressamente insculpido no art. 5º, LXIII, desenvolver-se-á texto dissertativo contemplando a origem histórica, a dimensão e o alcance de tal direito fundamental.
O artigo focará o direito processual penal e procederá a análises dos dissídios jurisprudenciais e doutrinários concernentes a alguns dos aspectos do princípio da não autoincriminação, do qual emana o direito a silenciar-se.

2 DESENVOLVIMENTO
Inovação da Constituição Federal de 1988 (art. 5º, LXIII), o direito ao silêncio constitui corolário do nemo tenetur se detegere, a saber, o princípio da não autoincriminação, que assegura ao preso e ao acusado em geral o rechaço a obrigatoriedades de produção de provas contra si mesmo.
Anteriormente à disciplina constitucional vigente, a temática era enfrentada no campo do devido processo legal e dos demais princípios setoriais do processo penal inerentes à sistemática própria do rito acusatório.
Sua positivação foi bastante influenciada pelo direito norte-americano, especialmente a partir do caso Miranda v. Arizona, de 1966, no qual se consignou a tese de que nenhuma serventia pode ser conferida às declarações feitas por uma pessoa à polícia sem que o envolvido tenha sido informado acerca, simplesmente, de seu direito a não responder. Ensina Gilmar Mendes:
Tal como anotado pelo Min. Pertence em magnífico voto proferido no HC. 78.708, de que foi o relator (DJ de 16-4-1999), “o direito à informação da faculdade de manter-se silente ganhou dignidade constitucional – a partir de sua mais eloquente afirmação contemporânea em Miranda VS. Arizona (384 US 436, 1996), transparente fonte histórica de sua consagração na Constituição brasileira – porque instrumento insubstituível da eficácia real da vetusta garantia contra a autoincriminação – nemo tenetur prodere se ipsum, quia nemo tenere detegere turpitudinem suam –, que a persistência planetária dos abusos policiais não deixa de perder atualidade”. Essas regras sobre a instrução quanto ao direito ao silêncio – as chamadas Miranda rules – hão de se aplicar desde quando o inquirido está em custódia ou de alguma outra forma se encontre significativamente privado de sua liberdade de ação: “while in custody at the station or otherwise deprived of his freedom of action in any significant way” (BRANCO; MENDES, p. 638).
            Ainda no plano internacional, impende destacar as previsões do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (14, 3, “g”), da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (8, §2º, “g), da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, da ONU, e da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, da OEA, avenças convergentes no sentido da consagração do direito a calar-se em hipóteses passíveis de um autoprejuízo.
            No direito pátrio infraconstitucional, avulta o disposto no art. 186 do Código de Processo Penal, o qual dispõe acerca da imposição de que o juiz informe o acusado, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas, ao que se soma a previsão do parágrafo único do mesmo dispositivo, vedando a utilização do silêncio como confissão e como argumento em desfavor do réu.
            A titularidade do direito é atribuída não somente ao preso, como o texto constitucional brasileiro e alguns diplomas referidos parecem sugerir, mas também ao solto e a qualquer indivíduo posicionado como objeto de procedimento investigatório.
            Da mesma forma, protegem-se as testemunhas e as vítimas chamadas a depor nas fases inquisitiva e processual, porquanto é incabível imaginar que possam ser forçadas a responder a perguntas que, de alguma maneira, revelem-se idôneas a incriminá-las, entendimento aplicável às searas das Comissões Parlamentares de Inquérito e dos processos disciplinares, numa interpretação lógico-sistemática propensa a prestigiar tal direito fundamental.
Que, para a efetivação do direito, exige-se a advertência, prévia e formal, quanto à faculdade do silêncio, sob pena de vícios na prova obtida a partir de uma involuntária autoincriminação, resulta evidente, remanescendo dúvidas, todavia, no que tange à natureza dessa nulidade.             Embora não se despreze a cizânia jurisprudencial e doutrinária nesse particular, os Tribunais Superiores têm assinalado que a ausência da advertência quanto ao direito ao silêncio não gera, automaticamente, nulidade, a qual precisa associar-se a prejuízo e falta de voluntariedade para que se justifique a retirada da higidez do ato processual (ver STF: AP 611/MG, Primeira Turma, Rel. Min. Luiz Fux, 30/09/2014, AP 530/MS, Primeira Turma, Rel. Min. Luis Roberto Barros, 09/09/2014; STJ: RHC 30528, Quinta Turma, Rel. Min. Gurgel de Faria, 4/11/2014; HC 189364, Sexta Turma, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, 13/08/2013).
            Trata-se, bem se vê, de nulidade relativa, e não absoluta, sendo imprescindível a obediência aos ditames dos artigos 563 e 571 do Código de Processo Penal, qualificando-se como desarrazoada e exageradamente formal decisão declaratória de nulidade de processo ou de ato processual quando não constatado qualquer prejuízo à defesa, mormente quando o réu encontra-se acompanhado de advogado ao longo de todo o feito, como, costumeira e ordinariamente, acontece.
            Diga-se, por oportuno, que o Supremo Tribunal Federal (HC 99.558, Rel. Min. Gilmar Mendes, 14/12/2010) já registrou jurisprudência no sentido de que o dever de advertir sobre o privilégio é somente de agentes públicos, e não de outras pessoas que não sejam responsáveis primariamente por determinada investigação (CARVALHO, p. 458). Não haveria ilegitimidade, portanto, na aquisição de provas oriundas de confissões espontâneas perante a imprensa.
            Contudo, por óbvio, é relevante que se evite a concessão de entrevistas por presos aos jornais e aos profissionais da psicologia ou da psiquiatria, por exemplo, salvo se tenha havido previamente a advertência quanto ao direito estudado. Do contrário, torna-se possível pensar em confissão reputada inadmissível como prova, pois obtida fora das proteções plasmadas na Carta da República.
            Na mesma linha, subsiste intensa celeuma respeitante ao alcance do direito ao silêncio ao imputado que falseia suas declarações para ver-se livre de uma acusação, discutindo-se se o direito a não produzir provas contra si mesmo, do qual o direito ao silêncio é manifestação, resguarda o direito de mentir.
            Em nosso sentir, em que pesem os louváveis entendimentos em contrário, a conclusão de Guilherme Nucci qualifica-se como irretocável, uma vez que o comportamento de dizer a verdade, em absoluto, não pode ser exigível do acusado, sendo inconstitucional qualquer sanção ou restrição eventualmente aplicada àquele que, para defender-se de uma acusação, valendo-se de seu direito fundamental à ampla defesa, escolha o ato da mentira. Diz ele:
Sustentamos ter o réu o direito de mentir em seu interrogatório de mérito. Em primeiro lugar, porque ninguém é obrigado a se autoacusar. Se assim é, para evitar a admissão de culpa, há de afirmar o réu algo que saber ser contrário à verdade. Em segundo lugar, o direito constitucional à ampla defesa não poderia excluir a possibilidade de narrar inverdades, no intuito cristalino de fugir à incriminação. Aliás, o que não é vedado pelo ordenamento jurídico é permitido. E se é permitido, torna-se direito (...) No campo processual penal, quando o réu, para se defender, narra mentiras ao magistrado, sem incriminar ninguém, constitui seu direito de refutar a imputação. O contrário da mentira é a verdade. Por óbvio, o acusado está protegido pelo princípio de que não é obrigado a se autoincriminar, razão pela qual pode declarar o que bem entender ao juiz. É, pois, um direito (NUCCI, p. 456).
            Se, contudo, essa mentira defensiva é tolerada, a mesma assertiva não pode ser feita no caso das mentiras agressivas, ocorridas quando o envolvido imputa falsamente a terceiro inocente a prática delitiva ou na circunstância em que se acusa de crime inexistente ou praticado por outra pessoa, devendo, por conseguinte, responder pelo crime de denunciação caluniosa e de autoacusação falsa, respectivamente dispostos nos artigos 339 e 341 do Código Penal.
            Tem prevalecido, outrossim, o argumento de que o direito ao silêncio não abrange o direito de falsear a verdade no tocante à identidade pessoal, exsurgindo típica a conduta de apresentar-se com nome falso ao ser preso no afã de esconder os maus antecedentes (STF: HC 112846 / MG, Primeira Turma, Rel. Min. Roberto Barroso, 02/09/2014; STJ: AgRg no REsp 1269369 / RS, Sexta Turma, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, DJ 04/12/2014).
            Outra controvérsia digna de nota reside na problemática do silêncio parcial, impondo-se aferir se o sujeito pode responder apenas a algumas das perguntas que lhe forem formuladas ou, ao contrário, se não pode calar-se após ter inicialmente optado por contribuir para a persecução penal quando advertido da garantia da não autoincriminação.
            No direito anglo-americano, ou o acusado exerce o direito a não ser interrogado, ou se submete ao dever de depor e de revelar a verdade, não se admitindo, em moldes semelhantes ao que se dá no direito alemão, o silêncio parcial.
            A utilização desse raciocínio emanado do direito comparado não se afigura compatível com o Estado Democrático de Direito consagrado no Brasil, onde avulta a indispensabilidade da proteção contra as hostilidades e as intimidações tradicionalmente efetuadas contra o réu pelo aparelho estatal (PACELLI, p. 384).
            A solução, mais uma vez, não pode ser outra que não a que consigne a maior proteção ao constitucionalmente tutelado, evitando-se estreitas interpretações que não se harmonizam com a Lei Maior e com o estatuto de regência.
            Assim, se existe o direito a não responder perguntas, há de emergir o direito ao silêncio em relação a algumas ou a todas as indagações, obstando-se qualquer valoração em prejuízo das faculdades exercidas pela defesa neste particular. Pode o investigado, logo, regredir para uma opção em favor do direito ao silêncio ainda que tenha optado, primeiramente, pela postura ativa.
            Por derradeiro, soa importante asseverar que a exigência do consentimento do acusado surge quando a produção da prova demandar uma atitude ativa, o que não ocorre quando daquele seja necessária tão somente uma cooperação singelamente passiva ou de mera tolerância no contexto probatório. De fato:
(...) sempre que a produção da prova tiver como pressuposto uma ação por parte do acusado (v.g., acareação, reconstituição do crime, exame grafotécnico, bafômetro, etc.), será indispensável seu consentimento. Cuidando-se do exercício de um direito, tem predominado o entendimento de que não se admitem medidas coercitivas contra o acusado para obrigá-lo a cooperar na produção de provas que dele demandem um comportamento ativo. Além disso, a recusa do acusado em se submeter a tais provas não configura o crime de desobediência nem o de desacato, e dela não pode ser extraída nenhuma presunção de culpabilidade, pelo menos no processo penal (LIMA, p. 81).
            Descabe a alegação de ofensa ao nemo tenetur se detegere, portanto, no que respeita às provas que exigem somente a tolerância do acusado, não persistindo o direito de não produzir provas contra si mesmo quando o imputado for objeto de verificação, o que se opera em se tratando, por exemplo, do ato de reconhecimento pessoal.

3 CONCLUSÃO
Novidade da Constituição Federal de 1988 (art. 5º, LXIII), o direito ao silêncio constitui corolário do nemo tenetur se detegere, a saber, o princípio da não autoincriminação, que assegura ao preso e ao acusado em geral o rechaço a obrigatoriedades de produção de provas contra si mesmo.
            A titularidade do direito é atribuída não somente ao preso, como o texto constitucional brasileiro e alguns diplomas referidos parecem sugerir, mas também ao solto e a qualquer indivíduo posicionado como objeto de procedimento investigatório.
            A ausência da advertência quanto ao direito ao silêncio não gera, automaticamente, nulidade, a qual precisa associar-se a prejuízo e involuntariedade para que se justifique a retirada da higidez do ato processual. Trata-se, portanto, de nulidade relativa.
            Embora esteja respaldado o direito do acusado a mentir, este não contempla as mentiras agressivas, ocorridas quando o envolvido imputa falsamente a terceiro inocente a prática delitiva ou na circunstância em que se acusa de crime inexistente ou praticado por outra pessoa, devendo, por conseguinte, responder pelo crime de denunciação caluniosa e de autoacusação falsa, respectivamente dispostos nos artigos 339 e 341 do Código Penal.
            Na medida em que existe o direito a não responder perguntas, há de emergir o direito ao silêncio em relação a algumas ou a todas as indagações, obstando-se qualquer valoração em prejuízo das faculdades exercidas pela defesa neste particular. Pode o investigado regredir para uma opção em favor do direito ao silêncio ainda que tenha optado, inicialmente, pela postura ativa.
            A exigência do consentimento do acusado surge quando a produção da prova demandar uma atitude ativa, o que não ocorre quando daquele seja necessária tão somente uma cooperação singelamente passiva ou de mera tolerância no contexto probatório.

4  REFERENCIAL TEÓRICO
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Comentário ao artigo 5º, LXIII. In: CANOTILHO, J.J. GOMES; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013.
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2014.
NUCCI, Guilherme. Código de Processo Penal Comentado. 13ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 18ª ed. São Paulo: Atlas, 2014.

COSTA, Lucas Sales da. Direito ao silêncio: origem, conteúdo e alcance. Jus Navigandi, Teresina, ano 20, n. 4257, 26 fev. 2015. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/36722>. Acesso em: 11 mar. 2015.

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